sexta-feira, novembro 16, 2012

Ainda a greve

No dia da greve, acompanhado apenas pelo conjunto de diplomatas que comigo trabalham, dei comigo a pensar que, em toda a minha vida profissional - e serão 41 anos completos no próximo domingo - nunca fiz um dia de greve. E, não obstante, fui, durante algum tempo, dirigente sindical no Ministério dos negócios estrangeiros.

Confesso que frequentemente tive vontade de faltar ao trabalho, para acompanhar justos protestos coletivos a que, intimamente, muitas vezes me associei. Mas sempre pensei a vida de um diplomata como um "full-time job", um serviço público que funciona como uma espécie de "urgência" hospitalar, que não pode fechar, 24 horas por dia, 365 dias por ano.

Nos diversos locais do mundo onde trabalhei, não recordo alguma vez ter hesitado em atender uma situação de emergência, a qualquer hora do dia ou da noite, nunca recusei ir trabalhar a um sábado, domingo ou feriado, nunca me passou pela cabeça pedir horas extraordinárias ou compensações por isso. 

Serei um caso único? Longe disso! Conheço muitos colegas - melhor: trabalho aqui em Paris, hoje em dia, com alguns, bem mais jovens do que eu - que têm exatamente esta mesma perspetiva do serviço público, esse orgulho raro de servirem um "patrão" que consideram diferente dos outros. 

Só espero que, no futuro, esses colegas não venham a ter razões para virem a pensar de forma diferente.

quinta-feira, novembro 15, 2012

Vária

1. Ontem, olhava distraído para a televisão, "zappando" entre canais. Como, por deliberada opção pessoal, não tenho acesso à nossa televisão (excepto as inenarráveis RTP internacional e SIC internacional, que vêm com o cabo francês), fixei-me num determinado canal, ao ouvir um filme falado em português. A representação era patética, teatral no mau sentido, com uma implausibilidade de cenas que raiava o absurdo, não obstante uma excelente imagem e alguns planos criativos. Fiquei a ver até ao fim, meia hora depois. Vim a constatar que era o "Singularidades de uma rapariga loira", que julgo ser uma adaptação do conto homónimo de Eça de Queiroz, que, recordo, tinha referências bem simpáticas às mulheres de Vila Real (não faço ideia se o filme as recupera). O realizador do filme era, como vim a constatar, Manoel de Oliveira. Embora talvez seja politicamente incorreto um embaixador de Portugal estar a escrever isto, face a um autor nacional tão celebrado por todo o mundo como é Oliveira, a honestidade leva-me a ter de confessar que achei o (que vi do) filme bem medíocre. Mas o defeito deve ser meu.

2. Desde há meses que, nas conversas que tenho com colegas e interlocutores franceses, tenho vindo a procurar sublinhar o caráter pacífico das manifestações que, em Portugal, têm tido lugar, por virtude da crise económica, subliminarmente tentando passar o contraste com o que vai ocorrendo noutras capitais, onde algumas reações assumiram, desde há muito, expressões bem mais violentas. A minha "inocência" acabou ontem, com as televisões europeias - e, no que me importa, as francesas - a mostrarem os desagradáveis incidentes em frente à Assembleia da República, com cargas de polícia, após as persistentes agressões e as inaceitáveis provocações de que os agentes foram objeto. Ou muito me engano ou, depois desta pouco salutar evidência de que, entre nós, os brandos costumes já foram arquivados, devo voltar a ser chamado a depor em algumas televisões francesas, agora que, de novo, aqui se "acordou" para o que se passa em Portugal. Ficaria muito satisfeito se assim não acontecesse, como se imaginará.

3. Luis Castro Mendes e Paulo Castilho, figuras prestigiadas da nossa diplomacia, recebem agora (e mais uma vez) prémios literários por obras suas, respetivamente nas áreas da poesia e do romance. Com Marcello Mathias, aqueles dois colegas fazem parte da "troika" de glórias da escrita de que muito nos orgulhamos, no seio da diplomacia portuguesa. Alguém me pode lembrar alguma outra carreira do serviço público português de onde, nos tempos que correm, tenham saído escritores premiados? Eu não conheço...     

quarta-feira, novembro 14, 2012

O chato

- Ó diabo! Vem ali o Castanheira!

O comentário feito pelo chefe de repartição, dirigido ao diretor-geral, quando ambos saíam para o almoço, alertava para um perfil rotundo, algo bamboleante, que, ao fundo, se aprestava para circundar o jardim central do pátio das Necessidades.

O Castanheira era um daqueles funcionários, entre o caricato e o patético, que o ministério, para não ter de enfrentar a sua óbvia inadequação para ocupar lugares de responsabilidade na sede, optava por expatriar em serviço, esquecendo-o em consulados longínquos, na ilusão de que isso os tornaria inóquos para a imagem de uma carreira que, por incompetência e irresponsabilidade, os havia deixado entrar no quadro e, por cobardia e descuidada gestão de recursos humanos, não era capaz de isolar numa prateleira interna, para evitar piores males.

Os "Castanheiras" existem em todos os tempos do MNE, ganham lugares no quadro externo num qualquer "movimento diplomático" que deles acaba por ter piedade ("coitado! Tem tantos filhos..." ou "o homem já anda por aí há tanto tempo...") e, não raramente, fazem passar às comunidades portuguesas no exterior algumas vergonhas, além de transmitirem uma medíocre imagem do país que lhes caberia saber representar. Não são muitos, felizmente, mas, por muitos poucos se sejam, são em número demasiado para quem, como é o meu caso, nunca teve a menor complacência para contemporizar com tais situações. Quem conhece bem a carreira sabe do que e de quem estou a falar.

Vindo de férias a Lisboa, do lugar distante para onde o "conselho" o tinha mandado já há anos, o Castanheira avançava então, nesse dia de verão do final dos anos 70, com um fato claro de mau corte, que denunciava os tristes trópicos por onde agora pairava, em direção às duas figuras da hierarquia que saíam do palácio. Era um homem conhecido pelo verbo balofo, pelo caráter prolixo dos seus comentários, enfim, para sintetizar, por ser um inenarrável chato, uma lapa oral, daqueles que nos agarram a manga do casaco e colocam a mão sapuda no ombro, que aproximam a cara para reforçar a cumplicidade, fazendo-nos partilhar a riqueza odorífera do seu bafo.

Ora o diretor-geral, um embaixador da velha escola, era um exemplo conhecido de quantos, na sua consabida snobeira e pesporrência, não tinham a menor paciência para conviver com esse estilo de figuras, algo untuosas e fátuas. Tinha apenas uma vaguíssima ideia do tal Castanheira, fruto de anedotas que dele ouvira, na tradição oral de escárnio em que o MNE é useiro, vezeiro e cruel. Nunca tinha falado com ele e, francamente, não era agora que isso iria acontecer, como desde logo avisou o amigo com quem ia almoçar. Ora este, por infeliz coincidência, tinha entrado para a carreira no concurso do Castanheira, o que o não dispensava de uma saudação mínima ao colega expatriado e que há muito não via.

- É pá! Vê lá se nos libertas logo do homem! Dizem-me que é um cretino de altíssimo coturno... - sussurrou o embaixador, com o Castanheira já quase à distância de um cumprimento.

O encontro deu-se à saída do pórtico de acesso ao palácio, sob o olhar atento, venerador e obrigado do Matos, o digno porteiro que, à época, por aí oficiava, no lugar onde, nos dias de hoje, pairam umas fardas anónimas da Securitas, essa espécie de genérico funcional, em tempos de seca orçamental.

Ao abraço entre o Castanheira e o chefe de repartição, seguiu-se o inevitável:

- ... não sei se se conhecem: o Castanheira, que anda agora pela América Latina, e o senhor embaixador...

O Castanheira nem deixou o amigo terminar a frase:

- O senhor embaixador?! Essa agora! Quem o não conhece?! Tenho imenso prazer em encontrar vossa excelência. O senhor embaixador é uma figura referencial da carreira, é - permita-me que lho diga!- uma das personalidades que mais honra a nossa diplomacia. Tenho por vossa excelência uma incontida admiração e andava, há anos, por ter o ensejo de lho expressar em pessoa. É para mim um imenso privilégio poder conhecê-lo e cumprimentá-lo. E diria mesmo, agradecer-lhe o que tem feito por nós, pela nossa carreira, pelo prestígio da nossa profissão. Vossa excelência é um exemplo que todos procuramos seguir.

