quarta-feira, abril 23, 2014

O lapso de Pacheco

José Pacheco Pereira é um historiador de mérito do movimento operário português. Além disso, é um celebrado observador da nossa vida política, qualidade em que se tem revelado um prolixo articulista e comentador. Oriundo da extrema-esquerda maoísta, transitou pela chamada "esquerda liberal" antes de aportar, sem surpresa, ao regaço do PSD. Por aí se manteve, sempre num registo algo inconfortado. Conheci-o nos tempos em que passou pelo Parlamento europeu. Nos últimos anos, tendo-se afastado da linha da atual liderança do seu partido, enveredou por uma linha fortemente crítica da maioria no poder. Servido por uma indiscutível inteligência, tem sido de uma bela eficácia na desmontagem do poder que temos. Para alguma esquerda, depois de ter sido um ódio de estimação, tornou-se hoje numa coqueluche: faz, por vezes, o trabalho de crítica que ela própria parece não ser capaz de fazer, com a credibilidade muito original de quem vem "do outro lado". Faz parte dos "novos camaradas", uma raça política que dá imenso jeito e é politicamente barata.

Por ocasião destes 40 anos do 25 de abril, e como colecionador reconhecido da iconografia da Revolução, Pacheco Pereira foi encarregado pela Assembleia da República de organizar uma exposição sobre cartazes políticos. Dizem-me que é uma boa mostra. De passagem, incumbiram-no ou incumbiu-se de criar um painel onde colocou 200 e poucas personalidades que, no seu entender, marcaram politicamente estes 40 anos. 

Pacheco fez a seleção que o seu critério pessoal ditou. 200 pessoas é muita gente, mas é seguramente menos do que seria desejável. Devem falhar, com toda a certeza, algumas pessoas. Mas por lá estão, naturalmente, Carmelinda Pereira e Cabral Fernandes, figuras ímpares do trotskismo luso, que abalaram politicamente estes últimos quatro decénios. Alguns incontornáveis ícones de abril, como Etelvina Lopes de Almeida ou Amândio de Azevedo, não escaparam à memória seletiva de Pacheco. Expoentes resgatados em boa hora ao opróbrio do anonimato como Mariano Pires (não me diga que não sabe quem é?) ou Manuel Cabanas, por aí se consagraram no paredão da glória. E, claro, como não podia deixar de ser, por lá estão, com indiscutível espaço, Soares, Eanes, Sá Carneiro, Freitas, Kaúlza, Spínola, Otelo, Guterres, Gama e tutti quanti.

Estão todos? Não. Neste seu rigoroso critério de probo historiador, Pacheco "esqueceu" Jorge Sampaio, que "apenas" foi presidente desta República durante 10 dos seus 40 anos, líder do movimento estudantil de 1962 que abriu o caminho à última década da revolta contra a ditadura, presente desde então em todas as lutas contra o Estado Novo.

Lapsos qualquer um tem, não é?

PS - e agora, algumas semanas passadas, o lapso foi corrigido: Jorge Sampaio integra 50 nomes complementares.

O atentado

O 25 de abril e o período que se lhe seguiu foram férteis em histórias, algumas verdadeiras, outras mirabolantes. Quem viveu essa época lembra-se, com certeza, do episódio do caixão cheio de armas, que fez as delícias das fórmulas mais imaginativas sobre o 28 de setembro. O tal "caixão", num carro funerário, terá aparecido, segundo as versões, em diversas barreiras de estrada, umas vezes em Alverca, outras vezes na calçada de Carriche, outra vez nos "Quatro Caminhos". Nunca fui muito dado a fantasias revolucionárias e, iconoclasta como sou, sempre duvidei destas histórias "demasiado boas".

No auge do "Verão quente" de 1975, uma das historietas que corriam nos meios do MFA prendia-se com a hipótese de um atentado ao primeiro-ministro Vasco Gonçalves, que teria sido gorado pela "vigilância revolucionária". Segundo se contava, e os meios gonçalvistas pintavam com pormenores, um grupo "reacionário" teria tomado conta de um apartamento na calçada da Estrela, de onde pretendia atingir, com uma espingarda de mira telescópica, o gabinete de Vasco Gonçalves, com vista a assassiná-lo. Este potencial atentado teria sido evitado por uma oportuna denúncia.

Como disse, sou pouco dado a teorias conspirativas e levei a historieta à conta de uma fantasia do grupo que borboletava em torno de Vasco Gonçalves, feito da "esquerda militar", de muitos militantes ou "compagnons de route" do PCP e de uns "operacionais" gonçalvistas, alguns dos quais foram e são meus amigos.

Passaram muitos anos. Um dia, no Brasil, fui convidado por um cidadão português para almoçar. A conversa levou ao "Verão quente". O meu interlocutor sabia bem que eu tinha estado envolvido nesses tempos militares. A ele, eu conhecia-o, de nome e de fama, como uma pessoa corajosa, ferozmente anticomunista, ativista na luta clandestina contra o MFA, em 1975.

A certo ponto da conversa, revelou-me: tinha-se voluntariado, nesse "tempo da brasa", para liquidar Vasco Gonçalves. Era conhecido como um especialista de armas, de caça e de guerra, e, por essa razão, fora escolhido para a "operação" pelos seus companheiros de ideologia. Contou-me pormenores, descreveu-me os passos que tinham sido dados para montar a operação, falou-me da casa na calçada da Estrela que deveria ser utilizada para o atentado e, sem que agora me lembre bem dos detalhes, deu-me conta de uma "infiltração" no seu grupo político que levou à denúncia do complot, que assim se gorou.

Tomei boa nota e, pelos dados que me forneceu, fiquei com total confiança no relato que me fez. Vasco Gonçalves não foi objeto de nenhum atentado, mas que ele esteve planeado disso não tenho a menor dúvida.

terça-feira, abril 22, 2014

CENSURA

De hoje, até ao final do dia 25 de abril, todos os comentários reacionários ou depreciativos da Revolução que forem enviados a este blogue serão liminarmente censurados. Só se aceitarão louvores e elogios sinceros à data libertadora.

É só para ver se quem assim pensa gosta que lhe calem a voz. Era isso que acontecia até há 40 anos.

Depois do dia 25 de abril, voltaremos a aceitar aqui todas as opiniões, mesmo as mais retrógradas. Esta é a nossa diferença...

Retatos do 24 de abril (1)


O MFA e a NATO

Ontem, durante a intervenção que fiz no Congresso "A Revolução de Abril", contei uma pequena história ocorrida em agosto de 1974.

Eu era adjunto da Junta de Salvação Nacional. Pelo gabinete que partilhava com o então major (hoje general) Costa Neves, chefe de gabinete do membro da Junta, general Galvão de Melo, passavam muitos quadros superiores do MFA, vários elementos da sua Comissão Coordenadora, alguns membros militares do Conselho de Estado que então funcionava junto do presidente da República, general António de Spínola. Eram dias intensos, marcados pela emergência das primeiras grandes conflitualidades que atravessaram o MFA, com as diversas correntes militares a tomarem posições e a medirem forças, que haveriam de se tornar bem contrastantes no 28 de setembro.

Num desses dias desse primeiro "Verão quente", sentado à minha secretária, constatei que a questão da presença de Portugal na NATO era objeto de uma troca de impressões entre o José Manuel Costa Neves e outro elemento da "comissão coordenadora" do MFA, também da Força Aérea. Comentavam que um outro colega, do mesmo ramo militar, fora de opinião que a continuidade da presença de Portugal na NATO deveria merecer uma análise por parte da "coordenadora". Esse militar, pertencente a esse órgão, tinha anunciado a sua intenção de suscitar a questão numa próxima reunião. Ambos os meus interlocutores estavam preocupados com o impacto que tal iniciativa pudesse vir a ter. Perguntaram a minha opinião e eu dei-lhes toda a razão, elencando um conjunto de motivos pelos quais considerava, não apenas inoportuna mas mesmo altamente perigosa a abertura de uma discussão do tema, à luz dos nossos interesses estratégicos e da imagem que a Revolução portuguesa procurava projetar no exterior.

