sábado, janeiro 21, 2012

Messi

Há dias, passei hora e meia a "roer-me", ao assistir a mais uma derrota do Real Madrid face ao Barcelona. Não que tenha qualquer simpatia particular pelo Real ou um "azar" ao Barça: mas apetecia-me que Mourinho e Ronaldo ganhassem o jogo, até para colocar um fim à "malapata" que os tem perseguido no "derby" espanhol. 

No futebol, sou um patriota primário: para além de gostar de ver ganhar (todas) as equipas portuguesas que defrontam estrangeiros, desejo sempre sucesso às equipas estrangeiras onde estão portugueses. Não escondo que, numa ocasião ou outra, tive tentações para abandonar estes princípios, mas julgo ter sempre resistido. Mais do que pelos treinadores ou jogadores, anseio por essas vitórias porque sei bem o que elas significam para os nossos compatriotas que vivem no exterior, a quem uns suplementos de ânimo fazem bem falta, em especial nos dias que correm.

Mourinho e Ronaldo, uma vez mais, não ganharam. E não mereciam ganhar, pelo "jogo jogado". E, em especial, pelo facto do Barça dispor de Messi, essa maravilha da natureza que desequilibra tudo. Fui um fã da astúcia tática de Puskas e Beckenbauer, admirador da excecional leitura de jogo de Platini ou Croyft, conquistado pela codícia de Di Stefano e Maradona, maravilhado pela "jonglerie" de Pelé ou Best. Mas, sem cair no exagero de o considerar o melhor jogador de sempre, acho que há em Messi algo de especial que nos traz toda a alegria do mais belo jogo do mundo. Aquele rendilhado numa passada curta, a aceleração súbita com a bola atraída ao pé ou a visão instantânea para a assistência oportuna são qualidades muito raras.

Há dias, no "El País", António Lobo Antunes saiu-se com esta frase: "Ah, si pudiera escribir como Messi juega al fútbol!". Ficou tudo dito. 

Afeganistão

A decisão ontem anunciada pelo presidente Nicolas Sarkozy, de suspender temporariamente a atividade das tropas francesas presentes no Afeganistão, na decorrência da morte de quatro soldados seus e ferimentos em vários outros, provocada deliberadamente por um militar afegão, foi um gesto que encontrou grande eco na opinião pública deste país. Com efeito, há qualquer coisa de estranho quando tropas que estão no terreno para ajudar à formação e à ação de pacificação de um exército se tornam vítimas indefesas de membros dessas mesmas forças armadas, por virtude da falta de um mínimo de condições de segurança para a sua atividade.

O envio de forças para o Afeganistão, por parte de vários países, que se iniciou há cerca de uma década, foi um gesto de solidariedade política para com os Estados Unidos, no pós-11 de setembro, e, ao mesmo tempo, foi o reconhecimento de que a segurança futura de todos nós começava nessa longínqua fronteira, onde o terrorismo se afirmava e prosperava com impunidade. Foi uma iniciativa justa, coberta por um mandato internacional incontestável, cuja legitimidade não pode ser posta em causa. E Portugal foi, com toda a naturalidade, parte desse esforço, que honra a sua política externa.

Os resultados desta iniciativa estão, porém, muito longe das expetativas então criadas. O Afeganistão é uma sociedade muito complexa, onde os aliados internos de quantos pretendem ajudar à pacificação do país parecem, por vezes, enredar-se em estranhas flexibilidades táticas com o inimigo, muitas vezes cruzadas com comprovadas venalidades. Dá frequentemente a sensação de que aqueles que se esforçam por criar condições para uma sociedade afegã mais justa e democrática são como que forçados a "respeitar" um certo relativismo cultural, tido como essencial para a estabilização do poder interno, mesmo à custa de uma fragilização de princípios básicos em matéria de direitos fundamentais. E, aqui e ali, fica a impressão de que algum transigência, nomeadamente na política de alianças, pode colocar em causa o caminho para o futuro democrático e de tolerância que não pode ter deixado de estar por detrás da contribuição externa para a operação militar.

Começa a ficar claro que os parceiros internacionais do governo afegão, que têm procurado encontrar soluções para garantir as melhores condições para a solidificação do seu estatuto de autoridade, se começam a interrogar sobre se esse imenso esforço está a ser devidamente recompensado com reais resultados e com um total empenhamento de quantos, no país, têm obrigação de acelerar as condições para virem a tomar nas suas mãos, de forma autónoma, o seu próprio futuro.

A decisão francesa de repensar a sua ação no Afeganistão, deixando aberta a porta a uma possível retirada das suas tropas antes da data prevista de 2014, no caso de não encontrar uma resposta satisfatória às suas preocupações, é talvez um momento de verdade que pode ser útil a uma reflexão mais alargada, que ajude a ver mais claro quanto ao futuro do conjunto da ação militar internacional no país. O respeito pelos mortos em ações militares no Afeganistão, como os muitos que a França já teve de enfrentar nesta década, justifica bem este gesto. 

sexta-feira, janeiro 20, 2012

Blogue da Embaixada

Para quem esteja interessado nas atividades quotidianas da representação diplomática portuguesa em França, o Blogue da Embaixada de Portugal em Paris vai dando disso conta. Vale a pena lembrá-lo.

quinta-feira, janeiro 19, 2012

Guimarães

É já amanhã que arranca a programação de Guimarães - capital europeia da Cultura 2012. 

Como membro do Conselho Geral da organização, lamento imenso não poder deslocar-me à cidade, para me juntar à celebração deste dia festivo.

Tenho esperança que este projeto, cuja cuidada programação honra o país, possa concitar os aplausos que lhe são devidos. E desejo vivamente que as aves agoirentas, os profissionais do despeito mesquinho e as más-línguas velhas e relhas do Portugal azedo e reacionário, venham a ser caladas com o êxito desta iniciativa.  

Falkland/Malvinas

Foi já há 30 anos. Na velha lógica segundo a qual um conflito exterior se constitui num útil fator de reforço da unidade nacional e contribui para o esquecimento dos problemas internos, a ditadura militar argentina decidiu ocupar as ilhas Malvinas, o arquipélago adjacente ao seu território, que o Reino Unido mantém, desde há muito, sob a sua soberania (e a que chama ilhas Falkland). Tratava-se de dar concretização a um sentimento histórico que de há muito atravessa o imaginário argentino, que considera como um injustificável resquício colonial a presença britânica nas suas costas (um pouco como sucede com Gilbraltar, perante a Espanha, ou sucedia com Hong-Kong, perante a China).

A reação britânica acabou por ter uma dimensão inesperada. Meses antes, o vice-ministro Nicholas Ridley havia tentado convencer a população das ilhas a aceitar uma compensação financeira, em troca do seu acordo com um modelo de "leaseback" que permitiria a retoma, a prazo, da soberania argentina. Esta atitude parecia indiciar uma fragilização da vontade de Londres de manter a presença no arquipélago. Mas os argentinos "leram" mal a disposição britânica: o Reino Unido reagiu, "à antiga", à tentativa de invasão e enviou uma imensa esquadra que, embora com significativo custo, mas com um reconstituído orgulho, retomou o controlo das ilhas. A primeira-ministra Margareth Thatcher obteve uma retumbante vitória militar, que acabou por funcionar como um "boost" político para a manutenção dos conservadores no poder.

Eu vivia então na Noruega e recordo bem as lágrimas do meu colega argentino, Miguel Angel Cuneo, num final de tarde em minha casa, comentando a humilhação a que o seu país fora sujeito, dividido entre o que era um desiderato nacional e as consequências pesadas de uma iniciativa mal sucedida. O afundamento do cruzador "General Belgrano", a "jóia" da armada argentina, foi talvez a imagem mais dramática dessa imensa e histórica derrota, que acabou por representar o princípio do fim da ditadura militar de Buenos Aires.