E o Castanheira, sempre ditirâmbico, continuou numa elegia gongórica sobre a figura do diretor-geral, lembrando os seus postos anteriores e os alegados feitos profissionais relevantes que bem ilustravam esse percurso. O amigo chefe de repartição só a custo conseguiu pôr cobro, ao final de uns minutos, a essa inesgotável verborreia.

Finalmente, lá se descolaram do Castanheira, que anunciou que ia ver umas "senhoras" ao "quarto andar", para tratar do telhado do consulado. "O senhor embaixador sabe, melhor do que ninguém, o que são essas coisas", deixou no ar, profissionalmente cúmplice, afastando-se, não sem uma respeitosa vénia ao superior hierárquico.

O chefe de repartição, aliviado, olhou para o diretor-geral e comentou: 

- Ó pá! Desculpa lá teres tido que aturar este tipo. É um chato, nunca mais nos desamparava a loja...

- Essa agora! Até te digo mais: fiquei bem impressionado com o rapaz! Este Castanheira pareceu-me simpático e articulado. Mudei a ideia que me tinham criado dele. Como é que ele está na lista de antiguidade? Não lhe podemos dar uma mão, na reunião do "conselho" para as promoções, para a semana?

(esta historieta foi-me contada há muitos anos, de boa fonte. Será que hoje as coisas seriam muito diferentes?)

Luís Amado

Foi ontem lançado o livro "Conversas sobre a crise", um diálogo entre Luis Amado e Teresa de Sousa. Na minha passagem pela livraria do aeroporto de Pedras Rubras ainda procurei o livro, mas era cedo demais para o adquirir.

Fui colega de governo de Luis Amado e, mais tarde, tive-o como meu ministro durante alguns anos. É, além disso, desde que nos conhecemos, um amigo pessoal. Devo dizer que Luis Amado foi, para mim, uma das muito positivas surpresas como pensador das coisas internacionais. Constatei que foi capaz de estruturar, em especial ao longo destes anos de crise, um pensamento maduro, realista e frequentemente original, não apenas sobre o papel de Portugal no mundo, mas, igualmente, quanto às resposta a dar às grandes questões que afetam os equilíbrios globais. Fá-lo sempre com elegância, sentido da medida e com um esforço de aproximação à verdade possível que lhe conferiram um lugar internacional de imenso respeito - como constato, com frequência, nos contactos que tenho com interlocutores estrangeiros, onde conta imensos admiradores.

O seu diálogo com Teresa de Sousa promete, assim, ser um trabalho com imenso interesse. Trata-se da mais bem preparada jornalista portuguesa em temáticas internacionais, sendo, além do mais, uma pessoa de fundadas convicções europeístas. E de quem tenho também o privilégio de ser amigo.

Mas não é a amizade pelos autores que me leva a sublinhar a importância de um livro que ainda não li. É a certeza antecipada de que todos teremos muito a ganhar com a sua consulta. 

Ida pela volta

1. Decididamente, o "Le Monde" já não é o que era. O meu parceiro do lado, no avião em que anteontem à noite seguia para o Porto, deve ter achado que eu estava a ler alguma anedota, pela súbita gargalhada que dei, a certo passo do folhear do jornal: num artigo sobre Portugal, falava-se da "ditadura do general Salazar". Se o José Rebelo, que durante anos foi o correspondente do jornal em Lisboa, leu esta referência, deve ter ficado chocado e talvez mais triste que divertido.

2. O hotel em que fiquei em Braga faz parte daqueles que necessitam de um MBA para se perceber como se acendem as luzes, para descortinar o modo de regular a água nas torneiras, o misterioso funcionamento das cortinas e o segredo para se evitar acordar a meio da noite com uma louca e inopinada programação do aquecimento. No resto, o hotel era excelente, muito confortável e com gente amável. Mas por que diabo os arquitetos de interiores não se dedicam a desenhar coisas simples, práticas e imediatamente percetíveis, que não nos obriguem a perder tempo?

3. Antes de adormecer, observei a Senhora Merkel em doses maciças, por tudo quanto era noticiário. Sem capacidade mínima para gerarem substância (confundindo "renegociação" com "reestruturação", desta vez dispensando a "refundação"), todos os canais colocaram as suas "Sónias Cristinas" e correspondentes colegas masculinos (é minha impressão ou há caras novas todos os dias? Ainda dizem que há desemprego no jornalismo...), de cornetos na mão, em cenários tendo em fundo polícias e carros a passar, a encher o tempo com platitudes, na cata obsessiva dos "fait-divers" possíveis, desde os cortes de trânsito ao custo e "exageros" da segurança. Se tivesse havido algum incidente, podemos estar seguros: seriam as "falhas" da segurança responsabilizadas. E o "jeito" que teria dado às "reportagens" um acidentezinho com uma das viaturas do cortejo, logo acusadas de velocidade excessiva...

4. A Universidade do Minho, em Braga, onde ontem falei, é uma das grandes realizações académicas do Portugal contemporâneo. Há muito que tenho uma grande admiração pelo que está a ser feito naquele espaço académico, com gente muito qualificada e uma motivação muito forte, bastante empenhada em "dar a volta" a uma região que foi altamente abalada pelas disfunções sofridas pela política industrial portuguesa, com fortes impactos sociais, nas últimas décadas. Já havia sentido isso na sua relação, muito eficaz, com Guimarães - capital europeia da cultura. Onde voltei a receber dados nesse sentido.

5. Tenho a impressão que, em Portugal, não se valoriza devidamente o magnífico trabalho que tem vindo a ser feito pelo nosso Instituto de Defesa Nacional. Ontem, como já me aconteceu várias vezes no passado, falei sobre questões europeias e internacionais para algumas dezenas dos respetivos "auditores", saídos da sociedade civil para estes exercícios de aculturação sobre temáticas de interesse nacional. Há escassos meses, tive o ensejo de trabalhar, no quadro da comissão que elaborou o novo Conceito Estratégico de Defesa, precisamente com base num excelente documento produzido pelo IDN. Devo dizer que o debate em que ontem participei, durante mais de duas horas, foi dos mais ricos em que tenho estado envolvido, desde há vários meses - e ando muito por esses meios.

6. De há uns anos para cá, cada vez tenho mais dificuldade de achar graça à comida que é servida nos aviões. Mesmo não a achando má de todo, muitas vezes evito-a, em especial nos percursos curtos. No regresso a Paris, ao fim da noite de ontem, "saltei" a refeição e só acordei com a aterragem em Orly. "Nem um copo de água bebeu!", surpreendeu-se a hospedeira de bordo, que teve a gentileza e o bom-senso de não me acordar, com aquele tabuleiro cheio de coisas previsíveis, onde não falha o famigerado triângulo de "Président", um medíocre "camembert" que anda pelo menu da TAP quase desde a era dos "Caravelle". No início da viagem, nem jornais portugueses pedi, porque já presumia o que iriam dizer, tanto mais que, com a visita da chanceler alemã, o ansiado regresso de Vale de Azevedo acabou por perder o espaço mediático que legitimamente seria o seu. Há dias aziagos para certas águias fugidias, que finalmente regressam à gloriosa luz da sua pátria.

terça-feira, novembro 13, 2012

Francisco Louçã

Francisco Louçã deixou a liderança do Bloco de Esquerda. Ao longo de cerca de 13 anos, ele foi a cara do Bloco, formação que ganhou muito com o seu brilho intelectual e que, igualmente, acabou por ter uma avaliação pública, nomeadamente em termos de sufrágios, que ficou muito tributária do modo como o país o foi apreciando como figura política.