"Tu é que podias falar com ele", disse-me a certo passo o José Manuel Costa Neves. "Explica-lhe isso mesmo que agora nos disseste. Pode ser que o convenças!" 

Fiquei um pouco perplexo. De certo modo, era um atrevimento um aspirante a oficial miliciano, como eu era à época, ir arguir junto de um oficial superior, com fortes responsabilidades político-militares, as implicações geoestratégicas que entendia que uma questão daquela delicadeza poderia ter. Mas voluntariei-me para a tarefa.

O ambiente no seio do MFA era então muito diverso do que se pode imaginar. Eu, como muitos outros milicianos que por ali andavam, tinha grande à-vontade e tratava por tu grande parte dessas figuras cimeiras da Revolução que, acredite-se ou não, alimentavam um ambiente de grande simplicidade e camaradagem, de uma imensa informalidade, bem distante da rigidez dos quartéis de onde vínhamos. E assim se planeou uma conversa entre mim e esse oficial superior, logo para o dia seguinte. Recordo-me que ela teve lugar no gabinete que pertencia ao coronel Franco Charais, membro da "comissão coordenadora" do Exército, que estava ausente de Lisboa nesse dia. Recordo-me bem do local porque eu próprio viria a ocupar esse mesmo belo gabinete, revestido a azulejos, como subdiretor-geral das Comunidades Europeias, precisamente 20 anos mais tarde.

Já não me lembro bem de pormenores da conversa, mas ela terá espelhado o contraste entre um miliciano moderado e realista (eu que, então, estava longe de ser uma coisa ou outra, no plano político-militar...), que desenvolveu uma teoria favorável a equilíbrios geopolíticos que considerava importante preservar, perante um oficial que era membro da um órgão de grande influência e visibilidade política, que defendia uma postura de insensato radicalismo, próxima daquelas que só alguma extrema-esquerda proclamava pelas ruas e paredes do país. Uma das "peças" do meu argumentário terá sido decisiva para frear o fulgor extremado do militar: ele iria ficar praticamente isolado no seio da "coordenadora" e, a partir dessa sua tomada de posição, deixaria de ter a menor audição futura. Para além do facto dele ir atuar "sem rede", porque a sondagem que tínhamos feito, no âmbito da "coordenadora" do MFA na Força Aérea, era amplamente desfavorável à sua posição. Para o que agora interessa, o nosso homem nunca chegou a suscitar a questão e eu tinha feito o que me tinha sido solicitado, que, neste caso, coincidia precisamente com o que eu pensava.

Uma nota final. Esse militar, depois dessa deriva radical que ainda duraria alguns meses, viria a reverter por completo a sua atitude política e, após 1975, surgiria ligado, de uma forma quase limite, a algumas ações muito "complicadas", tendo desaparecido totalmente de cena.

O 25 de abril e a política externa


Texto que serviu de base à intervenção que ontem fiz, durante o painel "Portugal no Mundo", durante o Congresso "A Revolução de Abril", promovida pelo Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa:

A tentação de afirmar que tudo mudou com o 25 de abril é muito forte no que toca à política externa. E isso tem uma explicação fácil: é que, contrariamente à lenta maturação de outras mudanças que ocorreram na sequência da Revolução, no plano internacional, quase de um dia para o outro, a imagem de Portugal sofreu uma forte alteração, passámos a ser olhados de uma forma diametralmente oposta à véspera. Da ditadura obsoleta, politicamente isolada, sustentáculo de uma presença colonial perdida historicamente no tempo, emergiu uma súbita esperança democrática e de libertação, feita de alegria florida nas ruas. 

Até o surgimento das forças armadas a titular uma revolta democrática, apenas meio ano depois do Chile, constituiu uma novidade simpática e promissora.Vieram depois algumas dúvidas, o Ocidente tremeu com o curso político em Lisboa mas, para o bem e para o mal, visto das várias perspetivas, Portugal nunca mais foi igual sob olhar do mundo.

Como a Ucrânia nos prova nos dias de hoje, tal como Cuba o atestou nas últimas décadas, um país não pode fugir à sua geografia e tem de acomodar as suas ambições ao contexto em que está inserido. Assim aconteceu com o Portugal depois de abril. 

Eu costumo afirmar que o facto de não ter surgido, na convulsão política pós-Revolução, uma séria proposta no sentido de Portugal abandonar a NATO representa como que a consciência subliminar de que o país tinha condicionantes geopolíticas a que não podia escapar. Se a leitura que Moscovo fazia deste equilíbrio marcou ou não a atitude do PCP, com Angola à mistura nesse contexto, essa é uma questão que fica para os historiadores. Os factos, porém, são incontroversos: aquela que era a principal âncora geopolítica do país desde o pós-guerra não foi posta seriamente em causa, não obstante alguns apelos radicais surgidos aqui ou ali. 

Quero com isto dizer que a nossa geografia prevaleceu. Mas essa geografia também mudou. Umas vezes mudou ela própria e nós mudámos com ela, outras vezes mudou porque nós próprios fomos sujeitos dessa mudança.

A nossa geografia mudou no plano físico, com o fim das fronteiras e com os acessos rodoviários e aéreos a tornarem-nos menos periféricos. O choque de modernidade que isso teve num país até então isolado, fora das rotas de vizinhança do centro do continente, foi uma aventura silenciosa de que já ninguém tem verdadeira consciência.

A nossa geografia mudou fortemente no plano político, com a integração europeia a determinar um quadro de responsabilidades que nos alargou os horizontes e nos tornou parceiros de um projeto mais vasto, eticamente sustentado e com uma coerência global que incorporámos na nossa própria matriz de afirmação externa.

Mas mudou também na nossa atitude no quadro multilateral, "ajudados" pela aventura voluntarista por Timor, que determinou uma postura mais ativa sobre direitos humanos. E, noutra dimensão, criou-nos uma dinâmica própria em matéria de cooperação para o desenvolvimento. Por tudo isto chegámos, por três vezes e não por acaso, ao Conselho de Segurança da ONU, organizámos duas cimeiras Europa-África, temos um Alto Comissário para os Refugiados, tivémos a liderança da Aliança para as Civilizações, criámos as condições para que um português chegasse à chefia da Comissão Europeia.

E, também no campo multilateral, soubémos exportar segurança, com intervençoes de grande mérito tituladas pelas nossas Forças Armadas envolvidas em operações de paz. Essa nossa nova "geografia de segurança", que vai para além da NATO, se apoia na Europa e tem decorrências na luta anti-terrorista, é um terreno da maior importância, um teste ao nosso sentido de responsabilidade internacional

A nossa geografia mudou também no plano humano, ao ter sido possível, a partir do 25 de abril, estabelecer um modelo de enquadramento democrático da nossa diáspora, garantindo-lhe um papel na vida política interna e procurando tomá-la um ator da nossa dimensão externa. E, mais tarde, de país emissor de fluxos migratórios, tornámo-nos recetores de imigrantes, convertemo-nos num "melting-pot" onde a Europa de leste veio encontrar as muitas Áfricas, a que se somou o Brasil mais a China. Embora alguns não saibam, isto também é política externa e devo confessar que tenho um imenso orgulho em que o Portugal de hoje seja considerado positivamente lá fora, pelo modo como acolhe os mundos que estão do outro lado desta casa, do largo de S. Domingos ao Martim Moniz e à Mouraria.

A nossa geografia também mudou muito no tocante ao nosso relacionamento bilateral externo. Mudou com a normalidade com a vizinhança imediata, de Espanha a Marrocos, com a descoberta de uma vocação mediterrânica que levou à fixação de um interessante laço com um mundo islâmico que vê em nós um interlocutor atento.