Ao tempo da preparação do envio das tropas britânicas, o Reino Unido fez, em Lisboa, uma diligência junto do MNE, no sentido de poder utilizar facilidades nos Açores, como ponto de apoio da sua frota marítima. O secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros de então, o embaixador Leonardo Mathias, solicitou que o pedido fosse feito, formalmente, "à luz do tratado de Windsor", procurando, desta forma hábil, assegurar, de um modo implícito, que os britânicos se sentiam vinculados ao espírito da "oldest alliance". O embaixador britânico Hugh Byatt, não sem uma visível relutância, acedeu a apresentar uma nota com o "wording" exato que o nosso governo pretendia, referindo o tratado de Windsor. Ora esse era exatamente o mesmo tratado que Londres se havia recusado a considerar como invocável, quando, exatamente duas décadas antes, o governo português o havia lembrado, ao solicitar a ajuda de Londres, aquando da ocupação, pela União Indiana, das possessões portuguesas na costa malabar.

Dizia Disraeli, antigo primeiro-ministro britânico, que "a Inglaterra não tem amigos, tem interesses". Neste caso, a diplomacia portuguesa provou a Londres que, às vezes, pode ter interesse em ter amigos...

quarta-feira, janeiro 18, 2012

Euronews

Acaba de ser anunciado que a Euronews vai terminar a sua edição em português, por ter sido suspenso o contrato que mantinha com a RTP. A Euronews encontra-se sediada perto de Lyon, em França, e na edição portuguesa trabalhavam vários cidadãos nacionais. Há meses, reuni com o principal responsável da Euronews, com o qual discuti os problemas do financiamento do serviço em português.

Para além dos imperativos de natureza financeira que terão obrigado a esta medida, a qual acarretará a saída de vários jornalistas portugueses da estação, há que reconhecer que o fim da Euronews em português representa a desaparição de uma importante plataforma noticiosa em língua portuguesa, num espaço mediático internacional onde elas não abundam. Pena é que, entre a RTP e a Euronews não tenha sido possível encontrar uma solução que permitisse a manutenção do serviço.

Embaixada

As embaixadas são espaços de Portugal. É uma pena, em especial num país com tantos cidadãos de origem portuguesa, que nos não seja possível abrir as nossas instalações à visita regular dos nossos compatriotas. A casa de que Portugal dispõe no nº 3 da rue de Noisiel, em Paris, é um belo edifício, que o Estado português adquiriu há precisamente 75 anos, com uma história muito interessante, que vale a pena conhecer.

Em especial no nosso dia nacional, o 10 de junho, é hábito abrir a porta a membros da nossa comunidade, mas, infelizmente, eles só podem constituir uma pequena minoria.

Por vezes, como hoje, uma vez mais, aconteceu, trazemos jovens de escolas da nossa comunidade, para partilharem conosco este espaço. Hoje foram algumas dezenas de crianças de Chaville, que aqui tivemos a almoçar. Há semanas, seguindo uma prática iniciada há três anos, convidámos casais de reformados da nossa comunidade, para uma refeição ligada ao tempo das festas natalícias. Mas ficamos sempre com a sensação de que, por muitos que sejam, serão sempre muito poucos.

Nós e a Europa

Há dias, ainda antes da degradação da nota francesa pela agência de notação "Standard & Poor's", dizia-se aqui que esse facto, a vir a ter lugar, constituiria uma má notícia, não apenas para a França, mas, em geral, para toda a Europa. Confesso que, na altura, não quis acrescentar, embora o pensasse: também para Portugal.

A realidade aí está a prová-lo. A importância da França no Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) fez com que este instrumento sofresse, por virtude da nova notação francesa, uma consequente desqualificação. E, somado isto a mais uma degradação da nota portuguesa pela S&P ("cirurgicamente", na véspera de uma ida aos mercados do tesouro português) e à possibilidade de um "default" grego (que, para alguns mais pessimistas, pode indiciar o início de um cenário de "purga" da zona euro), aí temos perante nós, em alguma imprensa internacional, uma nova onda de desconfiança sobre a capacidade de Portugal inverter a situação que atravessa.

Resta esperar que o "tratado intergovernamental" que sairá da cimeira europeia do fim deste mês possa dar algum alento à confiança dos mercados e aliviar a pressão que hoje se projeta sobre alguns países - muito embora, em certos casos, a pressão desses mercados esteja a ser mais benévola do que esperado. É muito importante que as mensagens políticas que vierem a acompanhar esse acordo não surjam, como aconteceu no passado, matizadas por reticências que fragilizem o objetivo comum. Já vimos, algumas vezes, que considerações de política interna têm levado líderes europeus a assumir, de regresso às suas capitais, atitudes que são lidas como detrimentais para o que se acorda em Bruxelas - ou a deixar que isso possa emergir de posteriores reuniões do "eurogrupo" ou do Ecofin.

No caso de Portugal, um país que está a fazer um esforço notável de reconversão da sua situação macroeconómica, um ambiente europeu negativo funciona em claro contra-ciclo desse mesmo esforço. O que o tornará mais difícil de aceitação, porque é complicado manter a esperança quando os alvos se movem cada vez que trabalhamos mais para deles nos aproximarmos.

terça-feira, janeiro 17, 2012

João

- "Ó homem! Você descanse! Esses lugares são infernais!"

- "Vou ver se aproveito o fim de semana..."

Este final de conversa telefónica, comigo a dar o conselho, teve lugar ao início da noite da passada 5ª feira. O João Teotónio Pereira, chefe de gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros, tinha sempre a atenção de me responder no próprio dia às chamadas que eu lhe fazia para o gabinete (raramente ligo para telemóveis de quem tem muito que fazer), talvez porque soubesse que nunca o incomodava por razões fúteis. Dessa vez, a conversa foi sobre dois temas de política externa que eu lhe havia anunciado como delicados, que nada tinham a ver com a França, mas que eram suficientemente importantes para, através do João, serem transmitidos ao nosso ministro. Interessou-se por eles e prometeu fazê-lo, logo que possível.

Já o tinha dito a amigos comuns: desde há meses, sentia o João cada vez mais cansado na voz, talvez stressado pelo ritmo intenso de um trabalho a que se dedicava com afinco e empenhamento. O João era um homem intenso, preocupado com tudo, diligente ao pormenor, de uma lealdade à prova de bala em relação ao seu e nosso ministro.

O João Teotónio Pereira era senhor de um sorriso saudável, num fácies "boyish", de uma alegria natural que promovia a relação pessoal e abria, com facilidade, a porta à amizade. Éramos de gerações diferente, nunca trabalhámos juntos - saiu de Paris, onde foi cônsul-geral, uma semana depois da minha chegada, o que só me deu tempo para lhe oferecer um breve almoço de despedida - mas tivemos sempre um excelente relacionamento, marcado pelo respeito e pela amizade. Nunca esqueci gestos de solidariedade que teve para comigo, em tempos menos fáceis.

Ontem, o coração deixou o João, aos 51 anos, no fim da linha da vida. 

segunda-feira, janeiro 16, 2012

A diplomacia e as crises

A apetência patética da nossa comunicação social por declarações de viajantes portugueses em situações de crise, procurando explorar supostas ou eventuais lacunas no serviço prestado pelas nossos serviços diplomáticos ou consulares, só não choca ninguém porque essa é a atitude comum que hoje atravessa esses meios, na ânsia desesperada de diabolização de tudo o que ressoe a serviço do "Estado", tido como a fonte de todos os males. O caso recente do naufrágio do cruzeiro do Mediterrâneo apenas confortou essa conhecida prática.

