Foto de Alexandre Almeida
(O 4° governo provisório, que o PS e o PPD tinham abandonado, estava no seu estertor. Vasco Gonçalves fazia convites para o 5° governo, falhada que fora a hipótese do chamado "governo Fabião", uma construção melo-antunista que nunca chegaria a ver a luz do dia, por oposição da "esquerda militar" (leia-se, os oficiais próximos do PCP). Os socialistas estavam furiosos com o "companheiro Vasco", que, não sem alguma razão, consideravam um dos principais culpados da radicalização que o país atravessava. Os militares que eram considerados como próximos dos socialistas, o "grupo dos nove", tinham acabado de tornar público um "documento" que consagrava uma importante rutura dentro do Movimento das Forças Armadas. Os dias iam complicados, nesse "Verão quente".)
Gaspar olhou os circunstantes e, não me conhecendo, disse alto, apontando-me: "este tipo é de confiança?" Os sorrisos ou alguma palavra do Nuno Brederode ou do António Franco tê-lo-ão sossegado. (Na realidade, eu não era totalmente "de confiança". Não sendo um "gonçalvista", também não me revia então na linha dos "nove", mas os meus amigos sabiam-me discreto). Contou que um outro diplomata, então diretor-geral, Magalhães Cruz, tido como simpatizante de esquerda, havia recusado o posto de MNE. Julgo que era essa a aposta dos socialistas: nenhum diplomata aceitar ser ministro nas Necessidades, num governo Vasco Gonçalves. Isso iria acontecer. O lugar acabou por ser ocupado por Mário Ruivo. E, curiosamente, eu iria ser indicado para o seu gabinete, só não tendo tomado posse porque, breves semanas depois, o 5º governo "caiu".
Foi esse o dia em que conheci Luís Gaspar da Silva, que me disseram que morreu hoje.
Nunca fui seu íntimo, mas mantinha com Gaspar - era assim que a casa o conhecia - uma relação muito cordial, com ele a insistir que nos tratássemos por tu e eu sempre a recusar deixar de chamar-lhe "senhor embaixador". Fomo-nos encontrando pelas várias cidades onde a sua carreira diplomática e política (foi secretário de Estado da Cooperação num governo socialista) o levou.
Dele já contei duas histórias neste blogue. Que hoje deixam de ser anónimas.
A primeira é a da sua fantástica apresentação de credenciais como embaixador no Nepal, por ele próprio relatada numa divertida noite, em minha casa, em Luanda. Pode ser lida aqui.
A segunda historieta é também um "must" das Necessidades. Nela contei o resultado de um dos famosos amplexos que Gaspar dava aos amigos, em gestos de afetividade física que ficaram na memória da casa.
Conta-se um outro episódio no dia do funeral de Agostinho Neto, em 1979, em Luanda. Gaspar acompanhava Ramalho Eanes. Esperava-os Lúcio Lara, o nº 2 formal do regime. Gaspar e Lara tinham convivido, nos tempos da universidade, em Coimbra. Forte da sua velha relação, Gaspar abriu os amplos braços para dar um abraço "dos seus" ao antigo amigo. Porém, por esses dias, as relações luso-angolanas não estavam (uma vez mais...) no melhor momento. Aceitar o gesto de Gaspar seria, para Lara, ser visto numa coreografia afetiva que poderia dar lugar a especulações. Disse-me quem viu que a cena foi de antologia. O nosso diplomata, com a sua imensa corpulência, tentou forçar um amplexo. O franzino Lara resistiu quanto pôde, mantendo o seu antigo colega da "Via Latina", a revista coimbrã onde ambos haviam rimado líricas, à conveniente distância, não apenas física mas também política.
Gaspar da Silva convidou-me um dia para ser seu nº 2 em Paris, lugar que, por razões que não vêm para o caso, não pude aceitar. E seria aqui em Paris, onde casualmente estou hoje e ele foi embaixador durante vários anos, precisamente na mesma sala onde agora escrevo esta memória, ao correr da tecla, que dele guardo a última imagem, em abril de 1988, na noite de uma eleição presidencial francesa. Estava toda a gente à volta da televisão. Vicente Jorge Silva estava na sala, de visita. Homem de certezas, Gaspar adiantava-nos percentagens "seguras", de fonte "limpa", credibilizando-as com a frase: "deu-mas o meu 'américas' ", aparentemente um contacto fiel que tinha na embaixada americana em Paris. Não faço ideia se acertou.
Por coincidência, e ao que me recordo, poderá ter sido essa a última vez que o vi. Há mais de um quarto de século. Trocámos cartas anos mais tarde, mas nunca mais nos encontrámos. Deixo aqui os meus sinceros sentimentos à sua família.