Mas essa nova geografia, que também pode ser considerada 'de afetos" conduziu, desde logo, ao estabelecimento de um quadro institucional prioritário com Estados que falam a nossa língua e com os quais tentamos reconduzir a uma cooperação aquilo que foi uma longa e traumática relação colonial. Mas, igualmente, reforçámos o nosso relacionamento com Estados e regiões com os quais vivíamos a uma distância criada pela ditadura e pelo colonialismo, do centro e leste europeus à África e bastante mais além. Foi essa nova postura que nos conduziu à normalidade do relacionamento com a China, mas também com a Indonésia e com a Índia.

Mas, como disse no início, nunca saímos do Atlântico, embora apenas na retórica tenhamos uma política nacional para esse espaço. Talvez por isso, porque o Atlântico é uma constante muito forte que nos sobredetermina, foi por aí que surgiram alguns patéticos seguidismos, que devemos tomar à conta de meros episódios sem grande significado. Mas este é um quadro que mantemos como estruturante para a preservação dos nossos interesses estratégicos. E tudo indica - mas assumo que esta é uma perspetiva pessoal - que, sem abandonar o investimento fundamental no projeto europeu em que nos empenhámos, sem descurar a CPLP e outras dimensões que derivam de laços muito particulares, como é o caso dos que nos prendem à América Latina, temos todo o interesse, como país, em saber recolocar-nos, com sentido das proporções, no centro da nova relação transatlântica que se desenha.

Termino com uma banalidade, reafirmando que, graças ao 25 de abril, somos hoje um país "orgulhosamente acompanhado". Por isso, quando um dia voltarmos a ter uma política externa, depois do interlúdio de silêncio internacional que estamos a atravessar, Portugal pode e deve, com realismo e medida ambição, continuar a aproveitar as portas que, também para o mundo, abril nos abriu.

segunda-feira, abril 21, 2014

Papoilas saltitantes

São a maioria. Foram, em tempos antigos, o país em chuteiras. De encarnado, não de vermelho, levaram o nome de Portugal pelos relvados europeus. Eram, à época, os nossos rivais. Depois, as artes e a fruta levaram o poderio para o Norte. Aí se firmou a sua nova rivalidade. De tempos a tempos, espreitam a glória num país que tem sido demasiado azul. Ela ressurgiu ontem. Acreditem ou não, fico contente por ver a maioria do país bem disposta. Mesmo para quem fica em segundo lugar. Por ora.

Em tempo: acho que esta vitória pode ser dedicada a José Medeiros Ferreira, recordando o último post que deixou no seu blogue 

domingo, abril 20, 2014

E se... ?

Alfredo Cunha

E se o "E depois do adeus", o Maia, o Carmo, os tanques, a Grândola, o Otelo, a Junta, o Spínola, o cravo, a Pide, o Zeca, a censura, o MFA, Caxias, o "povo unido", Peniche, a guerra, o Cunhal, a tv a preto-e-branco e toda essa parafernália de sinais, de siglas repisadas, pingantes da nossa endémica saudade geracional, nada disserem a pessoas que passam "a salto" de Ryanair as fronteiras de Schengen, aos vidrados nos iPad, balanceantes dos iPod, logados nos iPhone, comentando as saídas para o novo desemprego, que vão para hostels em lugar de irem para Champigny? 

Será que temos o direito de lhes impor a nossa memória, sob o pretexto de que temos de os educar que "fascismo nunca mais"? Que obrigação têm eles de ouvir o que diz o Vasco Lourenço, de sofrer o Adriano, de aturar o Alegre, de adormecer com o Cília, de ouvir a história do soldado Luís no Ralis, da "frigideira" do Tarrafal, das patifarias do Botas de Santa Comba ou dos arroubos vermelhuscos do "companheiro Vasco", dos Manuel Tiago e das tipografias da clandestinidade, do Copcon ou de Tancos, dos Comandos ou do MDLP? C'os diabos, o 25 de abril não se "fez" para dar a cada um o direito de ligar um televisor ou uma rádio sem se "arriscar" a ter de escutar pela enésima vez o Furtado a ler um comunicado do "posto de comando", a Luísa Bastos a gritar o "Avante Camarada", uma enchurrada da poética neorealista com a rima cheia de "povo", a saltitante "Gaivota", o hino marcial da Intersindical, sempre a conclamar as "massas" p'ró que der e vier? E se "essa gente" (para utilizar uma elegante fórmula do atual primeiro-ministro) decidir estar-se nas tintas para as memórias da Constituinte, para o MRPP ou para o MES, para o bispo do Porto ou para o cónego Melo, para as bombas da reação (que não "passava" mas passou) ou para as do PRP? E se o Norton for hoje para eles um anti-virus informático e não um general colonialista e democrata, se lhes der para sairem para uma "bejeca" quando soarem os acordes chatotes do Moniz ou do Letria, quando lhes ameaçarem com o Tordo a cantar o imaginário cheio de verduras e hortaliças do Ary.

O que esta geração talvez gostasse que o tal "25 de abril" lhes tivesse dado, mais do que Chaimites e "reforma agrária", berros, bandeiras e paredes com cartazes, era bem-estar e qualidade de vida, desenvolvimento, emprego, educação, cuidados de saúde eficazes e, quatro décadas depois dessa data que os mais velhos comemoram quase com raiva (salvo o "tio Alfredo", que veio de Angola e lhe salta a placa quando se fala de um tal Rosa Coutinho), era uma classe política impoluta, competente, responsável e que soubesse gerir e prestigiar o país, tornando-os orgulhosos dele. O resto...

Às vezes, pergunto-me se esta nossa compulsão comemorativa anual, feita de cabelos brancos e cravos vermelhos, dos que estiveram na Fonte Luminosa ou dos que estiveram nas barricadas do 28 de setembro, não será mais do que a desesperada tentativa de nos agarrarmos ao tempo, como os republicanos que estiveram na Rotunda e não se calaram com essa história até ao dia em que o chanfalho do Gomes da Costa os pôs com triste dono, também por quarenta anos.

Eu, por mim, já optei. Apesar de toda essa "maçadoria" (volto citar Passos Coelho), viva o 25 de abril, sempre!

Notre Europe

No próximo dia 30 de abril, moderarei em Paris um debate entre o antigo presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, e a deputada europeia portuguesa, Elisa Ferreira, sob o lema "Crise de la zone euro: les souverainités nationales è l'épreuve", inserida na Conferência internacional "L'Union Européenne: quels pouvoirs, quelle démocratie". 

Trata-se de uma iniciativa conjunta da Fondation Notre Europe e da Fundação Calouste Gulbenkian. A conferência contará, nomeadamente, com intervenções de Artur Santos Silva, do novo secretário de Estado dos Assuntos Europeus francês, Harlem Désir, do antigo deputado europeu Jean-Louis Bourlanges e do ministro adjunto português Miguel Poiares Maduro. Jacques Delors fará o discurso de encerramento da conferência.

Mário Quartin Graça (1940-2014)

Morreu Mário Quartin Graça. Acabo de o saber pela nota que o Guilherme Oliveira Martins deixou no blogue do Centro Nacional de Cultura.

Conheciamo-nos mal, mas apreciávamo-nos. Vivemos em circuitos diferentes, mas tínhamos amigos comuns que nos fizeram aproximar, em especial nos últimos anos, em que trocámos diversa correspondência, onde emergiram interesses comuns, experiências partilhadas em tempos diversos. Em comentários neste blogue, deixou notas sempre agradáveis, atentas e interessantes.

Mário Quartin Graça era um homem do mundo da cultura, com passagens de muito mérito pelo espaço diplomático. Ler as suas memórias, "Páginas Amarelas", um livro que me enviou com amável dedicatória e a cujo lançamento com pena fui forçado a faltar, ajuda-nos a perceber melhor um homem que gostava muito da vida, das coisas e das pessoas, que teve o grande mérito de não se ter apenas passeado, indiferente ou lúdico, pelos lugares por onde andou e trabalhou. Estudou e interpretou, com argúcia não isenta da graça que lhe estava no nome, esses mundos que frequentou e que tão bem retratou. Comungávamos um interesse agudo pelo Brasil, eu invejava-lhe a experiência espanhola que profissionalmente me ficou a faltar.