Sei bem do que falo, porque estive envolvido em diversas situações dessa natureza e pude pessoalmente sentir essa pressão, tendo tido ocasião de lidar com profissionais da informação de diversa natureza - desde jornalistas competentes, no exercício do seu legítimo direito de informar e entendendo as limitações dos outros, até estagiários paraquedistas, sem pinga de deontologia, tentando fazer uma "caixa". Recordarei sempre um telefonema, num caso muito mediático passado no Brasil, de uma senhora de um jornal "de referência" que pretendia obter uma informação que eu não podia dar e que me dizia, desesperada: "Ó senhor doutor. E o que é que eu ponho em título? Se não tenho nada que chame a atenção, arrisco-me a que me chamem incompetente!". Ao que lhe respondi: "Escreva que o embaixador de Portugal se recusou a responder. Chega-lhe para o título? Já é qualquer coisa..."

Convém que se saiba que a rede diplomática e consular de que Portugal dispõe pelo mundo (e que certos setores da opinião publicada entendem dever ser ainda mais reduzida) é uma estrutura com muito escassos meios, quer materiais quer humanos. A esmagadora maioria das nossas embaixadas são minúsculas e tenderão cada vez mais a diminuir. Essas unidades estão - e teriam de estar sempre - impreparadas para afrontarem situações de crise, até porque, nessas ocasiões, as próprias relações com as entidades locais que poderiam servir de interlocutores úteis geralmente são difíceis de mobilizar. E se, em certos casos, é possível contactar membros de uma comunidade portuguesa residentes (e há imensos portugueses que, quando residem no estrangeiros por algum tempo, não se dão ao trabalho de se inscreverem nas unidades consulares, não deixando assim uma referência para emergências), é óbvio que, em especial em países com fortes fluxos turísticos, é perfeitamente impossível conseguir detetar e contactar, de imediato, todos os cidadãos nacionais que se encontram no país ou que estão envolvidos em situações de urgência. Nestes casos, o mais vulgar seria as agências de viagem coordenarem a informação sobre o paradeiro das pessoas que enviaram para esse país, competindo-lhes a elas, de imediato, o dever de contactar os serviços centrais do MNE, em Lisboa, e as próprias representações diplomáticas.

Convém que se saiba que, desde há vários anos, existe no Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, um "gabinete de emergência consular", que é reativado operativamente neste tipo de situações e que deve ser o polo de diálogo e interlocução para este tipo de emergências.  

Dito isto, não quero, de forma nenhuma, desculpar os casos em que, por razões de descaso ou má avaliação das situações, os diplomatas ou outros funcionários da rede diplomática possam ter sido menos competentes ou atentos a situações de crise. Esses casos existem, em Portugal como em todos os países, e devem ter as devidas consequências, quando se provar que houve incúria. Conviria, no entanto, que a nossa comunicação social se desse ao trabalho de procurar destrinçar, com rigor e calma, aquilo que são falhas condenáveis no sistema e o que podem ser meros desabafos de cidadãos em situação de tensão, que tendem as "descarregar" sobre os serviços públicos toda a sua pontual angústia. E - já agora - que refletissem que, a partir de um certo limiar de razoabilidade, não se pode querer "melhor Estado" quando se pugna tanto por "menos Estado". 

Paulo Martins (1946-2012)

Há dois dias, escrevi um mail a Paulo Martins, para o qual não tinha ainda obtido resposta. Há minutos, um amigo comum informou-me do seu falecimento.

Paulo Martins era um jornalista português que, desde há anos, residia no Brasil. Em Portugal, tinha trabalhado na rádio, na imprensa escrita e na comunicação institucional. Conhecemo-nos em Fortaleza, creio que em 2006. Deu-me então conta do seu grande interesse na figura de Aristides Souza Mendes e da sua ideia de levar a cabo, no Brasil, iniciativas para promover a divulgação da figura do cônsul perseguido pelo salazarismo. 

Em 2008, convidei-o a deslocar-se a Brasília, onde proferiu uma conferência sobre Souza Mendes, em paralelo com a palestra de um outro especialista sobre a figura de Souza Dantas, um diplomata brasileiro que, aqui em Paris, emitiu também vistos que salvaram a vida a refugiados durante a 2ª guerra mundial. Posteriormente, pediu-me um prefácio para um seu livro sobre exemplos éticos da diplomacia, tema que muito o seduzia, a que deu o título de "Humanistas da Lusofonia", de que só existe uma versão informática. Sei que teve também a intenção de desenvolver o projeto jornalístico "Ceará - Fórum empresarial".

Paulo Martins era um homem entusiasmado com a vida, a qual já lhe havia pregado algumas partidas. Deu-me conta, há tempos, de ter problemas graves de saúde, mas também de novos rumos familiares que muito o entusiasmavam. As coisas, como acabo de saber, ter-lhe-ão corrido menos bem, o que curiosamente nunca transparecia de correspondência que trocámos. Entristece-me a ideia de que não vou voltar a encontrá-lo, precisamente no ano em que é minha intenção aceitar um convite para ir fazer uma conferência a Fortaleza.

Um último abraço, Paulo.

Futebóis

Desde que me conheço como adepto do futebol, já assisti a vários ciclos de decisão sobre o número de clubes que devem fazer parte do escalão principal da modalidade.

Assim, dependendo dos ventos, já vi consensos bem fundamentados sobre a necessidade de reduzir os clubes que participam nessa prova, nomeadamente por forma a conferir-lhe maior equilíbrio e homogeneidade. Depois, vêm os tempos da "abertura": os teóricos da bola consideram que, por razões exatamente tão válidas como as que anteriormente eram apresentadas como irrefutáveis para suportar o argumento contrário, há a imperiosa necessidade de alargar o número de clubes participantes.

Este movimento está, em regra, ligado a uma "hidden agenda" no sentido de fazer ascender, por decisão administrativa, agremiações que a verdade desportiva colocou no escalão inferior e, quase sempre, faz parte de um "deal" não explicitado por detrás do apoio das associações distritais a determinadas candidaturas a órgãos dirigentes da federação e da "liga". Como agora ambas as instituições mudaram de titulares, não estranho que estejamos perante mais uma reedição deste tipo de jogadas. 

E o país desportivo de bancada, impávido mas reverente, assiste - através de "A Bola", o "Record" e "O Jogo", bem como da abundância de programas televisivos dedicados ao futebol - a esta ciclotímica mudança de razões, sempre impecavelmente bem fundamentadas.

Aliás, é o mesmo país que andou anos a discutir se o novo aeroporto se (não) fazia na Ota ou em Alcochete. Sempre com excelentes argumentos para cada lado, recorde-se.

domingo, janeiro 15, 2012

Ciberdúvidas


Fez ontem precisamente 15 anos, nasceu em Portugal o Ciberdúvidas, essa magnífica ferramente informática que nos ensina a esclarecer as dúvidas que possamos ter na utilização da língua portuguesa. 

Um dos seus fundadores, que ainda hoje é a teimosa alma do projeto, foi José Mário Costa, que, anos antes, fora já o organizador do primeiro "livro de estilo" de um jornal português, o "Público". Contra ventos e marés, tem conseguido levar avante o Ciberdúvidas e quero aqui deixar-lhe um abraço amigo e votos de coragem para o futuro.