Acompanho, desde há muito, o percurso político de Francisco Louçã, pessoa por quem tenho estima e consideração pessoal. Com ele troquei por diversas vezes ideias sobre a Europa, cuja evolução, há vários anos, a ambos nos preocupa. Já na política doméstica saudavelmente divergimos no desenho das soluções de futuro. Isso não me impede, contudo, de considerar que, em termos objetivos, com a sua saída da cena parlamentar, a nossa Assembleia da República perdeu um dos mais bem preparados tribunos.

segunda-feira, novembro 12, 2012

Europa

Leio que hoje, dia 13, pelas 15 horas, vou falar sobre "Portugal: soluções para a nova Europa", no salão nobre da reitoria da universidade do Minho, em Braga, abrindo o ciclo de conferências "O futuro da Europa", organizado pelo Instituto de Defesa Nacional e pela universidade do Minho.

Se foi anunciado, é porque deve ser verdade...

domingo, novembro 11, 2012

Nós e a senhora Merkel

A curta visita que a chanceler alemã, Angela Merkel, hoje fará a Portugal desencadeou um conjunto de reações, a maioria das quais corporizam na chefe do governo de Berlim os malefícios da cura de austeridade que Portugal está a atravessar. Pode entender-se a genuinidade da atitude de quantos são levados a interpretar as dificuldades da sua vida atual como o resultado direto das políticas seguidas pela Alemanha no plano europeu, pelo que até se compreende que, por exemplo, haja quem considere menos adequado o "timing" desta visita. Mas acho que convém haver alguma serenidade no juízo português sobre a dirigente alemã que hoje passa por Lisboa. 

A senhora Angela Merkel é lider político de um grande país democrático, responsabilizada nessas funções por um eleitorado que hoje alimenta um maioritário sentimento de desconfiança sobre o comportamento de certos países do Sul da Europa, onde se inclui Portugal, que considera que seguiram políticas laxistas que tiveram como resultado a situação que hoje atravessam. No entendimento de que os processos de rápido ajustamento macroeconómico são a solução certa para superar o atual estado de coisas, a liderança alemã limita-se a reproduzir o sentido da vontade desse seu eleitorado, o qual talvez não tenha sido motivado para valorizar, na devida dimensão, os esforços que o nosso país tem feito, mostrando-se adversa à adoção de outras políticas que eventualmente poderiam tornar o processo português menos gravoso. Com toda a certeza, falta quem explique melhor aos alemães que o seu país é o principal beneficiário do mercado interno europeu e que, num passado não muito longínquo, toda a Europa comunitária foi solidária, e pagou por isso, com a concretização do seu projeto de reunificação.

É perfeitamente legítimo que, tal como acontece noutros países, exista em Portugal, por parte dos muitos perdedores dos dias que passam, um sentimento de revolta contra as políticas de austeridade que são obrigados a sofrer. Muitos entendem, muito simplesmente, que elas decorrem de orientações que a Alemanha impõe à Europa do euro. Mas talvez devamos parar para pensar um pouco sobre qual o verdadeiro papel da Alemanha em tudo isto.

O pacote de austeridade que hoje é aplicado a Portugal é produto de uma receita económico-financeira, que comporta algumas dolorosas reformas do Estado, que foi desenhada por três instituições internacionais - uma das quais, aliás, é presidida por um português (Comissão Europeia), outra tem outro português como vice-presidente (BCE) e a terceira tinha um académico lusitano como seu diretor para a Europa (FMI). Foram essas instituições quem negociou, com um governo português já então fragilizado pela perda de confiança política interna que o tinha afastado do poder, um programa de "assistência" que, à época, acabou por ser politicamente ratificado por outras forças partidárias portuguesas. O voto maioritário de muitos de quantos hoje entre nós protestam veio, aliás, a atribuir a essas outras forças políticas, que haviam sido determinantes no afastamento do anterior executivo, o encargo de passar a governar o país, nele incluída a responsabilidade de aplicar o programa acordado e, nessa tarefa, de decidir as escolhas específicas a fazer, dentre as medidas concretas que apontem no sentido das metas genéricas da condicionalidade que são determinadas pelo contrato subscrito. 

Repito: pode acusar-se a Alemanha, cujo peso se sabe ser determinante no processo decisório europeu, de não ser sensível à necessidade de se associar a algumas medidas tendentes a aligeirar os efeitos desta cura financeira, quer em Portugal quer em outros Estados que atravessam circunstâncias similares. Mas faz parte do dever de pedagogia, em especial de quem tem obrigação de olhar para além da "espuma dos dias", explicar e fazer entender aos portugueses que a senhora Angela Merkel apenas exprime e objetiva, na sua prática política, aquilo que entende serem os interesses que a Alemanha, certa ou errada, entende dever defender. É que convém não esquecer que os governos dos países, de todos os países, são eleitos para promoverem os seus interesses, não os dos outros. E também lembrar que é para isso que, para além da Alemanha, também foram eleitos governos nos outros países. 

Grande guerra

Ontem, na "Mairie" de Lillers, no norte da França, tive o gosto de inaugurar uma placa que assinala a memória dos muitos portugueses que perderam a vida na 1ª guerra mundial. Fi-lo a convite do "maire" da localidade e de Félicia Assunção, a orgulhosa filha de um combatente português que, depois do conflito, por lá ficou e cuja larga família hoje cultiva, com grande empenhamento, essa memória.

Hoje, na fria manhã de Paris, assisti à cerimónia em que o presidente François Hollande prestou homenagem aos mortos franceses em combate, nesta que é a data que celebra o armistício que pôs termo a primeira guerra mundial. 

Dentro de pouco mais de um ano, iniciar-se-ão, em vários países, as celebrações da guerra de 1914-1918. Só posso esperar que, em Portugal, haja vontade e capacidade de organização para participar com dignidade, ao lado dos nossos aliados de então, no sublinhar dessa nossa valorosa participação para a liberdade do continente. Por nossa exclusiva culpa, Portugal fica muitas vezes fora do "retrato" dos vencedores do primeiro grande conflito mundial. É necessário aproveitar as comemorações que aí vêm para retificar essa persistente falha e a França é o lugar certo para isso se fazer.

sexta-feira, novembro 09, 2012

Novembro

Saiu há dias. É o romance de uma geração política que perdeu o império em que acreditava, que pretendia que se mantivesse "do Minho a Timor" (então já sem "escala" na Índia), que tentou que o mundo ficasse à espera dum Portugal ditatorial parado no tempo, teimosa e orgulhosamente só com a sua falsa e forçada verdade - como a história do alentejano que achava que eram todos os outros que iam em sentido contrário na autoestrada. 

Em "Novembro", Jaime Nogueira Pinto relata a luta inglória dos "nossos" nacionalistas revolucionários, os fascistas a que tínhamos direito, ironicamente aliados e a usufruirem do capitalismo que ideologicamente antes abominavam. Em 1974, viram surgir abril como uma ameaça à sobrevivência do país com que haviam sonhado e que queriam impor aos todos quantos pensavam de forma diferente - sem nunca considerarem que outros, por esse mundo onde se fala português, também tinham direito a afirmarem as suas próprias pátrias e o seu destino.

Conheci o Jaime Nogueira Pinto em 1973, ao lado de quem iniciei o meu serviço militar, servindo ambos na operosa especialidade de "Ação Psicológica". Tal como ele estava a par do que eu pensava, também eu sabia das suas ideias, até porque o lera com atenção no "Agora" e na "Política" - até hoje, tenho o imparável "vício" de acompanhar o pensamento de quem tem ideias diferentes das minhas. Por isso, foi agora muito curioso ler este retrato de um país pintado a preto-e-branco, entre 1973 e 1975, um Portugal em tudo bem diferente do meu.

Por ele ficamos a conhecer, entre bem desenhados amores e desencontros - de Lisboa a Luanda, de Madrid a Londres, da África do Sul aos Estados Unidos - o trauma e as ressacas de abril, a desilusão com Spínola, a "golpada" frustrada do 28 de setembro, a "esparrela" em que caíram no 11 de março e, depois, no desespero, a conspiração violenta urdida em terras de Espanha. O livro levou-me à outra trincheira, na barricada ideológica que então me separava do Jaime. Por ele fiquei a saber como pensavam e se organizavam, muitos deles circulando entre bons hotéis e belos restaurantes madrilenos, quantos andaram pelo ELP e pelo MDLP, aliados a alguma igreja que os benzia, a uma certa banca que os financiava e a muito "lumpen" que os servia (que é pena não ser posto no livro com a evidência que "merece"), que se dedicavam a pôr bombas e a caçar "comunistas" - conceito abrangente que o radicalismo direitista alargava ao absurdo.