Tenho muita pena em não ter tido o privilégio de conhecer melhor Mário Quartin Graça. Na pessoa do seu filho Luís, diplomata que há meses cruzei em Ancara e com quem falei do seu pai, deixo o meu sentido respeito a toda a sua família.

sábado, abril 19, 2014

Bouteflika

Em 1989, fui numa visita de trabalho à Argélia. Durante um jantar num hotel da capital, fiquei sentado ao lado de um diplomata de um importante país europeu, que era tido por excelente conhecedor da vida política local. Na conversa, veio a certa altura à baila o nome de Abdelaziz Bouteflika. Fora uma figura proeminente da política do país, destacara-se como ministro dos Negócios Estrangeiros e, de repente, saíra de cena. Eu seguira essa carreira e tinha alguma curiosidade sobre a sua situação, à época.

O meu interlocutor explicou-me que Bouteflika, depois do exílio a que fora forçado, regressara recentemente ao país, tinha perdido prestígio e era tido como uma "carta jogada", como uma figura do passado. Ficou-me na memória uma sua frase algo depreciativa: "coitado, anda por aí, desejoso de ser convidado pelas embaixadas". Fiquei impressionado, confesso.

Voltei à Argélia por duas vezes, nos anos 90. Em ambas as ocasiões, Bouteflika continuava numa certa obscuridade política. A avaliação do meu interlocutor de 1988 parecia confirmar-se.

Em 1999, Bouteflika foi eleito presidente da República. Ocupa o cargo há 15 e acaba de ser reeleito ontem por mais cinco anos. 

A análise política recomenda sempre grande prudência e moderação nos juízos. Em especial nos definitivos.

Assalto à embaixada

Não é vulgar, mas de quando em vez acontecem assaltos a representações diplomáticas. Raramente os crimes têm uma motivação política, sendo as mais das vezes meros roubos, idênticos aos que podem ocorrer em qualquer escritório.

Ontem, foi anunciado que a nossa embaixada em Tripoli, na Líbia, foi assaltada, tendo um vigilante sido ferido. A situação de forte instabilidade que afeta aquele país potencia este tipo de incidentes, revelando as dificuldades em que se processa o trabalho de alguns dos diplomatas que Portugal tem espalhados por esse mundo. Deixo aqui um abraço de "bon courage" para a Isabel Pedrosa, que chefia a nossa missão em Tripoli.

Um dia, em 1981, na Noruega, fui confrontado com uma situação insólita. Num sábado à tarde, passei pela chancelaria para "ver a cifra". Essa era uma prática corrente, nesse tempo: ir durante o fim de semana à zona das comunicações da embaixada, para verificar se acaso tinha chegado qualquer comunicação urgente de Lisboa. Hoje em dia, com o mundo dos emails, essa prática caiu em forte desuso.

A nossa chancelaria em Oslo é numa moradia (ver imagem), partilhada com dois outros escritórios. Subi a escada interior que levava ao primeiro andar e abri a porta de acesso à embaixada. Ainda não tinha dado um passo dentro do hall de entrada quando ouvi o que me pareceu ser um ruído de vozes, num tom muito baixo. Perguntei, em português, quem estava no escritório, não fosse dar-se o caso de algum funcionário ter decidido passar por lá nesse dia. Era uma hipótese pouco provável, mas era possível. Não obtive qualquer resposta, mas um novo "restolho" deixou-me a certeza de que andava por lá gente. Tive o bom senso de não me aventurar, porque não somos pagos para heroicidades patetas. Fechei a porta, desci as escadas e pedi a uma pessoa que vinha comigo no carro para ir avisar o embaixador, que vivia perto. Com outra pessoa, "montei guarda" à porta da moradia. 

Minutos depois, chamámos a polícia, que chegou rapidamente. Teve o cuidado em verificar bem a minha identidade, obtendo autorização para intervir, porque não queria poder ser responsabilizada por entrar numa missão diplomática estrangeira, à revelia da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. A operação de entrada teve contornos "de filme". Minutos depois, constatou-se que os assaltantes - porque se tratava de um roubo - haviam saltado pelas traseiras para a neve, fugindo através de quintais vizinhos. Provavelmente, haviam-no feito ainda antes da chegada da polícia. Tinham assaltado também um dos outros escritórios. No nosso caso, o roubo foi ínfimo, talvez devido ao facto de eu os ter interrompido.

Muita graça teve a atitude do meu embaixador. Homem dado a teorias conspirativas, que via agentes secretos por todo o lado, alimentou por dias as mais bizarras teorias sobre as motivações do assalto, chegando a sugerir a implicação de funcionários da embaixada, bem como de familiares do pessoal. A "aventura" não teria tido um mínimo de piada se não fosse essa sua especulação obsessiva e quase delirante. Debalde me esforcei por demonstrar a escassez de interesse que alguém teria de roubar os nossos "segredos". Pois sim! Quem vive vidrado em temas de serviços secretos nunca está disponível para aceitar que as coisas, na maioria das vezes, são muito simples.

O bicarbonato

Era a manhã de uma quinta-feira de Páscoa. Lembro-me bem porque, a partir da hora do almoço, o país público fechava: lojas, rádios e até os cafés passavam a regime atenuado, nesse Portugal do final dos anos 50. Eu devia ter aí uns 11 ou 12 anos.

Por esse tempo, perto de minha casa, em Vila Real, havia uma pequena tabacaria, dirigida por uma figura com aquela "gravidade" que costuma atingir alguns homens de meia idade, sempre de fácies fechado, como que para serem levados a sério, cara de "poucos amigos". Embora criança, eu era, curiosamente, um desses "amigos". Passava por lá muito tempo, à conversa, sei lá sobre quê. Não obstante as mais de três décadas de idade que nos separavam, ele aturava-me. A boa letra que então tinha convertia-me também num seu benévolo "ajudante": escrevia-lhe parte da correspondência para as distribuidoras e para os serviços de expedição dos jornais, regulando encomendas e sobras. Em implícita troca de vantagens, eu lia lá pela tabacaria revistas que não tinha dinheiro para adquirir.

"Isilda, traz o bicarbonato!", ouviu-se, nesse dia, do lado de fora da porta. Era o dono da tabacaria a chegar, montado na sua Zundapp, fumegante e ruidosa, com uma caixa de madeira na parte de trás, de onde emergiam os rolos de jornais, que tinha ido buscar ao comboio.

(Eu deliciava-me com a abertura desses rolos, sempre embrulhados em jornais antigos. Por ali vinha a imprensa desportiva, mas também os jornais diários, além do "O Século Ilustrado" e a "Flama". Para mim, à época, os interesses eram outros. Eram, essencialmente, as revistas brasileiras de histórias "aos quadradinhos", desde os "cowboys" às publicações da Disney. Do que era editado em Portugal, a minha prioridade ia para o "Cavaleiro Andante", o "Mundo de Aventuras", o "Condor Popular" e coisas assim. O "Tintim", antecedido do "Foguetão", ainda não tinha surgido e o meu gosto pela "Crónica Desportiva" e pela "Plateia" ainda estava por surgir.)

O nosso homem entrou na loja, com o boné de felpo de que nunca se separava, os rolos de jornais sob o braço. Pousou-os ao longo do balcão que enchia toda a largura da loja. A Isilda, mulher de carrapito e abundante buço, com ar mais velho do que ele, atenta e veneradora, já vinha com o copo borbulhante do bicarbonato, que iria atenuar as azias estomacais do marido, cujo excesso de álcool era por demais evidente. Coisa habitual, diga-se, sempre potenciando o seu mau génio, de que a mulher e os filhos eram um alvo regular. O homem bebeu o copo de líquido esbranquiçado de um trago.