Conheci o José Mário em 1968. Com o Fausto (esse mesmo, o cantautor) e outros amigos, fazia parte de um grupo de estudantes que, vindos de Angola, aportaram ao então ISCSPU, à Junqueira, nesses tempos em que Adriano Moreira tentava transmutar uma escola de formação de quadros para a administração colonial num centro cada vez mais dedicado às ciências sociais. Nos anos seguintes, estivemos envolvidos nas lutas académicas que "incendiaram" o ISCSP e a academia de Lisboa, com incidências na impressionante movimentação oposicionista para as "eleições" legislativas de 1969. O "Zé Mário" participou na primeira linha das batalhas políticas desse tempo e, por essa razão, foi preso pela PIDE/DGS. O 25 de abril iria encontrá-lo ainda, creio, na prisão política de Peniche.

Ao tempo da sua detenção, creio que em 1971, o movimento associativo universitário do ISCSPU decidiu inquirir junto da PIDE (que então já se chamava DGS - Direção-geral de Segurança - depois da reforma onomástica da "primavera" marcelista, que também transformou o partido único União Nacional em Ação Nacional Popular, bem como a Censura em "Exame prévio" ) sobre as razões que a fundamentavam e o futuro do nosso colega.

Porque era então presidente da Assembleia Geral da Associação académica, fui designado para me deslocar à sede da PIDE/DGS, na António Maria Cardoso. Expus o essencial da questão ao "pide" que estava na porta do prédio, que logo se mostrou um tanto perplexo com o sentido da diligência, estranhamente "naif", que eu estava a executar. Foi numa taquicardia conjuntural que subi a escadaria daquela sinistra casa, onde por aqueles tempos muita gente continuava a ser torturada, com as paredes recheadas de placas que lembravam agentes dessa polícia política que tinham perdido a vida em operações nas guerras coloniais em África.

Depois de uma longa meia hora de espera (é capaz de ter sido menos tempo, mas a mim pareceu-me uma eternidade), numa sala abafada, apareceu-me um "pide", com ar de mais sénior, a quem dei conta da nossa perplexidade pela detenção do nosso colega, explicando que também estávamos preocupados pelo facto dele não ter família na "metrópole" e, por essa via, poder não ter qualquer apoio.

O "pide", seco mas de bons modos, "sossegou-me": disse-me que o detido tinha uma tia que já tinha sido contactada e que "estava muito bem", pelo que não precisávamos de nos preocupar. Quanto aos motivos da detenção, nada podia dizer-me, mas "ninguém era detido sem razão". À saida, devolveram-me o bilhete de identidade que tinham guardado na portaria e, lembro-me bem, caminhei, sem olhar para trás, até à zona do S. Luiz, onde um grupo de colegas me aguardava. 

Só voltei a entrar na sede da polícia política depois do dia 25 de abril de 1974. Mas, nessa altura, foi já como militar e na minha qualidade de membro da "Comissão de Extinção da ex-PIDE/DGS e LP". A sala de espera onde eu tinha estado continuava idêntica. Mas respirava-se por lá melhor.

sábado, janeiro 14, 2012

Maçonaria

Devo dizer que sempre tive uma nunca superada dificuldade em perceber as razões que levaram alguns amigos meus a pertencer à Maçonaria. Mas nunca lhes perguntei nada sobre isso, porque entendo que nada tenho a ver com as opções filosóficas ou religiosas de cada um. Não me passa pela cabeça interrogar alguém sobre se é "testemunha de Jeová" ou se acredita no espiritismo.

Dito isto, não deixo de considerar algo "salazarento" o estranho movimento de opinião que, em Portugal, tenta forçar - por lei? - o "outing" de quantos se reunem para celebrar o "grande arquiteto universal". Posso estar enganado, mas deteto neste tropismo, um tanto persecutório, o renascer de um preconceito que, antes do 25 de abril, a ditadura tinha para com as confissões maçónicas, que levou à perseguição de alguns dos seus membros e ao encerramento violento dos seus locais. E, assumindo o risco de agitar a demonologia "talassa", gostava de lembrar o papel muito positivo que devemos à Maçonaria para a implantação da República.

Não é por ser mação, católico ou ateu que um cidadão é pior ou melhor que os outros. Bandidos ou pessoas de bem há-os por aí em todas as confissões, crenças ou "fezadas".

Manifestações

Em pouco menos de um ano, tiveram lugar, em frente à embaixada de Portugal em Paris, cinco manifestações, com um número variado de presenças. 

Este é um cenário que eu imagino que não deva agradar muito aos nossos vizinhos de rua, mas que é um dos preços que têm de suportar pelo facto de viverem numa área onde existem muitas missões diplomáticas.

Em Paris, uma das cidades do mundo com maior número de representações diplomáticas, onde vivem muito diversas comunidade estrangeiras, as manifestações em frente às embaixadas fazem parte do quotidiano. A polícia francesa tem alguns procedimentos de rotina para garantir que não há incidentes e, pela minha experiência, trata estes assuntos com muita sensibilidade e sabedoria.

Em todas as ocasiões em que houve lugar a manifestações - como aconteceu na tarde de hoje -, e que sempre decorreram com expectável civilidade, o embaixador de Portugal falou pessoalmente com os manifestantes ou com seus representantes, procurando ouvir as suas razões e auscultar, com atenção e respeito, os motivos da sua mobilização. É o mínimo que deve ser feito perante pessoas que assumem posições de cidadania democrática, que legitimamente pretendem fazer chegar às autoridades portuguesas.

sexta-feira, janeiro 13, 2012

6ª feira, 13

Ontem não tive, de facto, nenhum azar ou será que ainda ninguém me informou?

Triplo A

Aquilo que muitos já anunciavam como possível aconteceu: a agência de notação "Standard & Poor's" baixou o "rating" da França, que assim perdeu o chamado "triplo A". Outros países europeus, nomeadamente Portugal, viram também as suas respetivas notações degradadas.

Chamo a atenção para o que, há dias, aqui escrevi sobre o assunto.

João Alves das Neves (1927-2012)

Em 2005, quando cheguei ao Brasil, levava comigo o interesse em conhecer João Alves das Neves, um jornalista português há muito radicado em S. Paulo. Ouvira falar dele ao meu primo Carlos Eurico da Costa, com quem havia trabalhado nessa breve e pouco conhecida aventura jornalística portuguesa que foi o "Diário Ilustrado". Como outros jornalistas portugueses oriundos dessa experiência, Alves das Neves viria sair para o Brasil e a ingressar em "O Estado de S. Paulo". Durante décadas, vir o seu nome ser referido, em Portugal, associado a diversas atividades públicas realizadas no Brasil.

Encontrei João Alves das Neves pouco tempo depois de estar no Brasil, no tradicional almoço semanal da Casa de Portugal. Ao longo do tempo que estive naquele país, fomos mantendo um contacto escrito regular e, por diversas vezes, conversámos em S. Paulo. Lembro-me bem de, uma tarde, ter de lhe acalmar os seus ânimos agitados contra a gestão do nosso consulado-geral em S. Paulo. Era um homem emotivo, porque era uma figura muito apaixonada por tudo aquilo em que empenhava.

João Alves das Neves foi uma personalidade que se preocupou com a divulgação da cultura e da literatura portuguesa no Brasil, estando ligado a inúmeras iniciativas nesse âmbito, muito em especial através do movimento associativo da comunidade. Tinha um especial interesse em Fernando Pessoa, cujo Centro de Estudos criou, em S. Paulo.

Morreu agora na sua terra beirã, de que sempre falava com saudade.