Esta é uma inédita história do "PREC" vista do outro lado, uma revolta revanchista titulada por quantos, se acaso tivessem ganho na noite de 25 de novembro de 1975 (obrigado, sempre, Ernesto de Melo Antunes), talvez tivessem usado as chaves do Campo Pequeno. Que a esquerda, mesmo quando gabarola e no poder, nunca usou, registe-se.

Em minha opinião, este romance, 640 páginas que se leem de um fôlego e que francamente recomendo, acaba por ser um não deliberado elogio à tolerância de quantos souberam conduzir o processo aberto em abril de 1974, e terminado em novembro de 1975, até desembocar pelos caminhos da democracia que hoje é matriz da nossa vida cívica. Embora, como seria expectável, saia algo mal de um livro onde praticamente não é mencionado, Francisco da Costa Gomes acaba, a meu ver, por ser o herói escondido desta obra. 

Estou mais do que certo de que o Jaime estará muito longe de concordar comigo, em toda a avaliação do seu livro que acabo de fazer, como terei oportunidade de testar na conversa que teremos, aqui em Paris, no jantar de hoje. É que, desde há quadro décadas, nós habituámo-nos a celebrar, sempre com muito humor e de há muito com uma leitura irónica do nosso extremado e contrastante radicalismo de então, uma amizade que o facto de termos estado em polos bem opostos da trincheira política nunca beliscou, talvez porque ambos, cada um à sua maneira, pensou sempre no interesse de Portugal. Para a conversa e a alegria da noite ficarem completas, faltar-nos-á, contudo, a Zezinha.  

Empresas

Muitas vezes, Portugal, visto de fora, anima-nos bastante.

Ontem, tive essa sensação ao falar com as 57 PME's portuguesas, presentes no MIDEST, uma feira nos arredores de Paris onde estão representados setores industriais portugueses, maioritariamente na área da metalomecânica.

À entrada, o diretor da feira referia-me o facto de, de ano para ano, haver cada vez mais empresas nacionais neste importante certame de subcontratação. Nas conversas com os empresários, não obstante algumas notas negativas quanto às dificuldades no acesso ao crédito, nos custos energéticos e dos transportes, observei um ambiente de generalizado otimismo e de anúncio de bons negócios. Não encontrei uma única em que a exportação não representasse mais de 50% da faturação e, em grande parte delas, esse valor oscilava entre 75 e 95%.

Há um novo Portugal no nosso mundo empresarial.

quarta-feira, novembro 07, 2012

O meu novo "tacho"

O Centro Norte-Sul é uma estrutura que, desde 1989, tem sede em Lisboa e que tem como finalidade ligar o Conselho da Europa - em temáticas como a democracia, direitos do homem, diálogo intercultural, etc - a uma área a que se convencionou chamar Estados "do Sul", nomeadamente no continente africano.

Desde a sua criação, o Centro passou por várias vicissitudes e, se olharmos bem o tempo histórico, verificaremos que atravessou o período das grandes convulsões contemporâneas, desde a queda do muro de Berlim à emergência do terrorismo global, das grandes polémicas civilizacionais às chamadas "primaveras árabes". O mundo mudou muito, o Centro mudou com ele mas talvez não o suficiente para nele manter interessados Estados tão importantes como a Alemanha ou a França, os quais, com alguns outros, optaram por abandoná-lo, com as consequências orçamentais correspondentes. O Centro apresenta hoje um número de membros que é já inferior àquilo que formalmente é necessário para garantir a sua sustentação. E, porque o orçamento de que dispõe foi seriamente afetado, a sua capacidade para gerar iniciativas e projetos que cativem novos membros está hoje fortemente reduzida.

É perante este cenário de fundo, no mínimo extremamente complexo, que fui convidado a dirigir o Centro Norte-Sul, com o "estímulo" acrescido de não ir ganhar, nessa tarefa, um euro mais do que aquilo que já seria o meu salário normal de base, quando regressasse a Portugal, por imperativo de idade. Faço-o porque achei interessante assumir o desafio de tentar tirar o Centro - cujo acervo de atividades me parece muito interessante - da muito difícil situação em que se encontra. Logo veremos, a partir de 1 de fevereiro, se consigo fazê-lo ou não, com algumas ideias que tentarei pôr em prática.

Dia claro

Hoje, por uma vez, o sol nasceu a oeste. Nada garante que os dias que aí vêm para o mundo sejam brilhantes, mas, como europeu, fico bastante mais sossegado com a vitória de Obama.

Comboios

Era um homem muito simples, das Beiras. Começámos a conversar naqueles corredores estreitos do Sud-Express, em direção a Paris, naquele verão de 1970. Contou-me que ia para a Alemanha, onde trabalhava na construção civil. Para sempre, ficou-me uma frase que me disse, e que dava bem conta do profundo choque cultural entre o mundo de onde provinha e aquele em que habitava, num subúrbio de uma grande cidade: "Perto das barracas onde estamos 'anda' uma grande estrada e, à noite, quando nos chegamos à beira dela, aquilo até mete medo, com as luzes dos carros a passarem tão depressa". Em Portugal, nesse tempo, as autoestradas eram uma miragem.

À medida que nos aproximávamos da gare de Austerlitz, perguntei-lhe como iria para a gare du Nord, de onde partiria num outro comboio, para a Alemanha. Disse-me que havia motoristas portugueses que andariam por ali e que o transportariam entre as duas estações. Pelo que me contou, o preço que habitualmente lhe cobravam era uma exorbitância, um verdadeiro roubo. Era bem conhecida, na altura, a existência dessa máfia de portugueses desonestos, que rondavam Austerlitz e exploravam os desamparados compatriotas, que não sabiam uma palavra de francês e se abandonavam nas suas mãos.

Porque ele só tinha uma mala, perguntei-lhe se não queria ir de metropolitano, cujo bilhete era um preço ínfimo, comparado com o que os motoristas lusos lhe cobravam. Por acaso, eu ia seguir na mesma linha e, com todo o prazar, ajudá-lo-ia até à gare du Nord. O homem, que até então tinha tido comigo uma conversa distendida e cordial, olhou-me, claramente desconfiado com "tanta fartura", provavelmente convencido que eu lhe estava a tentar fazer algum "conto do vigário". À saída, de forma quase ostensiva, evitou-me e lá deve ter ido entregar-se nas mãos dos abutres lusitanos motorizados.

Ontem, na gare de l'Est, veio-me à memória o episódio passado com aquele português, ao constatar a atrapalhação de um cidadão, que vim a saber ser búlgaro, perdido no meio da multidão do fim de tarde, com um ar angustiado, sem falar uma palavra de francês, num ambiente de generalizada indiferença. Vendo-o nervoso, quase tremendo, com claro pânico de perder uma ligação, perguntei-lhe se necessitava de ajuda. Mostrou-me o bilhete. Orientei-o, levando-o até à porta da carruagem. Desfez-se em agradecimentos, talvez surpreendido por alguém se ter disponibilizado a auxiliá-lo, sem nada lhe pedir em troca.

Devo dizer que tive gosto em poder ter esse simples gesto, porque, às vezes, alguns trabalhadores estrangeiros que por aqui encontro, na simplicidade insegura de quem caiu num mundo que não domina, não deixam de me recordar os heróis anónimos das nossas vagas da emigração do século passado.

segunda-feira, novembro 05, 2012

América

Como acontece cada quatro anos, por estes dias, todos somos um pouco americanos. Todos (portugueses, chineses, russos e até israelitas) temos o "nosso" candidato numas eleições que cabe aos americanos decidir, sabendo, de certeza segura, que alguma coisa acabará por sobrar para nós daquele que vier a ser o resultado da sua escolha. Talvez não fique bem dizer isto, mas esta cíclica fatalidade é um sinal claro do que é, na realidade, a "independência" do resto do mundo. 

Ah! e uma coisa é clara: qualquer que venha a ser o presidente americano para os próximos quatro anos, ele vai, forçosamente, desiludir-nos. Porquê? Por uma razão bem simples: porque ele é eleito para defender os interesses americanos e não os nossos. 