Tempo de Páscoa, a Isilda ousou revelar: "Encomendei um folar, ali na padaria". O que ela foi dizer! Foi o pretexto de que o marido estava à espera para explodir o seu mal-estar. Um bofardo desancou a cara da Isilda, que andou uns metros para o lado, recuperando-se da dor e da vergonha pelo meu embaraçado testemunho da cena. Por entre um chorrilho de insultos à mulher, o homem mal dera por mim. Discretamente, esgueirei-me para a rua, para não assistir às cenas dos próximos capítulos. Durante uns dias, não voltei a passar por lá. Depois, o apelo das revistas foi mais forte e, uma tarde, regressei. Fui acolhido com um sorriso triste da Isilda, meio cúmplice.

Era assim, o Portugal de então. Terá mudado muito? Nunca mais esqueci esse episódio de Páscoa.

sexta-feira, abril 18, 2014

Desilusão


Nunca na vida adquiri um bilhete de lotaria, só na adolescência me lembro de ter jogado no Totobola, há muitos anos entrei uma vez ou outra no Totoloto em grupos e por forte insistência de amigos, não compro raspadinhas e não faço a menor ideia de como se aposta no Euromilhões. Não frequento casinos nem aposto rigorosamente em nada que envolva dinheiro. Não jogo na bolsa, não sou proprietário de nenhuma ação nem de uma única obrigação. O dinheiro que tenho e ganho devo-o apenas meu trabalho, não à sorte. 

Mas ontem senti um "frisson" de alguma desilusão quando vi que nenhuma das minhas faturas fora premiada com um automóvel. Porquê? Porque esperava (esperava?) que o que ainda nos sobra de Estado, depois da ação desta "comissão liquidatária" que o dirige, tivesse a dignidade, através desse sorteio, de me devolver um pouco do que me anda a espoliar nos últimos anos. Apenas por isso.

García Márquez

Há quase década e meia, circulou pela internet uma carta atribuída a Gabriel García Márquez, que era como que a despedida da vida de um homem em estado terminal. O texto era muito bem escrito, embora talvez demasiado "piegas" para ser do autor do "Cem anos de solidão", e teve um imenso sucesso no circuito (infernal) dos reencaminhamentos. No que me toca, recebi-o de vários amigos e conhecidos. Já não "podia" com a carta...

Não tardou muito a constatar-se que, afinal, o texto não era de García Márquez, era apenas uma genial invenção de alguém suficientemente dotado para poder ter uma escrita com uma qualidade suficiente para poder ser confundida com a do romancista colombiano. O próprio García Márquez veio a terreiro desmentir a autoria da carta - a qual, nem por isso, deixou de circular, de quando em vez. Só faltou a García Márquez dizer, como Mark Twain, que "as notícias sobre a minba morte são manifestamente exageradas".

Há pouco, vi nas notícias que García Márquez morreu. Alguma vez a história havia de coincidir com o boato.

A Revolução de Abril

Na tarde de 21 de abril, vou intervir no Congresso "A Revolução de Abril", organizado pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, a ter lugar no Teatro Nacional D. Maria II.

Faço parte de um painel sob o tema "Portugal no Mundo", moderado por Teresa de Sousa e integrado por Jorge Sampaio, José Fortes Bouzan, Pilar del Rio e Manuela Aguiar. José Madeiros Ferreira estava previsto para integrar este debate.

Para quem possa estar interessado, aqui fica o programa completo do Congresso.

quarta-feira, abril 16, 2014

Salazar e a emigração

Há cerca de ano e meio, em Paris, chegou ao meu conhecimento que ia ser publicada em francês uma tese universitária que refletia sobre atitude do salazarismo face à emigração. Contactei os editores e propus que o lançamento do livro fosse feito na embaixada de Portugal em Paris. Assim viria a acontecer.

Hoje, tive um grande gosto em estar presente na Fundação Mário Soares no lançamento em Portugal do livro "A ditadura de Salazar e a emigração", da autoria de Victor Pereira, tradução da obra original.

As intervenções de Irene Pimentel, que apresentou a obra, e do autor deram-nos conta de vários aspetos que o trabalho aborda, desde as ações de intimidação levadas a cabo pela polícia política portuguesa na comunidade emigrada à referência à importante questão, ainda muito pouco estudada, dos desertores e refratários da guerra colonial - uma temática que ainda vive abafada por um ambiente de incompreensível "incomodidade", que urge romper.

Uma nota final. O autor fez uma análise às intervenções públicas de Salazar, procurando nelas encontrar referências ao tema da emigração. E fez a impressionante constatação de que o ditador, perante uma realidade incontornável da vida portuguesa de então, manteve sempre um total mas significativo silêncio.

terça-feira, abril 15, 2014

Estratégia

 
Parece evidente que Portugal vive hoje sem uma estratégia nacional clara, contentando-se a vogar ao sabor da conjuntura e de agendas externas que não domina. Por essa razão, o país limita-se a reagir na base de um casuísmo que, frequentemente, torna inglórios esforços sectoriais, por mais meritórios que estes sejam. A sensação que Portugal projeta, no plano externo, é a de um país que está de tal forma condicionado pela urgência financeira que colocou todas as suas restantes opções numa espécie de "pousio", à espera de melhores dias. Um país assim é uma presa fácil para o oportunismo externo.

Com a ausência de um pensamento orientador para o país e a aparente falta de vontade de o promover, a crispação e a clivagem criadas face aos sectores políticos alternativos, bem como às forças económicas e sociais, veio agravar esta imagem de desorientação, de mera "navegação à vista", que é a forma mais lamentável de se exercer a responsabilidade de Estado. 

O que se passou com a "discussão" dos fundos do novo QREN foi bem revelador: em escassas semanas, pretendeu-se substituir, através de um modelo de "pareceres" e "consultas", um trabalho que deveria ter partido do cruzamento das novas disponibilidades com uma estratégia de Estado, previamente consensualizada, projetada no médio e longo prazos do novo quadro financeiro comunitário, que será o essencial do investimento público disponível para os próximos anos. 

A responsabilidade essencial desta falta de orientação pertence, como é óbvio, ao governo. Mas não só. Desde logo, parece insólito que o presidente da República, em face de uma grave situação de crise, não tivesse tido, durante os últimos anos, a iniciativa de promover uma reflexão nacional sobre as grandes opções para o futuro do país, para ela convocando as forças políticas, económicas e sociais. Nada disto tem a ver com o patético Conselho de Estado para discutir o "pós-troika" ou com a bizarra semana de conversas entre a maioria e o PS, numa espécie de recado de "entendam-se!" 

Num tempo tão turbulento, marcado pelo imediatismo da conjuntura, uma realização deste género - eventualmente apoiada no "conceito estratégico nacional" que uma comissão preparou para o governo em 2012 - poderia ter sido um valioso contributo para tentar consensualizar uma orientação para o país, válida para além dos ciclos políticos. E não se diga que o chefe do Estado não pode "meter-se" neste tipo de iniciativas: pelo contrário, a sua legitimidade política própria exige que exerça o seu papel para além da "espuma dos dias". Caso contrário, ficará condenado a que seja questionada a necessidade do presidente ser eleito pelo voto popular, bastando-lhe ser uma simples emanação da maioria parlamentar.

Termino com um reflexo externo desta evidente falta de estratégia. Na Europa, "ouve-se" há três anos o silêncio de Portugal, nota-se o olhar oficial angustiado para Berlim, a preocupação em furtar-se a qualquer política de alianças que possa ser menos bem vista pelos detentores da "safety net" que o governo acredita que os alemães nos estenderão, se alguma coisa "correr mal". No mundo, retraímos o dispositivo e a ação diplomática e hoje apenas "vendemos o país", limitados a uma imagem de "Oliveira da Figueira". É pouco e é triste. Portugal merecia melhor.

Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, abril 14, 2014

Gdansk

Olhando para a coleção de selos que, durante anos, me ajudou a desenhar a geografia política do mundo em que ia viver, o meu pai falava-me de Dantzig, a cidade mártir, do seu "corredor", cuja ocupação pelos alemães lançou a 2ª Guerra mundial. Dantzig tinha selos próprios, como "cidade livre" que chegou a ser. Ainda possuo alguns.