Reformas "milionárias"

Nenhum diplomata teve, tem ou terá reformas "milionárias". Basta consultar o "Diário da República" para saber isso. Estou, por essa razão, bastante à vontade para falar deste assunto. E para dizer que a recorrente menção na imprensa de referências a reformas "milionárias", dentro da função pública, releva, na melhor das hipóteses, de um culposo desconhecimento das coisas e, na pior e mais provável, de má fé e despeito.

As reformas da função pública, consideradas "milionárias" ou não, são pagas na razão direta dos descontos que as pessoas fizeram ao longo da sua vida de trabalho, pontualmente retirados "à cabeça", antes dos salários chegarem aos bolsos dos trabalhadores. Quem mais descontou, recebe mais: tão simples como isso. Ao pagá-las, após o período legal em que cada um tem direito (período que, infelizmente, o Estado tem vindo a tratar, nos últimos anos, como uma "moving target"), o Estado não está a fazer nenhum favor a ninguém, mas, muito simplesmente, a retribuir aquilo que retirou ao salário do funcionário, ao longo de décadas. Dinheiro que - diga-se - utilizou, nesse período, sem pagar juros a ninguém.

A demagogia, tal como a mentira, dá excelentes títulos. Pena é que não surjam a terreiro vozes autorizadas, denunciando-a e não se colando a um processo que não é mais do que uma lamentável diabolização do serviço público.

quinta-feira, janeiro 12, 2012

Myanmar

Se clicarem no "flag counter" na coluna da direita deste blogue, verificarão que Myanmar foi o último dos 165 países de onde o "Duas ou três coisas" foi acedido, já em meados de novembro. Haverá por lá leitores do blogue?

Myanmar ou Burma ou Birmânia, como lhe queiram chamar, é um belo país da Indochina, que, desde há várias décadas, vive uma situação política tensa e complexa, que sempre preocupa o mundo. Uma grande figura da vida política birmanesa, Aung San Suu Kyi, prémio Nobel da paz, parece ter aberto recentemente uma porta de esperança democrática, num entendimento inédito com o governo militar que dirige o país. O passado, contudo, aconselha a olhar para este novo passo político com alguma prudência.

Uma amiga minha dizia-me, há dias, que está de partida para Myanmar, como turista, e pedia-me algumas "dicas". Confesso que não sei dar-lhas. Só sei que este me parece ser o melhor momento, desde há muitos anos, para uma mulher visitar Myanmar.

quarta-feira, janeiro 11, 2012

Guiné

A Guiné-Bissau atravessa um momento triste, com a morte, há dias, aqui em Paris, do seu Presidente da República. Ela ocorreu, por coincidência, pouco depois de mais um episódio de instabilidade institucional, dos que ciclicamente atravessam aquele Estado. Os países amigos, como Portugal, tudo têm feito, e tudo farão, para ajudar a Guiné-Bissau a ultrapassar os seus problemas.

A ajuda à Guiné-Bissau, por parte de Portugal, começou logo após o reconhecimento daquele Estado por Lisboa, em 10 de setembro de 1974. Recordo que o país tinha declarado unilateralmente a sua independência, ainda antes do 25 de abril, num ato formal que teve lugar em Madina do Boé, em 23 de setembro de 1973.

Imediatamente após a minha entrada para o MNE, em Agosto de 1975, fui colocado no então Gabinete Coordenador para a Cooperação. Uma das primeiras tarefas de que fui encarregado foi fazer uma pré-seleção dos candidatos a professores cooperantes para prestar serviço na Guiné-Bissau. Verificava se esses candidatos tinham as condições mínimas exigidas para o exercício das funções e, posteriormente, representantes guineenses faziam a seleção final, em função da adequação do perfil técnico dessas pessoas às necessidades do ensino local. O Estado português pagava uma parte do salário e as autoridades guineenses a outra parte. Era esse o espírito das ações de cooperação.

Devo dizer que foi uma experiência muito interessante, que se prolongou em recrutamentos para outras antigas colónias, e, quase quatro décadas passadas, ainda mantenho contacto com pessoas que conheci nessas circunstâncias, alguns dos quais sei que são leitores deste blogue. À época, muitos eram simples licenciados à busca de um primeiro emprego, que queriam tentar uma experiência nova, em terras distantes e promissoras. Outros eram pessoas manifestamente em rutura com a vida profissional, e às vezes familiar, que tinham em Portugal. Outros ainda, eram idealistas que procuravam transportar para as antigas colónias as ideias revolucionárias de um certo Portugal de então.

Não sei se está escrita, em algum sítio, a história dessa curiosa aventura da cooperação portuguesa, feita de algum voluntarismo, por vezes mal sucedida, por razões diversas, nem sempre por culpa dos próprios. Anos mais tarde, em Angola, convivi durante mais de três anos com várias dessas pessoas, porque me cabia coordenar na nossa embaixada o setor educativo da cooperação bilateral. Guardo uma recordação muito forte de alguns casos, por vezes dramáticos, que então cruzei e tive de ajudar a gerir. E já fui convidado para ir a encontros onde alguns desses antigos professores cooperantes alimentam a memória dessa sua aventura.

Na sequência da primeira vaga de professores cooperantes para a Guiné-Bissau, em cuja contratação participei, surgiu, poucos meses depois, um primeiro conflito, que me coube resolver. Um dia, recebi uma chamada telefónica de um colega da nossa embaixada em Bissau, informando-me de que um determinado cooperante português havia recebido ordem de expulsão das autoridades locais. Ao que me foi dito, esse professor teria, num acesso de descabido militantismo, numa reunião de escola, acusado o PAIGC de estar "a trair o espírito de Amílcar Cabral". Compreensivelmente, as autoridades guineenses deram-lhe ordem imediata de saída: era o que mais faltava estarem a receber lições políticas de estrangeiros!

O homem - porque era um homem, embora houvesse entre os professores bastantes mulheres - teimava em considerar que o seu contrato tinha sido suspendido sem justa causa e, por essa razão, informou a embaixada de que não abandonaria o território sem ser ressarcido da totalidade da retribuição nele prevista. Naturalmente, os guineenses recusaram, na parte que lhes cabia. Como os meus colegas na embaixada portuguesa em Bissau, muito sensatamente, o aconselhassem a regressar no primeiro avião, para evitar ter mais problemas e, eventualmente, ser detido por intromissão na vida política local, o professor cooperante, num derradeiro recurso, pediu que ligassem para Lisboa, porque queria falar comigo, a pessoa que o tinha recrutado.

Nessa conversa, antes da qual eu fora informado sobre os reais e fundamentados motivos da expulsão, fui muito claro: deveria seguir estritamente o parecer da embaixada e embarcar no primeiro avião para Lisboa. O nosso homem mostrou-se, contudo, muito renitente: achava-se cheio de razão e insistia que não partiria sem ser totalmente reembolsado. Tentei convencê-lo por várias formas, sem grande sucesso. Até que me ocorreu uma ideia:

- Diga-me uma coisa: onde é que esteve instalado, desde que chegou a Bissau?

- Inicialmente, num hotel. Uma coisa impossível, nem imagina! Sem o mínimo de conforto e com muito más condições de higiene. Agora já estou numa casa melhor, com outros colegas.

Eu sabia que isso era pura verdade. Muitas das antigas colónias portuguesas tiveram grandes dificuldades, por falta ou degradação de instalações, nesses primeiros tempos pós-independência, para alojar convenientemente os primeiros professores cooperantes, como eu próprio tive oportunidade de constatar noutros locais. Bissau não era, naturalmente, exceção. Mais tarde, e exatamente por essa razão, por lá foi construído por nós um bairro para cooperantes portugueses.