Os dias do movimento (*)

Estes não são dias como os outros. Na carreira diplomática, as pessoas mudam de postos, de tempos a tempos. Uns transitam entre embaixadas ou consulados, outros passam de Lisboa (da "secretaria de Estado", no jargão da carreira) para lugares no estrangeiro ("para posto"), ou vice-versa. Às vezes, estas novas colocações acontecem caso-a-caso, espaçadas entre si no tempo. Outras vezes, as nomeações têm lugar para um conjunto mais ou menos largo de funcionários. Neste caso, ocorre aquilo a que se chama, na tradicional linguagem das Necessidades, "o movimento". São esses os dias que vivemos.

O movimento é um evento sazonal importante, uma reorientação dos destinos da casa pela tutela, com a atribuição de novas responsabilidades aos funcionários. O movimento mais importante, como é natural, é aquele que envolve os embaixadores e os lugares de chefia em Lisboa. Nunca se sabe, ao certo, quando esse movimento tem lugar, pelo que é invariavelmente precedido de uma imensidão de boatos sobre a sua efetiva concretização ("dizem que já está para assinatura em São Bento"), com palpites diários sobre datas ("cheira-me que ainda sai esta semana. Já tem o OK de Belém"), sempre de "fontes fidedignas" ("uma senhora do 'quarto andar' garantiu-me que já está para publicação") e bem informadas ("já seguiram os pedidos de "agrément", consta do gabinete") Umas vezes, as coisas vão-se sabendo aos poucos, fruto das fugas nas "consultas" ("Não digas a ninguém! O homem pediu-me silêncio, mas foi sondado e aceitou, com a garantia da "promoção", vá lá!"), noutras permanecem "no segredo dos deuses" até bastante tarde.

Sobre a substância do movimento, a "cultura" do claustro e dos corredores cria, durante semanas consecutivas, "bocas", mais ou menos fundamentadas ("nem te passa pela cabeça quem vai para Bamako!" ou "já está tudo assente: o homem vai mesmo para Hanói. Até já tratou da escola para o filho..."). A coreografia também é vista à lupa ("o tipo já se passeia como se o lugar fosse dele" ou "dizem que o homem anda, há dias, a rondar o 'terceiro andar'" ou ainda "viram-nos a almoçar juntos nas 'Espanholas'; não é por acaso!").

Com a aproximação do seu anúncio, as informações sobre o movimento vão-se tornando mais fidedignas, sendo progressivamente preenchido o quadro virtual de vagas ("afinal, confirma-se que 'fulano' sempre avança para Kampala. O 'beltrano' bem tentou, mas lixou-se e não conseguiu o posto"). Há sempre uns "connaisseurs" frustrados, que depois procuram justificar os seus erros de avaliação ("estava para ser como eu te tinha dito na semana passada, mas houve acertos de última hora, garantiram-me! É sempre assim!"). Há, ainda, as desilusões ("'sicrano' está fulo! Tinha por certo ir para Dushambe e, afinal, fica na secretaria de Estado. Parece que está à espera de Ulan Bator, que só 'abre' em maio, com a passagem 'à disponibilidade' do outro").

E, por fim, há as surpresas. As surpresas são o verdadeiro "sal" dos movimentos, as nomeações de quem se julgava "não colocável" ou de quem se não esperava que viesse a assumir certas funções. Tanto podem emergir de postos atribuídos ("então não queres ver que aquele tipo, depois de tudo o que se passou, ainda conseguiu ser colocado em Cartum? Francamente!...") ou (caramba! Viste o "postaço" que o tipo apanhou, vindo de onde vinha?) como dos lugares "na secretaria de Estado" que foram objeto de preenchimento ("e o homem lá vem para o lugar que queria. Vamos ter que o aturar em Lisboa. Com o feitio dele, vai ser bonito!").

Frases mais ou menos parecidas com estas devem ouvir-se, por estas horas, no claustro e corredores das Necessidades. Foi sempre assim! Os dias do movimento são sempre dias movimentados.


(*) Esta é, no essencial, a reprodução de um post de 3.1.12. Voltou a ser atual, razão pela qual o republico

sábado, novembro 03, 2012


Justiça e Paz

No início da minha intervenção, deixei claro que vinha "de outra freguesia", mas isso não diminuiu o grande gosto que tive em participar em mais uma iniciativa da Comissão Nacional Justiça e Paz, que hoje teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. O convite foi-me formulado pelo professor Alfredo Bruto da Costa, uma figura por quem tenho grande admiração, pela sua persistente luta em favor daqueles que a sorte esqueceu.

O tema do encontro era "Portugal - o país que queremos ser", mas a mim coube-me, num "mano-a-mano" com o meu amigo Guilherme Oliveira Martins, trabalhar de forma crítica e prospetiva o documento "Para uma reforma do sistema financeiro e monetário internacional na perspetiva de uma autoridade pública de competência universal". Trata-se de um interessante texto que, apoiado em algumas Encíclicas, interpela os cidadãos e os Estados, lançando desafios ao mundo multilateral. O debate que se seguiu foi muito enriquecedor e, como não podia deixar de ser, cruzou a doutrina social da Igreja com a política europeia e algumas temáticas do quotidiano nacional.

Na minha intervenção, procurei sublinhar os aspetos mais relevantes das propostas contidas no texto e julgar da sua compatibilidade realista com os modelos multilaterais relevantes, desde a ONU à OMC, das questões ambientais globais à reforma do sistema de Bretton Woods.

E, de passagem, porque o documento, que tem origem no Vaticano, é impiedoso para as derivas liberais, não deixei de notar a estranha circunstância de ser da Universidade Católica Portuguesa que emana a mais radical produção neoliberal que por aí anda, ao que parece, como fiz questão de dizer, bem menos preocupada com a pauperização da sociedade do que com a promoção da "popperização" das almas.

Abandono

Nesta madrugada, leio no "Público", na net: "Embaixador Francisco Seixas da Costa abandona funções em Paris". Só aparece o título, mas a notícia deve sair logo na edição impressa. Mas para quem, nas horas que faltam, atentar apenas nessa linha, pode ficar a dúvida: foi ele quem abandonou o posto? Ou "sanearam-no"? Não seria a primeira vez...

Nada disso. Dentro de menos de três meses chego, com toda a naturalidade, ao limite da idade em que, por lei, posso permanecer em funções no estrangeiro. Tenho esta data na cabeça desde que, em 14 de agosto de 1975, entrei para o MNE. O meu regresso a Lisboa é, assim, em tudo idêntico ao que abrangeu uma imensidão de colegas, em todas as gerações. 

Se acaso o "Público" me tivesse perguntado, ter-lhe-ia revelado, em exclusivo, que irei chegar a Lisboa 48 horas antes da data do limite de idade, por razões - essas sim! - extremamente ponderosas: tenho nessa noite uma reunião do "praesidium" da "mesa dois" do bar "Procópio", que lançará as bases para o nosso jantar anual, que, desta vez, terá lugar em fevereiro. Há minutos, por lá, entre cervejas e chás, foi escolhido um nome para o repasto 2013, desta vez com inevitável odor a "troika": "Jantar da Refundação". Que tal?

sexta-feira, novembro 02, 2012

Partidas & chegadas

Ainda um dia alguém me há-de explicar por que diabo, perante horas a aguardar o embarque num avião, como aquele que neste momento me faz perder a tarde em Orly, nos é dada a justificação de que "o atraso é devido à chegada tardia do avião". Estão a gozar conosco ou quê? Que nos interessa saber se foi a chegada tardia (e, se foi assim, porque se atrasou?) ou a birra de alguma tripulação ou um parafuso mal apertado?

Essa informação é tão importante quanto aquela pateta indicação (sempre presente em cada voo) sobre a temperatura exterior ou a altura a que o avião segue? O que é que isso interessa? Evita que saiamos para apanhar ar?