Decorreram uns anos. Dantzig já era designada pelo nome polaco de Gdansk. Vivia eu na Noruega e, em 1980, a cidade passou a ser o lugar onde nasceu o Solidarnosć, onde surgiu Lech Walesa à frente de uma revolta que iria abalar, ainda mais, os alicerces do muro que estava prestes a cair em Berlim. 

Quase duas décadas depois, acompanhei Jorge Sampaio numa viagem de Estado à Polónia. No roteiro figurava, como não podia deixar de ser, uma deslocação a Gdansk, a capital da Pomerânia polaca, onde nasceram Schopenhauer e Gunter Grass. Confesso que cuidei mesmo em que passássemos pelo estaleiro "Lenin", onde a revolta tivera o seu início.

(Devo dizer que então estranhei - e disse-o - que Lech Walesa não tivesse sido associado a nenhuma das cerimónias oficiais, como antigo presidente do país. A minha estranheza foi, contudo, recebida com uma reação por parte dos nossos anfitriões: Walesa já não era uma figura muito popular, a imagem "heróica" que dele sobrevive no imaginário oficial internacional não parece ser acompanhada internamente, um pouco ao jeito da de Gorbachev, na Rússia de hoje. "Vocês convidam o Otelo para as cerimónias oficiais?", perguntou-me ironicamente um amigo polaco com alguma memória lusitana.)

Estou desde ontem por Gdansk. Já ninguém fala de Walesa. Só me falam da Ucrânia, aqui já ao lado. A uma escassa centena de quilómetros da cidade está o enclave russo de Kalininegrado. A Polónia é hoje um país a que a sua trágica geografia induz preocupações bem concretas. Mesmo que eu próprio possa discordar de algumas avaliações que por aqui são feitas (ouvi-as, idênticas, na passada semana, em Varsóvia), em torno de certas opções geoestratégicas do Ocidente, tenho sempre um profundo respeito pelo sentimento de quem sofreu "muita História".

domingo, abril 13, 2014

MRPP

Existe uma "fórmula" quase imbatível para avaliar o destino dos antigos militantes do MRPP: os que ingressaram no partido antes do 25 de abril, estão em geral à esquerda; os que aderiram post-25 de abril estão à direita. 

Façam o teste com os vossos amigos e conhecidos.

Em mirandês...

Não sem algum orgulho, descobri há pouco isto no blogue Froles Mirandesas:

Yá ye tiempo de ampeçarmos a celebrar nós tamien (depuis de Válter Deusdado que tubo l'einiciatiba) l 25 de abril… que deberie de ser «ua fiesta» cumo screbiu hai dies, nun de ls sous artigos, Francisco Seixas da Costa, ex-ambaixador de Pertual an França. 

Em tempo: e o blogue mirandês reagiu

sábado, abril 12, 2014

Assunção

Vi na televisão a dra. Assunção Esteves dizer que a ida ou não dos capitães de abril a S. Bento no 25 de abril "é um problema deles". É capaz de ter razão. Para mim, é claro: com mais esta declaração, a dra. Assunção Esteves confirmou ser um problema nosso. Dos portugueses.

Cidadania

"Presidi" ontem, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), a um interessante exercício de mobilização de cidadania, que envolveu várias dezenas de pessoas com perfis muito diversos. Tratou-se do Fórum de Vila Real, uma iniciativa que reproduziu idênticos eventos numa dezena de cidades. Nas cerca de quatro horas que o exercício durou, que tinha como pano de fundo os 40 anos do 25 de abril, os participantes dedicaram-se a identificar iniciativas, práticas e viáveis, para promover a cidadania e reforçar a participação democrática. O meu papel foi identificar uma temática entre as várias sugeridas, colocando os interventores a discutir modelos de realizações, sem grandes custos nem necessidade de novas estruturas. Agora, resta verificar o que vai sair deste trabalho. Mas, devo dizer, depois de alguma perplexidade e até ceticismo que inicialmente alimentei sobre o mesmo, fiquei convencido de que há uma reserva de boa vontade e até de utopia que mostra que subsiste ainda um Portugal bem acordado e com uma generosidade solidária. Graças ao 25 de abril, diga-se.

sexta-feira, abril 11, 2014

Injustiças

Acabo de ler: Cristiano Ronaldo foi consultar ao Porto o famoso ortopedista José Carlos Noronha e veio de lá com a certeza de que o problema do seu joelho é simples e sarável.

Esta vida não é justa: há dias, o meu joelho foi visto, uma vez mais, por esse "mago" portuense e a conclusão foi precisamente a oposta. 

C'os diabos! Já não há justiça?!

Assuntos Europeus

O "Le Monde" sublinha hoje o facto de a França ter tido, nos últimos 12 anos, precisamente 12 titulares da pasta dos Assuntos Europeus, nos seus governos. É, de facto, impressionante, esta rotação intensa, num posto governamental para o qual, curiosamente, se exige uma preparação algo específica. Em princípio.

Em Portugal, a nossa experiência não é tão "rica". Entre a entrada para as Comunidades Europeias, em 1986, e 2001 (15 anos), houve apenas dois titulares (um por cerca de 10 anos e outro por pouco mais de cinco anos). Depois disso, isto é, nos últimos 13 anos, tomaram posse entre nós oito titulares dos Assuntos Europeus. Não é o mesmo "ritmo" da França, mas não deixa de ser um número significativo.

A estrutura que, entre nós, o secretário de Estado dos Assuntos Europeus tutela em prioridade tem-se mantido com uma certa estabilidade, desde 1986. Depois do período da Adesão, começou por chamar-se Direção-Geral das Comunidades Europeias, depois dos Assuntos Comunitários, para agora ser dos Assuntos Europeus. A sua estrutura interna teve algumas variações ao longo destes 28 anos, fruto da evolução da leitura quanto ao modelo de coordenação de certos setores com atuação na área europeia. Porém, o setor dos Assuntos Europeus tem sido, ao longo destes anos, um pilar muito sólido, quer no seio do Ministério dos Negócios Estrangeiros, quer na sua interlocução com as diversas áreas da nossa Administração Pública. No meu caso pessoal, foi um orgulho ter servido nessa casa, em três diferentes cargos de chefia, num período total de quase nove anos.

Palhaçada

Não gosto muito de usar estes termos para uma data a que estou ligado afetivamente, mas acho que a polémica que se está a criar em torno da comemoração dos 40 anos do 25 de abril ameaça converter, uma vez mais, uma evocação que deveria ser festiva numa triste romaria de discursatas, com aproveitamento oportunista por todos, para efeitos políticos de conjuntura. Continuo a pensar o que sempre pensei: o 25 de abril deveria ser comemorado como uma grande festa popular, como uma elegia à liberdade, com o povo na rua numa grande celebração coletiva. Sem um único discurso.

O que, uma vez mais, vai acontecer em São Bento é uma espécie de "assembleia geral" anual do 25 de abril, com os vários "accionistas" a fazerem uma avaliação do "relatório e contas" apresentado pela administração de plantão. Cada um fará o seu "número", uns aproveitando o ensejo para denunciar os "desvios" ao "espírito" de abril, outros tentando passar por entre os pingos das críticas, disfarçando mal a forma como historicamente sempre conviveram com o significado da data. Como há uma eleição à porta, o ensejo irá funcionar como um despudorado tempo de antena de campanha, com os tenores escolhidos a preceito, tentando tirar efeitos cénicos para conquista de prosélitos, para o voto que aí vem.

Os "media" do país europeu com mais canais televisivos de "informação" explorarão, até à exaustão, as "nuances" e as contradições dos adjetivados pronunciamentos, a começar pelo penúltimo texto a ser lido na ocasião pelo ocupante de Belém, que é sempre um "must" na exegese da maratona declaratória da data. De passagem, ouvirão os ex-capitães, todos bem cravados ao peito, irados como lhes compete com a retirada da sua palavra na cerimónia, alguns remoendo patéticas ameaças de um "remake". Os da esquerda mostrarão a sua "indignação" com essa injustiça, os do "outro lado" ("esquerda" assume-se, "direita" esconde-se; por que será?) desvalorizarão o facto, com o argumento de que ninguém é "proprietário" da Revolução - também não lhe chamarão assim, claro, em especial não utilizarão a maiúscula.