A minha pergunta não fora inocente. Por isso, adiantei:

- Olhe, meu caro! Você já teve oportunidade de experimentar os hotéis de Bissau. Imagine agora como serão as prisões. E se não apanhar o próximo avião para Lisboa, há grandes probabilidade de lá bater com os costados, sabe-se lá por quanto tempo...

O homem regressou nesse dia.

Em tempo: uma correspondente enviou-no o link para um blogue dos atuais professores cooperantes portugueses na Guiné-Bissau.

Cargos

Um livro recém-publicado aqui em França recorda que Valéry Giscard d'Estaing, depois de ter deixado a Presidência da República, se sugeriu, anos mais tarde, como candidato ao cargo de primeiro-ministro ou, mesmo, de ministro dos Negócios Estrangeiros. A atualidade traz-nos o facto de Alain Juppé, antigo primeiro-ministro, ter sido, posteriormente, ministro de várias pastas, sendo hoje chefe da diplomacia francesa. No passado, também Michel Debré, depois de ser chefe do executivo, desempenhou várias funções ministeriais.

Não passa pela cabeça a ninguém, em Portugal, que um presidente da República ou um primeiro-ministro venham assumir, num governo posterior, um cargo de ministro. Estou certo que, no nosso país, nenhum titular desses cargos aceitaria essa possibilidade e que a opinião pública reagiria, com alguma estranheza, se acaso isso viesse a acontecer.

É muito interessante verificar como as culturas políticas podem ser tão diferentes, de país para país.

terça-feira, janeiro 10, 2012

Siglas

De há uns anos para cá, a diplomacia tem vindo a converter-se ao uso intensivo de siglas e acrónimos, nos seus documentos e comunicações. Parte significativa da "telegrafia" multilateral, nomeadamente europeia, passou a estar recheada dessas fórmulas, que parece deliciarem os iniciados. Lentamente, há mesmo o risco de começarmos a aproximar-nos dos militares - categoria profissional que permanece imbatível no uso e abuso dessa escrita "económica", que deixa de fora quem não é da casta ou quem não lhe frequenta, com devoção, a liturgia organizativa.

Há menos de dois meses, fui a Lisboa a um almoço comemorativo dos 30 anos do fim de um partido de que fiz parte na minha juventude - o MES - Movimento da Esquerda Socialista. No dia seguinte, ainda em Lisboa, a caminho do aeroporto, recebi, no meu telemóvel, uma mensagem de um colega, embaixador em Paris de um país do norte da Europa, que dizia simplesmente: "Il faut qu'on parle sur l'évolution du MES". Liguei de volta, mas estava incomunicável.

Que diabo quereria aquele amigo sobre o MES? Como tinha sabido da minha presença, no dia anterior, no almoço comemorativo do fim do partido? Nunca tinha percebido que ele mantinha qualquer interesse pela situação política portuguesa, no tempo da Revolução dos cravos.

Horas depois, chegado a Paris, telefonei-lhe, intrigado. E lá me disse, então, que queria trocar impressões comigo sobre o modo como Portugal via a evolução do MES, o "Mechanism Européen de Stabilité", um dos instrumentos da Europa do euro, que pode ser uma das chaves para dar a volta a crise...

segunda-feira, janeiro 09, 2012

Acordo de cooperação

O ministro voltou-se para trás, para o adjunto do diretor-geral (era assim que, à época, se designavam, no MNE, os subdiretores-gerais), e perguntou:

- Não há nada para assinar?

Nesses anos 70, estávamos numa reunião entre delegações presididas pelos ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal e de S. Tomé e Príncipe, no palácio das Necessidades. A discussão tinha uma longa agenda, nesses tempos complexos de resolução do contencioso remanescente da transição pós-colonial e do início de alguns modelos de cooperação. Os trabalhos prolongar-se-iam pelo dia seguinte, culminando com uma conferência de imprensa.

A assinatura de um acordo, ou de um outro instrumento jurídico bilateral, ajuda sempre a "compor" uma visita oficial, produzindo, no imaginário público, resultados mais concretos. Durante muitos anos, quando não havia nada para assinar, era vulgar rubricar-se um "acordo de supressão de vistos em passaportes diplomáticos". Hoje, como esses acordos têm consequências mais sérias, é comum o recurso a "protocolos de cooperação", entre instituições da mais variada natureza. Alguns úteis, outros apenas inócuos.

O responsável diplomático, meu chefe, olhou para mim, que tinha o pelouro, passando-me implicitamente "a bola".

- Não, senhor ministro, não há nada para assinar, respondi.

Nos anos anteriores, tinha sido firmada uma montanha de acordos e protolocos entre os dois países. Estava praticamente tudo concluído. Contudo...

- Bom, há um texto que está em estudo no ministério da Saúde. É um protocolo de cooperação que permite prolongar, depois da independência, a possibilidade dos funcionários públicos de S. Tomé terem acesso ao antigo hospital do Ultramar, bem como outras facilidades. Mas não sei em que pé está essa apreciação...

- Veja isso já! Veja isso com o gabinete do ministro da Saúde! Era bom termos algo para assinar amanhã, disse o ministro, voltando-se para a frente.

O meu chefe, excelente amigo e magnífico diplomata, sorriu-me, como que a dizer-me: "já que 'abriu a porta', agora amanhe-se...". E eu fiquei com a "batata quente". Arranquei para o meu local de trabalho, falei com o ministério da Saúde (lembro-me bem de que o meu interlocutor foi um adjunto do ministro, chamado Paulo Mendo... que, bastantes anos mais tarde, viria a ser ministro da pasta!) e, por um milagre, o assunto estava já desbloqueado, com parecer positivo. Fui pessoalmente ao ministério buscar o texto e conferi-o com a embaixada santomense, a qual, sem problemas, anuiu a tudo, até porque praticamente só tinha efeitos unilaterais.

Mandei então dactilografar o acordo. Disse à senhora (as dactilógrafas eram, nesse tempo, todas mulheres) para fazer dois exemplares: um para nós, que abria com "A República Portuguesa e a República Democrática de S. Tomé e Príncipe..." e outro para S. Tomé, em que a ordem dos países era trocada. Para quem não saiba, a regra é que, num acordo, cada país fique com a cópia que começa com o seu nome. O mesmo se passa no lugar das assinaturas, na última página, onde, na nossa cópia, a assinatura do nosso responsável se situa à esquerda. Normalmente, cada país tem o seu próprio papel e capas para os acordos, bem como as suas próprias fitas coloridas, que entrançam as folhas, além de usar um sinete próprio, para firmar o lacre. Coisas da diplomacia universal...

Na tarde da cerimónia da assinatura, que antecedia a conferência de imprensa, tudo correu impecavelmente. Ainda tenho uma fotografia dessa cena publicada no "Diário de Notícias", comigo com um cabelo bastante comprido, largo bigode tipo mexicano e gravata com um nó imenso. A notícia do jornal fala de um "importante instrumento jurídico" assinado nesse dia. O pior foi, no entanto, o dia seguinte.

Nessa manhã, fui acordado bem cedo, em casa, pelo meu interlocutor da embaixada santomense, quase em pânico. É que, na cópia santomense, o nome do seu país não estava apenas trocado no início do texto: em vários pontos do articulado, onde, por exemplo, na cópia portuguesa, se lia que "Portugal compromete-se a facilitar o acesso às suas unidades hospitalares aos funcionários públicos de S. Tomé e Príncipe", surgia "S. Tomé e Príncipe compromete-se a facilitar o acesso às suas unidades hospitalares aos funcionários públicos de Portugal"... As "responsabilidades" para S. Tomé passavam a ser imensas!