Digam-nos apenas, com certeza certa, a que horas sairemos, para podermos planear a vida e, até lá, e também se possível durante o voo, não nos poluam os ouvidos, sim? Pagámos para viajar no sossego que for possível.

quinta-feira, novembro 01, 2012

Condolências diplomáticas

Sempre que uma personalidade política de relevo de um país morre, é de regra que as embaixadas que esse Estado tem espalhadas pelo mundo abram, durante alguns dias, um livro de condolências. Esse livro recolhe notas de simpatia de quem quiser associar-se aos pêsames. As embaixadas de países amigos costumam marcar a sua presença, através do embaixador ou de um outro funcionário por este indicado.

Por regra, os embaixadores reservam-se para as condolências por morte de figuras mais relevantes - chefes de Estado ou de governo -, encarregando da tarefa um seu colaborador quando a figura desaparecida tem uma importância institucional menor. Diga-se que já tenho visto a abertura de livros de condolências pelo falecimento de personalidades que estão muito longe de ser conhecidas no exterior e, muito menos, são relevantes. Mas imagino que as embaixadas não possam eximir-se às instruções que recebem das capitais.

Um dia, algures, um embaixador estrangeiro pediu para me ver, com alguma urgência. Recebi-o pouco depois. Entrou no meu gabinete de semblante grave e com ar muito preocupado. O que tinha acontecido? Na véspera, tinha-se deslocado à embaixada de um país de expressão portuguesa, para preencher o livro de condolências pela morte de uma importante figura de Estado. Porém, por um "lamentável lapso", em todo o longo texto que escrevera no livro, com quase uma página, onde relevara as imensas qualidades e a sabedoria do estadista que desaparecia, colocara erradamente, e por mais de uma vez, o nome de um outro Estado lusófono.

Esse colega, com "pouca África" no currículo e de uma área do mundo dela algo distante, estava seriamente mortificado com as consequências potenciais que esse seu lapso poderia vir a ter nas relações entre o seu país e o Estado lusófono em luto, que seguramente se iria sentir ofendido com o seu grosseiro erro. Vinha perguntar-me o que haveria de fazer, "porque vocês conhecem-nos melhor a eles".  

Pondo implicitamente de parte a "expertise" pós-colonial que me era atribuída, pensei alto, com base no bom senso. Se acaso fosse pedir desculpa ao embaixador que tinha aberto o livro de condolências, seria muito difícil dar-lhe uma razão plausível para trocar o nome do seu país. Seria como que uma presunção da irrelevância do Estado que ele representava ou um atestado à sua própria ignorância (não sei se tive coragem de lhe dizer isto, confesso). Assim, não me parecia que ganhasse grande coisa com um ato de contrição. Mas também não poderia excluir que, se acaso o erro fosse detetado, alguns sobrolhos nacionalistas se cerrariam. Era, de facto, uma situação com contornos algo delicados. 

E, sem ter nenhuma certeza, deixe-lhe um conselho, ou melhor, disse-lhe o que faria se acaso estivesse no seu lugar (situação que, sem falsa modéstia, me parecia implausível). Porque sempre presumira que ninguém se devia dar ao trabalho de ler os livros de condolências abertos pelas embaixadas no estrangeiro, devendo haver apenas um levantamento das assinaturas, eu era de opinião de que talvez valesse a pena, pura e simplesmente, esquecer o assunto. Não o vi muito sossegado, mas agradeceu, concordando, a minha sugestão e lá saiu, ainda ajoujado de culpa. 

Tempos mais tarde, numa conversa com o embaixador lusófono, testei-o quanto ao colega "gaffeur", para tentar perceber se acaso existiria, da sua parte, algum agravo. Inventei, assim, que tinha ouvido, da parte deste, palavras muito simpáticas a seu respeito. A resposta surpreendeu-me: "Ah! mas é um grande amigo! Ainda há dias, organizou um jantar em minha honra na sua residência. Temos excelentes relações!". 

Ora ainda bem, pensei para comigo. E, inapropriadamente divertido no meu íntimo, tenho-me sempre lembrado desta história quando, nas embaixadas, assino os livros de condolências, coisa que faço sempre com a maior atenção à geografia.

O outro défice


Das notícias de hoje:
  • a justiça deixou prescrever o caso Bragaparques.
  • Valentim Loureiro recusa-se abandonar a Câmara municipal de Gondomar, apesar da decisão da justiça. (E, em Oeiras, tudo continua como dantes, à espera das prescrições).
  • estivadores, que prosseguem uma greve que está a condicionar fortemente as exportações, assumem tristes atitudes públicas de desrespeito em frente ao parlamento.
  • os maquinistas da CP voltam, uma vez mais, a tomar o país como refém.
  • os sindicatos da (pública) Caixa Geral de Depósitos aproveitam para gozar a ponte.  
Em tempo: e que os puristas não venham com a tese da independência do poder judicial e os obreiristas com a "justa luta" dos que têm ótimos empregos...

quarta-feira, outubro 31, 2012

Eça, agora!


Como diria enfaticamente José Hermano Saraiva, "foi aqui", no nº 5 da rue Crevaux, que liga a avenue Foch à avenue Bugeaud, que José Maria Eça de Queiroz, recém nomeado Cônsul de Portugal em Paris, alugou a sua primeira habitação, das três que viria a ocupar durante a sua estada na capital francesa, onde morreu em 1900. 

Eça viveu na rue Crevaux entre 1889 e 1891 e, por alguma razão, esta sua morada não estava assinalada com uma placa. Decidi tomar a iniciativa de colmatar esta lacuna e, passados meses de autorizações e procedimentos administrativos, vai ser agora possível descerrar essa memória.

Assim, no domingo, dia 25 de novembro, às 12.00 horas, celebrando nesse dia a data do nascimento de Eça de Queiroz, será feito o descerramento formal da placa. De seguida, quem estiver presente ao ato é convidado a beber uma taça de champanhe na Embaixada de Portugal, que fica relativamente perto. Apenas se pede que as pessoas que se queiram associar se inscrevam pelo mail portugal.paris@gmail.com.

Vigília


Não resisto a transcrever, do seu blogue Tim Tim no Tibet, o poema do meu colega embaixador Luís Filipe Castro Mendes, intitulado "Vigília":

Não te deixes adormecer: 
é o que dizem a quem luta por estar vivo,
é o que nos dizemos quando
o frio já entrou muito fundo dentro de nós
e toda a vida se deixou cobrir de nevoeiro.

Não, eu não me deixarei dormir.
Descansa, tu que cada madrugada 
encontras as minhas mãos 
a afastar o frio e o nevoeiro.
Eu não me deixarei dormir.
Nós não nos deixaremos dormir.
O nosso amor é uma vigília sem quebras
e nunca nenhum povo se deixou hibernar.

Em tempo: e, para quem estiver em Lisboa, porque não dar uma saltada aqui.?

Emigração

O comportamento do Estado Novo face à emigração é o tema de um livro de Victor Pereira, intitulado "La dictature de Salazar face à l'émigration - L'État portugais et ses migrants en France (1957-1974)". O autor é doutorado em História pelo Instituto de Estudos Políticos, em Paris.

Convidei Victor Pereira para apresentar o seu trabalho na Embaixada, no dia 26 de novembro. Dada a escassez de lugares, quem estiver interessado em estar presente nesta sessão de lançamento e no debate que terá lugar na ocasião deverá inscrever-se através do mail portugal.paris@gmail.com.

terça-feira, outubro 30, 2012

Ben Barka

Em 29 de outubro de 1965, ao sair de um almoço da brasserie Lipp, no boulevard Saint-Germain, o oposicionista marroquino Mehdi Ben Barka, foi raptado. Seria mais tarde barbaramente torturado e morto.

Ben Barka foi um democrata que desde muito cedo lutou pela liberdade no seu país e é uma figura por quem nutro grande admiração. A saga do seu rapto e a teia de cumplicidades e interesses que estiveram por detrás do seu assassinato constituem, aliás, um terreno de investigação histórico-político do maior interesse.

Tinha prometido a mim mesmo que, durante estes quatro anos de Paris, tentaria saudar a sua memória, almoçando, na data do seu rapto, no mesmo restaurante. Acabei por conseguir fazê-lo uma única vez, levando comigo dois amigos que partilhavam a mesma recordação.

Ontem, uma vez mais, compromissos profissionais, a que não pude nem quis escapar, impediram-me de celebrar na Lipp (os "connaisseurs" dizem "no Lipp") a memória de Ben Barka.