Ao final do dia, aquela que deveria ser uma festa da liberdade, acabará transformada num gigantesco "Prós e Contras", com Fátima Campos Ferreira substituída, sem especial vantagem, por Assunção Esteves. Depois queixem-se de que as novas gerações se sentem cada vez mais desligadas do 25 de abril!

quinta-feira, abril 10, 2014

O "22 de Paio Pires"

Há dias, num debate, tive uma ideia "peregrina": falar do "22 de Paio Pires". Havia uma boa razão para isso: estava a tomar a palavra perante um auditório da localidade de Paio Pires. Mas que diabo é o "22 de Paio Pires", perguntarão alguns? Pois é, leitor, foi pela certeza de que a esmagadora maioria do auditório de Paio Pires, ao qual eu falava, não fazia a mais leve ideia do que era o "22 de Paio Pires" que decidi não abordar o tema. Esta é, portanto, desculpem lá!, uma histórieta sobre um "não evento".

O "22 de Paio Pires" foi um divertidíssimo "sketch", interpretado por um ator de que a maioria dos leitores deste blogue também nunca ouviu falar: Humberto Madeira (1921-1971). Madeira tentava ligar para o número de telefone 22 da localidade de Paio Pires e, sequencialmente, saiam-lhe à linha uma diversidade de interlocutores errados, o que tornava a conversa hilariante. 

Falo disto pela circunstância, que cada vez mais me acontece, de ter de cuidar, em conversas ou intervenções públicas, em escolher referências que possam ser entendidas pela generalidade das pessoas presentes. Sei que isto é claramente uma questão etária, mas confesso que começa a ser angustiante ter de olhar em volta, medindo o conhecimento médio do auditório, antes de citar um facto, um autor ou fazer uma graçola com base numa citação.

Tempos atrás, comecei a contar num grupo de jovem colaboradores uma história relacionada com Pedro Moutinho, uma das mais populares figuras da rádio dos anos 40 a 60. Conheci Moutinho bastante bem, já depois do 25 de abril, em circunstâncias curiosas - mas só relevantes em função do conhecimento do passado de Pedro Moutinho. Ele deixara de ser locutor e fora mesmo algo hostilizado pelo regime democrático. A certo passo da minha narrativa, pela cara dos presentes, dei-me conta de que estava a fazer verdadeira "geometria no espaço". Ninguém ouvira alguma vez falar de Pedro Moutinho, pelo que a minha historieta pessoal com este último não tinha, aos seus ouvidos, a menor relevância. Os sorrisos simpáticos que dedicavam ao que lhes dizia relevavam mais de uma piedosa tolerância do que de uma genuína atenção. Aprendi a lição. 

Talvez por isso, abstive-me de contar o episódio do "22 de Paio Pires". Mesmo em Paio Pires. 

quarta-feira, abril 09, 2014

A memória de Jouyet

Jean-Pierre Jouyet, antigo secretário de Estado dos assuntos europeus de Nicolas Sarkozy, acaba de ser nomeado secretário-geral da Presidência da República francesa. Trata-se de um lugar da maior importância no xadrez político de Paris. Jouyet é um homem muito próximo de François Hollande, um dos seus maiores amigos, e já em 2012 o seu nome "corria" para o cargo. É uma figura de uma extrema cordialidade, com quem criei uma ótima relação, com uma leitura muito interessante do papel da França na Europa. Numa sociedade tão polarizada como a francesa, diz muito da sua qualidade o facto de ter sido aceite a sua "travessia" da fronteira esquerda-direita, isto é, integrar o "core" do poder socialista depois de ter pertencido ao governo de Sarkozy. Para quem conhece a França, é obra!

No termo da presidência francesa da União Europeia, em 2008, Jouyet publicou um livro que passou praticamente despercebido na vaga da literatura "de conjuntura" em que a França é fértil. Chamava-se 'Une Présidence de Crises". A certo ponto do livro, Jouyet critica fortemente a Comissão Europeia sobre a gestão da crise de 2008. Passo a traduzir um extrato significativo: "Ela (a Comissão) deveria ter antecipado muito mais e ter modificado a sua linha da conduta muito mais cedo. Na sexta-feira (10 de outubro de 2008), enquanto que Fortis (importante instituição financeira do Benelux) está à beira da falência, José Manuel Barroso, que eu cruzo em Nova Iorque, quase que se ri de mim: "Jean-Pierre, estás enganado, diz-me ele. Não é necessário alarmar as pessoas. Trata-se, antes de tudo, de uma crise americana". Viu-se!

Lei da rolha

Pinto da Costa foi suspenso por criticar a atuação de um árbitro. Sou insuspeito da menor simpatia pelo FCP, mas espanta-me que a sociedade portuguesa conviva sem uma revolta com esta verdadeira ditadura da "justiça" desportiva, que impede que um dirigente, seja ele quem for, possa considerar má ou medíocre, em público, uma arbitragem, ou tenha uma livre opinião sobre aspetos da prestação de um cavalheiro do apito, no pleno uso da liberdade que a lei comum concede a todos nós. É claro que, se na formulação dessas críticas, alguém vier a atingir a honorabilidade da pessoa do árbitro, lá estarão os tribunais comuns para julgar a eventual ofensa. 

Esta "lei da rolha" que vigora nos órgãos futebolísticos - e atinge jogadores, treinadores e dirigentes - é em absoluto contrária à liberdade constitucional de expressão ganha no 25 de abril. E por que será que ninguém fala disto?

João Paulo Guerra

A Sociedade Portuguesa de Autores atribuiu ontem o prémio "Igrejas Caeiro", dedicado a uma personalidade destacada da rádio portuguesa, a João Paulo Guerra. Por lá estivemos, amigos, familiares e admiradores do João, a dar-lhe o merecido abraço.

Foi uma cerimónia simples, talvez demasiado simples, pelo menos para o meu gosto. Senti pena que a SPA não tivesse cuidado em aproveitar este ensejo para criar um momento que permitisse sublinhar devidamente o notável percurso radiofónico de João Paulo Guerra, enquadrando os seus diversos tempos na rádio com o trabalho desenvolvido em jornais, relevando também a sua obra publicada e, porventura, recortando alguns aspetos mais interessantes do próprio perfil pessoal do homenageado. João Paulo Guerra foi e é uma figura de primeira grandeza na rádio em Portugal. Se este prémio da SPA o honra a ele, o contrário também não deixa de ser verdade.

Em tempo: ouçamos o João Paulo aqui.

terça-feira, abril 08, 2014

Benita Ferrero-Waldner

Era o dia dos meus anos, naquele início de 2000. Fazia um périplo pelas capitais europeias para tentar ultrapassar as dificuldades surgidas no arranque das negociações da Conferência Intergovernamental que iria fixar o Tratado que viria a chamar-se de Nice. Vinha de Estocolmo e o Falcon, já de regresso a Lisboa, parou em Madrid, onde eu iria ter um encontro com o meu colega, o secretário de Estado espanhol dos Assuntos Europeus, Ramón de Miguel.

À saída do avião, tinha dois recados.

O primeiro era de Lisboa: no termo da reunião com os espanhóis, deveria fazer uma declaração à imprensa sobre a decisão da Áustria de constituir um governo que incluía um partido de extrema-direita, que fora anunciada na noite anterior. Competia-me explicar o modo como a presidência portuguesa da União Europeia via a questão, que já estava a agitar toda a Europa.

O segundo recado era mais intrigante. O meu colega espanhol mandava avisar-me que a indigitada nova ministra dos Negócios Estrangeiros austríaca, Benita Ferrero-Waldner, estava secretamente de visita a Madrid e queria encontrar-se comigo, de forma discreta.