O que acontecera? A dactilógrafa havia feito uma leitura "extensiva" da instrução que eu lhe dera para a troca dos nomes dos países, decidindo mudá-los ao longo de todo o texto do acordo. A culpa do que acontecera era, claro, totalmente minha, que, com a precipitação, não tinha tido o cuidado de fazer a verificação dos dois exemplares do acordo.

Levei algum tempo a acalmar o meu colega santomense, explicando-lhe que, mesmo depois de assinado pelo seu ministro, o texto só seria válido após publicado e, naturalmente, isso nunca aconteceria antes de estarem feitas as devidas correções. E, logo nessa tarde, fez-se um novo exemplar, que se pediu, já não sei bem com que argumentário, que o nosso ministro assinasse. E tudo se resolveu.

Ainda hoje guardo o "extraordinário" exemplar assinado pelo ministro Miguel Trovoada, onde S. Tomé se compromete, por exemplo, a "facilitar o envio para Portugal de medicamentos" e outras formas similares de "cooperação".

E só há uns anos, na mesa do "Procópio", ousei contar a história ao ministro português de então, de quem vim a tornar-me amigo. Riu-se a bom rir!

Diplomacia e economia

O site "Dinheiro Vivo", e as suas edições no "Diário de Notícias" e "Jornal de Notícias", trouxeram três respostas telefónicas minhas a outras tantas questões que me foram colocadas sobre o trabalho económico das embaixadas, que podem ser lidas aqui. O "seminário diplomático", ocorrido na passada semana em Lisboa, concentrou-se nesta temática e o ministério dos Negócios Estrangeiros está plenamente mobilizado para, neste tempo de grande exigência, dar o seu contributo para a recuperação económica do país. 

Os titulares das missões diplomáticas e consulares portuguesas são os primeiros interessados em ver valorizado o seu trabalho na área económica, correspondendo às orientações que lhes foram transmitidas pelo poder político. Julgo, aliás, que isso ajudará a alterar uma falsa perceção que existe, nomeadamente em alguma comunicação social, sobre aquilo que a diplomacia portuguesa tem feito, até agora, em matéria de apoio à atividade empresarial. Muitas empresas nacionais são boas testemunhas do grande empenhamento que os diplomatas de há muito colocam na ajuda à sua internacionalização. Sempre desafiei publicamente - e continuo a desafiar - aqueles empresários que possam ter razões concretas de queixa do trabalho das missões diplomáticas a exporem-nas de imediato às nossas autoridades, mesmo a denunciarem na imprensa os legítimos apoios pedidos à diplomacia e não correspondidos. Quem não deve não teme, e isso é válido para todos. O que é inaceitável é ver, por vezes, publicadas críticas de natureza genérica, que ofendem a nossa ética profissional e que mais não são do que meros preconceitos quanto à diplomacia e aos diplomatas.

As coisas podem e devem sempre melhorar, em especial através do reforço de uma cultura diplomática mais "business-oriented", em alguns casos através de uma mais eficaz relação das embaixadas com a AICEP. Tem de existir uma definição clara, por parte dos agentes económicos e dos organismos (associativos ou de promoção) que estruturam a sua intervenção externa, do que se pretende da atividade de cada missão diplomática ou consular. Até porque cada caso é um caso. O exigente ano de 2012 é talvez o tempo certo para levar à prática este esforço acrescido. 

Triplo A

A eventual perda da classificação "triplo A", que a França detém nos "ratings" das principais agências de notação, é uma questão que tem atravessado os debates neste país, nos últimos meses. A questão tem implicações económicas sérias, porque um eventual "downgrading" da França provocaria maiores custos no seu endividamento nos mercados. Outros observadores olham também para o aspeto político do problema, interrogando-se sobre o papel futuro da França como uma das vozes com maior autoridade nas grandes decisões europeias, se acaso a sua desqualificação se processasse. Este último argumento é desvalorizado por outros, que assinalam que a degradação da notação dos EUA não fez perder a Washington um papel central no quadro decisório global.

Uma coisa é certa: para além do efeito sobre a própria França, não seria uma boa notícia para a Europa em geral se as agências de notação viessem a baixar a sua classificação, eventualmente com as de outros países europeus que ainda detêm o "triplo A". Para além dos efeitos de mercado, as consequênciais globais sobre a imagem da Europa seriam muito negativas e teriam imediatas implicações na credibilidade da zona Euro. A somar-se a tudo isso, e se acaso essa degradação viesse a acontecer nas próximas semanas, ela teria um inevitável efeito de antecipado descrédito sobre os esforços em torno da fixação do novo tratado intergovernamental europeu, cuja única verdadeira razão de ser é a tentativa de mobilizar a confiança dos mercados.

Um reputado economista francês contava-me, há dias, uma conversa tida com um responsável de uma agência de notação, que o teria deixado perplexo. Esse responsável assumiu que muitas das decisões, em termos de notação, que a sua empresa fazia eram, não apenas constatações feitas na base de dados objetivos relativos à sustentabilidade financeira de empresas ou Estados, mas traduziam já uma espécie de antecipação daquilo que se podia qualificar como o estado de espírito dos mercados. Assim, para além de uma notação vir a influenciar os mercados, ela própria já "presume" aquilo que os mercados estariam predispostos a ouvir. Interessante e preocupante.  

domingo, janeiro 08, 2012

Anuário

A exemplo de outros países, o ministério dos Negócios Estrangeiros publica um volume intitulado "Anuário diplomático e consular português". A palavra "anuário" é apenas um "wishful thinking", porque, contrariamente ao que o nome poderia indiciar, a sua edição é aperiódica e de aparecimento irregular. Pode dizer-se que o nosso anuário é uma publicação essencialmente católica: só sai quando Deus quiser...

O anuário abre com as biografias das principais figuras de Estado, seguidas de um utilíssimo registo histórico de todos os titulares políticos na área das relações externas, antecedido de um texto, de mais de uma dezena de linhas, que não muda há décadas e que começa assim: "A reorganização da Administração pública, imposta pela experiência na primeira metade do século XVIII (...)". Tive um embaixador que sabia de cor quase todo esse texto...

Recordo-me que, num certo ano, um titular de um cargo político do MNE tinha no anuário, em vias de publicação, uma foto de que não gostava o que, somado ao facto de um seu influente assessor estar mal colocado na hierarquia do gabinete que nele era referida, levou à destruição de todos os exemplares dessa edição. Todos, não! Eu, pelo menos, guardo em exemplar, em cadernos ainda não costurados, dessa "raridade"...

O anuário traz também a composição, endereços e telefones das nossas missões e serviços internos. Porém, como não sai todos os anos, e porque no MNE as pessoas rodam com muita frequência, nunca temos a certeza sobre se estão atualizadas. Hoje existe uma versão informática do anuário, bem mais prática, mas que, por um mistério que nunca entendi, não incorpora as biografias dos pessoal diplomático, técnico e administrativo.

Ora o "sumo" do anuário são, precisamente, os currículos dos funcionários do MNE, que nos permitem ter um retrato do seu perfil e percurso. Durante anos, cada um escrevia a sua biografia como muito bem entendia. Foi um período em que apareceram, em alguns anuários, currículos desproporcionados, sem equilíbrio, em que alguns adidos de embaixada tinham extensões de texto idênticas à de embaixadores "chevronnés". Esse tempo acabou e hoje há uma espécie de "template" que torna as coisas bem mais simples e comparáveis.