Resta-me assim deixar uma nota neste blogue.

segunda-feira, outubro 29, 2012

Decanato

O novo presidente da Assembleia Nacional francesa, Claude Bartolone, tomou a simpática iniciativa de organizar, na noite de ontem, um jantar de debate, reunindo um grupo pouco comum de embaixadores: os representantes diplomáticos dos países da zona euro. Ao sentarmo-nos à mesa, reparei ter tido direito ao lugar de honra, entre os convidados. Olhei à volta e dei-me conta que já era o "decano" dos diplomatas presentes. Como o tempo passa...

A rotação temporal dos embaixadores é uma regra comum. Em geral, em cada quatro ou cinco anos, os embaixadores mudam de funções, indo assumir a chefia de outras representações diplomáticas ou consulares no exterior, ou regressando temporariamente às suas capitais. Esta regra aplica-se também aos restantes diplomatas, sendo que há alguns países que optam por seguir modelos diferenciados.

Com o tempo, percebi que essa mudança regular dos diplomatas tem todo o sentido. Se bem que, à primeira vista, se possa argumentar que se ganharia em ter as pessoas mais tempo nos postos, aproveitando a sua experiência e melhor explorando as redes de contactos entretanto estabelecidos, a verdade é que se constata que o "refrescamento" dos lugares favorece a assunção de novos olhares sobre a realidade local, evitando a queda em rotinas e vícios de perspetiva. Não raramente, o diplomata que fica muitos anos num posto deixa de "ver" o que entretanto mudou e acultura-se a uma certa leitura dos factos e das pessoas, que pode acabar por afetar a eficácia do seu trabalho. Além disso, a rotação permite um enriquecimento dos diplomatas, através de experiências diferentes, em contacto com outras sociedades e situações, o que constitui um importante fator de formação profissional. Não será por acaso que a generalidade das carreiras diplomáticas segue um procedimento basicamente idêntico.

Mas há exceções. Em 2001, nas Nações Unidas, vi-me um dia confrontado com um caso singular. Tinha chegado há escassas semanas e fiquei sentado, num almoço, ao lado do embaixador do Kuwait. Perguntei-lhe há quanto tempo estava em posto, em Nova Iorque. A resposta deixou-me siderado: "21 anos". Comentei que, assim sendo, deveria ser o "decano" dos embaixadores. Respondeu-me que não, que o colega do Iémen estava por lá há ... 28 anos!

Mal eu sabia então que, no meu caso, iria ficar por Nova Iorque apenas cerca de ano e meio...

A nova emigração

O novo surto migratório originário de Portugal é um fenómeno de que, só muito recentemente, começa a traçar-se um perfil mais rigoroso. Os dados estatísticos existentes assentam apenas em estimativas e têm um elevado grau de incerteza, pela inexistência de referências absolutamente seguras. Mas fica evidente que estamos já perante um movimento quantitativamente significativo, com uma dispersão geográfica bastante maior do que a das vagas migratórias de um passado mais recente.

Globalmente, e como não será de surpreender, os novos migrantes que procuram a Europa têm uma qualificação académica média bastante superior à de quantos, nos anos 60 e 70 do século passado, saíram pelos caminhos de França, da Alemanha e do Luxemburgo, ou mesmo dos que, de forma sazonal ou mais permanente, procuraram depois a Suíça e o Reino Unido*. Os dados e as informações disponíveis mostram-nos que muitas dessas pessoas saem acompanhadas pelas famílias, o que altera significativamente o modelo de outros tempos e, naturalmente, induz outros impactos nas exigências do seu quotidiano.

Há um ponto que me parece importante registar, porque dele resultam consequências comportamentais muito particulares: a maioria desses novos emigrantes portugueses obtém ocupações profissionais que se situam, quase sempre, abaixo daquelas que, legitimamente, o seu nível académico poderia justificar, o que constitui um natural elemento de frustração pessoal, com efeitos no seu estado de espírito. A crise e o aumento do desemprego em muitos dos seus países de destino faz com que, uma vez mais, apenas lhes sejam oferecidas tarefas profissionais que os nacionais desses países procuram menos e, frequentemente, com um elevado grau de precariedade no vínculo laboral. Daqui resulta, muitas vezes, uma tendência para uma fixação breve nos postos de trabalho obtidos, na busca incessante de outras oportunidades entretanto vislumbradas. Alguns empresários portugueses em França, que para aqui vieram em gerações anteriores e perseveraram muitos anos em tarefas modestas antes de descobrirem os caminhos do seu sucesso pessoal, referem essa instabilidade como um fator que, por vezes, os desmotiva ao acolhimento dos novos migrantes portugueses. Mas os casos de solidariedade neste domínio são cada vez mais frequentes e louváveis.

Como por aqui tenho dito, ser obrigado a emigrar por razões económicas é a triste constatação de que o país não é capaz de criar condições para a plena realização, no seu seio, dos cidadãos nacionais. As pessoas que saem, não apenas são forçadas a esse sacrifício como, muitas vezes, acabam por ser elas a contribuir, com aquilo que ganham no exterior, para o aumento da riqueza nacional. Só podemos desejar que, deste novo ciclo da viagem dos portugueses pelo mundo, acabe por resultar um futuro mais feliz para a sociedade portuguesa, com o retorno de muitos dos que agora são obrigados a partir, depois de novas experiências e de qualificações adquiridas, que possam ajudar a reforçar a modernidade e o desenvolvimento do país.
* Em tempo: e Espanha e Andorra, claro.

domingo, outubro 28, 2012

Subtileza

No início de um espetáculo, na noite de domingo, ouvi esta "pérola", de uma elegância mais do que subtil, antes do início da "performance": "Chama-se a atenção das pessoas presentes para a necessidade de ligarem o seu telemóvel quando saírem do teatro".

Hora

Hoje, temos a mais uma hora, coisa que, por ora, ainda está isenta de impostos. Aproveitem-na!

sábado, outubro 27, 2012

Os tomates e a Europa

Só hoje me chegou uma crónica de Miguel Esteves Cardoso, no "Público", há três dias, sob o título "Não mexam nos tomates", que passo a transcrever, sem quaisquer comentários e sem sombra de modéstia:

"Estava ontem na primeira página do "Público": só a Califórnia é mais produtiva do que Portugal no tomate. Lá dentro, na peça de Jorge Talixa, são de festejar os 1,2 milhões de toneladas de tomates produzidas este ano. Este ano, por acaso, os tomates foram bem mais suculentos do que nos dois anos anteriores. Comemos muitos mas, sobretudo, não esbanjámos nenhuns, como naquela absurda festa espanhola do tomate, que todos os anos deixa larga nódia na nossa imprensa, como se fosse novidade. Quem nunca tiver visto uma foto de um jovem espanhol encharcado em sumo de tomate tem uma sorte invejável. Conseguimos até exportar 95% desses tomates. Isso rende-nos 250 milhões de euros: é um número redondo demais para ser inteiramente crível mas, pronto, é muito dinheiro.

O medo agora é que a UE, através da Política Agrícola Comum (PAC), venha a proibir tal abundância. Nesta altura em que de novo se fala de Portugal ser o melhor aluno da zona euro, lembro uma notícia de maio de 1996, altura em que Portugal produzia só 900 mil toneladas.

Também há 16 anos a PAC quis cortar-nos os tomates. O secretário de Estado para os assuntos europeus de então, Francisco Seixas da Costa, avisou logo que se tinha acabado essa história de sermos os "bons alunos" da Europa, com tudo o que isso "implicava de subordinação".

Mantenha-se a mesma insubordinação e pode ser que, daqui a 16 anos, cheguemos a 1,5 milhões de toneladas. E passemos à frente da Califórnia".

"Resgatados"

Em Portugal, não há tradição de surgimento de relatos serenos sobre eventos políticos situados num passado próximo, centrados em temáticas indutoras de forte polémica, ainda prolongadas nos dias em que as obras são publicadas. Por essa razão, entendo que a edição de "Resgatados - os bastidores da ajuda financeira a Portugal", dos jornalistas David Dinis e Hugo Filipe Coelho, merece ser saudada como uma interessante contribuição para se conhecerem melhor os bastidores do tempo muito complexo que antecedeu o pedido de ajuda externa feito em 2011. 