Eu conhecia Benita muito bem. Ela fora, até então, responsável pela pasta dos Assuntos Europeus no governo do seu país e havíamos criado, ao longo de quase cinco anos, uma excelente relação pessoal. Viera recentemente a Lisboa, a meu convite, e recebera-me em Viena, em anos anteriores. Diplomata de carreira, antiga chefe de protocolo das Nações Unidas, é a mais latina de todos os austríacos que conheci, o que seguramente se fica também a dever ao facto de ser casada com Francisco, um simpático espanhol. Benita, aliás, fala um impecável castelhano.

Sem revelar o inesperado encontro que ia ter aos três jornalistas que me acompanhavam - Alexandra Marques, Lassalete Marques e Paulo Nogueira -, fui discretamente falar com Benita numa sala do Palácio de Santa Cruz, as "Necessidades" espanholas. O que foi dito nessa conversa fica para ser analisado em outra altura. Apenas posso dizer que foi algo difícil compatibilizar essa conversa com a declaração que, depois, tive de fazer na conferência de imprensa.

Este e outros episódios desse tempo complexo foram ontem lembrados por ocasião de um jantar em Lisboa, a que Benita esteve presente, juntamente com Luís Amado, outro dos seus amigos portugueses. Ela teve a simpatia de recordar o modo natural como Jaime Gama e eu próprio a acolhemos no primeiro Conselho de Ministros da UE a que assistiu já como MNE, contrastando com a atitude de muitos outros colegas, que positivamente a ignoraram. Disse-me que nunca esqueceu esse nosso gesto e estou em crer que talvez isso tenha contribuído para que a sua primeira visita a um parceiro comunitário, após o levantamento das "sanções" à Áustria, tivesse sido a Portugal.

Benita Ferrero-Waldner ficou vários anos como ministra. Encontrei-a por diversas vezes em Viena, quando por lá trabalhei junto da OSCE. Viria a ser ainda comissária europeia, tendo tido um papel essencial na questão da parceria estratégica com o Brasil, aquando da nossa presidência de 2007. Hoje dirige uma fundação para as relações entre a Europa e a América Latina, com sede em Espanha.

(Quem tiver curiosidade sobre o tema das sanções à Áustria em 2000, pode consultar aqui e aqui)

segunda-feira, abril 07, 2014

A entrevista de José Sócrates

Se a RTP pretendia aumentar as audiências do programa "A entrevista de José Sócrates" (estou em crer que o nome "A opinião de José Sócrates" não pode sobreviver por muito tempo, no formato atual) tê-lo-á conseguido plenamente. O episódio de ontem foi delicioso para quem a ele assistiu e, agora, todos aguardaremos as cenas dos próximos capítulos.

A vida e a curva

Ontem, na festa de aniversário de um amigo - um tempo de reencontro e também de poesia - alguém lembrou este belo poema de Alberto Caeiro. Já o não ouvia há uns bons anos, mas fez-me muito bem recordá-lo.

Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.

domingo, abril 06, 2014

As mulheres e a Europa

Quando andei pelos assuntos europeus, as mulheres eram largamente predominantes nos cargos técnicos especializados. Na primeira estrutura criada aquando da nossa adesão às Comunidades, trabalhei num "open space" rodeado de colegas femininas, apenas com um outro homem em toda a imensa sala. Fui, aliás, o primeiro funcionário diplomático, na história do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a ser chefiado por uma técnica, exterior à carreira. Anos mais tarde, no meu gabinete, quando membro do governo, chegou a haver um período em que, salvo os motoristas, só tinha mulheres a trabalhar comigo - chefe de gabinete, adjuntas, assessoras e pessoal administrativo. Nas minhas funções, aliás, foram muito raros os homens que nomeei para lugares de chefia.

Lembrei-me disto ontem, num colóquio sobre a Europa em que participei. Além de mim, todas as restantes quatro intervenções especializadas foram de mulheres. Aliás, magníficas prestações. As mulheres continuam "a dar cartas" nos assuntos europeus.

sábado, abril 05, 2014

Isto anda tudo ligado

"Os guerrilheiros que saem do Vává benzem-se à sua maneira, como se a próspera guerrilha se fundasse em qualquer casa além da linha. Sábios de nascença citam nomes e têm decorada uma biblioteca, tal qual alguns desenraizados do Saldanha - mas de modo diferente. Abotoam-se com esmero e engravatam-se ou não conforme as circunstâncias. Os guerrilheiros que entram no Vává usam as citações à bandoleira e telefonam com muita assiduidade."

(Excerto de "Isto anda tudo ligado" (Lisboa, 1970), do poeta e flaviense Eduardo Guerra Carneiro, que dedico ao comentador ARD)

sexta-feira, abril 04, 2014

Kumba Ialá

Morreu Kumba Ialá, antigo presidente da Guiné-Bissau.

Um dia de 2001, na ONU, em Nova Iorque, estive presente, em representação de Portugal, numa reunião do grupo "amigos da Guiné-Bissau". O novo presidente guineense fora convidado a fazer uma apresentação sobre a situação no seu atribulado país, com vista a mobilizar a boa vontade e a ajuda da comunidade internacional. O tempo que lhe fora destinado para intervir foi largamente excedido, mas o seu discurso tinha coerência e demonstrava uma determinação no sentido da correção de algumas políticas, tudo envolvido num registo muito típico, desde logo marcado pelo barrete de lã vermelha que nunca o abandonava.

Com o meu colega brasileiro, Gelson Fonseca (atual cônsul-geral do seu país no Porto), e para potenciar o efeito positivo da reunião, combinei duas intervenções sucessivas de apoio à declaração do presidente, procurando dar ênfase à sua expressiva vontade de mudança. Outros embaixadores, em especial de países "do Sul", seguiram uma linha idêntica e, a meio da reunião, o ambiente podia considerar-se globalmente positivo, quiçá apenas com as reticências face à sustentabilidade das políticas que algumas lideranças africanas, em especial oriundas de países mais frágeis, nunca deixam de suscitar.

O delegado de um país do Norte da Europa abordou entretanto a sensível questão da corrupção. Notei que Kumba Ialá ficou muito atento à intervenção e, no imediato, pediu para responder. Com ênfase, marcou a sua firme determinação em pôr fim ao flagelo da corrupção no seu país. E, a certo passo, agarrando firmemente o ombro da ministra dos Negócios Estrangeiros, que estava a seu lado, disse, bem alto:

- Vou ser muito duro, podem acreditar. Por exemplo: aqui a senhora ministra. Se eu vier a descobrir que ela rouba, que é corrupta, podia mandar matá-la. Mas não, não a vou mandar matar! Mas vai levar tanta porrada, tanta pancada, que nunca mais vai querer roubar. Mas ele não rouba, não! - e dizia isto, contemporizador, abanando a constrangida ministra, que afivelava um sorriso que quero crer que seria amarelo...

Kumba Ialá falava em português e, na sala, para além do embaixador brasileiro e de mim próprio, que tínhamos olhado um para o outro algo preocupados com o facto do presidente poder ter "estragado tudo" com estas palavras, creio que só a intérprete que ia traduzindo as intervenções do presidente se inteirara do teor da comprometedora declaração. Contudo, a coreografia e o tom de Ialá tinham criado uma particular curiosidade nas restantes pessoas à roda da mesa, que aguardavam a tradução.

A intérprete, consciente da delicadeza do momento, olhou para mim, em busca de "ajuda" para superar o problema. Fiz-lhe um gesto discreto, a pretender significar a necessidade de "adocicar" fortemente as embaraçantes frases do presidente. E foi então que assisti a uma magnífica demonstração de profissionalismo, com a senhora a dizer algo como: "Mr. President wants to emphasize that corruption, in his country, is not punished with death penalty. Nevertheless, under his leadership strong mesures will be taken against those who may incur in such practices, even if they are members of his own government".

Olhei para o meu colega brasileiro e demos um suspiro de alívio. No final, dei uma palavra de parabéns (e gratidão) à intérprete. Tinha-nos ajudado a salvar a sessão. Uhf!

Em tempo: quando escrevi esta historieta, estava longe de pensar que me encontraria, logo dois dias depois, num almoço, com o meu querido amigo Gelson Fonseca, com quem me ri do episódio.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...