O livro, no seu ritmo quase cinematográfico, descreve uma tormenta em progressivo desenvolvimento. E, como todos sabemos, quem se envolve em tempos revoltos lê os factos e as suas circunstâncias de modo, muitas vezes, oposto. Por essa razão, sei que algumas pessoas não apreciaram este trabalho, porque continuam a cultivar sobre os factos nele referidos uma memória de envolvimento que se não coaduna com a frieza equilibrada que os autores - a meu ver, bem - procuraram atingir.

Como em todos os textos deste género, há evidentes lacunas, há perguntas implícitas que ficam sem resposta. Mas este tipo de trabalhos vive sempre da abertura dos interlocutores que é possível mobilizar, bem como da sabedoria e equilíbrio com que neles se colocam as várias versões dos factos, sempre enviezadas pelo interesse de todos em edulcorar o seu lugar na pequena História. Nem toda a gente esteve, com certeza, disponível para contribuir para este livro. Sei do que falo, porque fui contactado por um dos autores, a quem, com toda a cordialidade, expliquei que a lealdade imanente às funções que exercia à época, e que ainda exerço, me não autoriza a revelar o pouco que sei de alguns factos e que, de resto, rigorosamente nada adiantaria de substancial ao trabalho.

Este livro é, assim, o livro possível, escrito por dois "impacientes da História", como Jean Daniel qualifica todos os jornalistas. Mas é um "guião" que reputo de muito útil e pelo qual felicito os autores. A sua leitura permite recortar melhor o papel das principais personalidades envolvidas, a sua diferente avaliação das circunstâncias vividas e, porque não dizê-lo, estabelecer um primeiro inventário das várias decisões e das motivações, políticas, económicas e até pessoais, que, no seu todo, desenharam o caminho que obrigou o país a recorrer ao "resgate". Acho que todos saímos deste livro com uma perspetiva mais clara sobre o papel desempenhado por cada responsável político, do governo e da oposição, na crise que acabou por estar na origem da situação que o país hoje atravessa, cuja moldura institucional e as condicionantes, em matéria dos compromissos que vieram a ser assumidos, não poderão nunca ser desligadas dos factos elencados neste trabalho. 

sexta-feira, outubro 26, 2012

24 horas em Lyon

1. Foi muito instrutivo anotar as várias interrogações no tocante ao futuro da Europa que ontem ouvi de um conjunto de qualificados empresários franceses, perante os quais fiz uma palestra em Lyon. Nela procurei fazer entender a nossa posição no processo integrador, sem esconder as fragilidades que nos são próprias, mas tentando simultaneamente que, da sua transparente explicitação, resultasse evidente que jogamos com todas as cartas em cima da mesa. Se bem que, neste momento, com uma evidente escassez de trunfos. Mas alguns trunfos continuam a existir, não sendo por acaso que os investimentos franceses em Portugal continuam a comportar-se de forma positiva.

2. Lyon é a sede da Euronews. Encontrei-me com o seu presidente, que se mostrou fortemente interessado em dar continuidade à cooperação que mantém com a RTP. Num passado recente, as emissões em língua portuguesa - e o trabalho dos portugueses que trabalham na Euronews - estiveram em forte risco. Alertei Lisboa, à época, para o assunto e, pelo menos por algum tempo, foi possível garantir um balão financeiro de oxigénio, com a ajuda da Comissão Europeia e, segundo o presidente da Euronews, muito graças ao empenhamento do deputado Ribeiro e Castro.

3. O "Banque BCP" é uma instituição financeira franco-portuguesa, com forte expressão no seio da nossa comunidade. Sempre que a tal solicitado, tenho procurado sublinhar o papel neste país de todas e cada uma das entidades económicas e financeiras com capitais portugueses, pelo que tive muito gosto em testemunhar a imagem de modernidade da unidade ontem apresentada numa das zonas mais prestigiadas de Lyon. A presença de muitos franceses no evento mostrou que a nossa banca está longe de ser "comunitarista".

4. A comunidade portuguesa em França não é imune às preocupações que, sobre o futuro, atravessam toda a sociedade portuguesa. Ficou-me isso claro nas conversas com vários dos nossos compatriotas que vivem na região de Lyon. Porque não vendo ilusões, não consegui dar-lhes grandes certezas que acalmassem as suas angústias, até porque as não possuo. Apenas lhes disse da minha profunda convicção de que vamos "sair disto", porque, felizmente, na nossa democracia e na negociação europeia, existem sempre saídas. E não ousei dizer aos nossos compatriotas que o slogan "tina" ("there is no alternative"), que a senhora Thatcher e os seus turiferários utilizavam para tentar convencer os britânicos de que o mercado das soluções se esgotava nas soluções do mercado, é de um tempo que já lá vai...

quinta-feira, outubro 25, 2012

Pausa diplomática

Colegas do Quai d'Orsay lançaram um blogue com alguma graça. intitulado "Chroniques Diplomatiques", com pequenas frases sobre situações correntes ilustradas por imagens com algum movimento.

Aconselho a que se visite o arquivo do blogue, desde o início. 

Pergunto-me que tipo de frases surgiriam nas Necessidades...

"Vamos falar português"

Foi ontem, ao final da tarde, na UNESCO. Em mais uma sessão da iniciativa "Vamos falar português", algumas dezenas de luso-falantes e outros apenas amigos juntaram-se para ouvir falar do fado e ouvi-lo tocar cantar. Para tal, fiz a apresentação da doutora Ana Paixão, que é musicóloga e dirige a casa de Portugal na Cité Universitaire de Paris, e de Mónica Cunha, uma voz do fado em Paris, que também combina com a sua atividade docente.

As origens do fado estiveram inevitavelmente na berlinda, tendo sido evocada a polémica luso-brasileira em torno da teoria de que o fado "é brasileiro". Uma certa doutrina aponta no sentido do fado ter nascido, nos anos 20 do século XIX, em torno de figuras regressadas com a corte de dom João VI, portadoras de uma musicalidade onde se misturavam influências africanas e já brasileiras, que acaba por se fixar nos arredores de Lisboa e dar origem ao início daquilo a que hoje chamamos fado.

Uma amiga (brasileira, claro!) perguntou-me: "Você vai ter coragem de colocar no seu blogue que o fado é brasileiro?". Respondi-lhe que sim e que até acrescentaria que há rumores de que dom Afonso Henriques tinha uma prima do Ceará...

quarta-feira, outubro 24, 2012

"Frappés"

Os dois diplomatas chegaram tarde ao restaurante, para o almoço. Algumas mesas começavam a esvaziar-se. Naquela que ficava ao seu lado, um casal conversava animadamente. No balde com gelo entre as duas mesas, surgia uma garrafa de Chablis, "frappé", consumido por esses vizinhos. 

Chablis! Ora aí estava uma boa ideia! Pediram ao empregado dois copos de Chablis. O tempo passou, a conversa fluiu, os copos dos diplomatas foram-se esvaziando.

A certo passo, os convivas da mesa ao lado levantaram-se e saíram porta fora. Os diplomatas miraram a quase meia garrafa de Chablis por usar e, depois de um olhar discreto em torno, serviram-se. Sempre era melhor do que o vinho ir "para dentro", levado pelos empregados, conluiaram em voz baixa.

O Chablis estava excelente. Cada um acabou mesmo por se servir de mais do que um copo. A garrafa chegou ao fim, mas já estavam saciados. Iam pedir a sobremesa e, depois, dois cafés.

De súbito, os vizinhos da mesa ao lado regressaram, depois de, aparentemente, terem ido ao exterior fumar um pouco. Os diplomatas levantaram-se num salto, correram para o balcão, pagaram a conta e desapareceram, antes que a evaporação súbita do Chablis, na garrafa dos vizinhos de mesa, fosse notada.

Ontem, divertidos, contaram-nos a história. Noutro restaurante, claro.

Entrevista à revista "Must"

Aque horas se costuma levantar?  Em regra, tarde. Desde que saí da função pública, recusei todos os convites para atividades “from-nine-to-f...