Para a minha primeira entrada no anuário, creio que em 1976, enviei um texto em que colocava a minha qualidade de "adjunto do gabinete da Junta de Salvação Nacional, em 1974". O secretário-geral de então pediu a alguém do seu gabinete para me chamar, recomendando que eu retirasse essa menção, aparentemente pouco consentânea com o perfil que se considerava adequado para um diplomata. Com alguma coragem de que hoje me orgulho, recusei firmemente a sugestão e insisti que a minha pertença ao MFA ficasse no anuário. Na última edição, bem mais de três décadas depois, lá figura essa menção, pois claro!

Num qualquer ano da década de 80, foi-me pedido que conseguisse retpmar a edição do anuário, que já não se publicava há uns tempos. Descobri um técnico do MNE que estava desocupado e encarreguei-o da tarefa, dando-lhe algumas divertidas diretivas enquadradoras, que não agora vêm para o caso. Ele foi diligente e, em escassos meses, preparou o livro. Eu fui acompanhando a execução da tarefa, mas escapou-me um pormenor: chegado ao capítulo das biografias dos técnicos, o homem auto-atribuiu-se duas longas páginas, que contrastavam com as escassas linhas dos seus colegas...

Matraquilhos

Desde há dois dias que a "Eurosport" nos traz o "campeonato do mundo" de matraquilhos, a nível de seleções nacionais. Quem havia de dizer que aquilo que jogávamos na "União Artística", lá por Vila Real, ou nalgumas tascas da periferia, haveria de ter honras de transmissão televisiva internacional. Por este andar, um destes dias, ainda veremos os matraquilhos como modalidade olímpica. 

E assim se abre a esperança para a consagração, a prazo, do jogo das "caricas" (ou "latinhas", como se dizia na minha infância).

sábado, janeiro 07, 2012

A caneta

Entrou com um sorriso tão largo como a cabeça, a voz forte, conversa trapalhona e esforçadamente amigável. Estava a fazer um trabalho, lá para o jornal, precisava de umas estatísticas e de umas datas. Para encher o tempo e impressionar, deixou cair os nomes (próprios, claro) dos seus muitos conhecidos na casa, com ar íntimo. Vinha recomendado "do alto".

O diplomata conhecia-lhe a fama, hesitou, mas não teve outra opção: deixou-o só, no gabinete, enquanto foi buscar os tais dados. Minutos depois, quando regressou, notou que um determinado documento, que tinha sobre a sua mesa, tinha mudado de posição. Tratava-se de uma proposta sobre os possíveis integrantes numa visita oficial ao estrangeiro, a nível elevado, que deveria ter lugar dentro de algumas semanas, mas que o diplomata ainda nem sequer tinha feito seguir "para cima". O homem, grande, enchendo a cadeira de braços, continuava sentado em frente à sua secretária, de bloco e caneta (de ouro?) na mão. Disse mais umas coisas, agradeceu os elementos, despediu-se e saiu, ainda e sempre palavroso. 

Dias depois, sobre o motivo do contacto, o semanário nada trazia. Mas lá vinham, escarrapachados, como "furo", os supostos dados sobre a deslocação oficial. Os quais, na realidade, nem haviam sido ainda analisados, ou sequer lidos, por alguém. Excepto na "notícia" desse jornal, já desaparecido, pilhada do documento interno.

Às vezes, como os dias provam, o crime compensa.

sexta-feira, janeiro 06, 2012

Margaret Thatcher

Foi ontem a estreia no Reino Unido de "A dama de ferro", o filme em que Meryl Streep desempenha o papel de Margaret Thatcher, que foi, por mais de uma década, primeira-ministra britânica. Independentemente das críticas que o filme venha a merecer, pelo interesse que a figura política me desperta e pela admiração que tenho pela atriz, tenciono vê-lo, logo que possa.

Thatcher foi uma figura da maior relevância na vida política mundial dos anos 80, quaisquer que sejam as opiniões que a sua orientação ideológica "freemarketeer" possa suscitar. Sucedendo no poder à liderança trabalhista pouco hábil de James Callaghan, soube impor um estilo de governação bastante afirmativo, contrariando alguns poderes sindicais tradicionais, defendeu o Reino Unido em cenários tão extremos como o da guerra das Falkland, assumiu um constante euroceticismo que isolou Londres no contexto comunitário e levou a "special relationship" com os EUA a um tempo de glória para a projeção de Londres.

Adulada pelos conservadores e diabolizada pelos progressistas, entrou em declínio por evidente cansaço público do seu intenso e inflexível estilo, por algumas más decisões políticas e pelo facto de, a partir de certa altura, não ter medido bem a própria dinâmica interna que, contra si, se estava a gerar no seio do Partido Conservador. A sua substituição por John Major resultou de um golpe "palaciano" digno do melhor "thriller", que vária bibliografia descreve com pormenor.

(Sobre a ação de Margaret Thatcher, leia-se, com vantagem, o magnífico "One of us", de Hugo Young, e "Mrs. Thatcher Revolution", de Peter Jenkins. A seu favor, há as memórias de Nicolas Ridley, Norman Tebbit e Cecil Parkinson; contra, as de Michael Heseltine; explicando porque a "deixaram cair", as de John Major e Geoffrey Howe. Sobretudo, não se leiam as desinteressantes memórias da própria Thatcher.)

Fui colocado na nossa embaixada em Londres nos últimos meses do governo de Margaret Thatcher. Tive a inaudita sorte de poder assistir, da bancada dos visitantes da Câmara dos Comuns, na tarde de 22 de novembro de 1990, à sua última e histórica prestação. Recordarei, para sempre, o ambiente barulhento, simultaneamente divertido e tenso, interrompido pelos "order!" do "speaker", desse grande momento da história parlamentar britânica.

Num discurso anti-europeu quase de antologia, marcado por uma sectária identificação da ideia comunitária com o "socialismo", denunciou a "federal Europe through the backdoor" que chegaria com a moeda única (citando um Nigel Lawson, um tanto encurralado no "backbench", obrigado a anuir com a cabeça), demonstrando um ostensivo desprezo pelo líder trabalhista Niel Kinnock (que disfarçava, em conciliábulos com Roy Hattersley, quando Thatcher o acusava de querer "to run, or is it to ruin?, this country" ou quase o insultava abertamente, a propósito da moeda única: "the right honourable gentleman doesn't even know what it means").

Do lado conservador, já conquistado internamente para a queda de Thatcher, o "body language" não enganava: a cara impávida de Kenneth Baker, o esfíngico sorriso de John Major, o esgar afilado de Malcom Rifkind e a face hostil do antigo PM Edward Heath diziam já tudo.

Uma interrupção do seu discurso abriu o momento mais divertido da sessão. Ao ser perguntada se tencionava continuar a lutar contra um "independent central bank" europeu, depois de sair do poder, ouviu-se um sonoro "no, she's gonna be the governor!", dito pelo "maverick" radical trabalhista Dennis Skinner, com o seu blazer espinhado e cabelo à Tony de Matos. Toda a câmara caiu em gargalhadas, Thatcher reagiu com um galhofeiro "what a good idea!" e, na passada, repetiu uma frase que ficou famosa nesta sua derradeira "performance": "I'm enjoying this!". Quem quiser ver a memorável cena, pode consultar aqui.

A senhora Thatcher está hoje incapacitada e não verá, com certeza, o filme que motivou. Mas já faz parte da História. Como disse, pensemos o que pensemos sobre ela, foi uma figura que marcou fortemente uma época.

Politicamente correto

Ontem falou-se aqui de um neologismo do politicamente correto. Hoje conto duas histórias que andam por lá perto.

Há muitos anos, na embaixada em Luanda, confrontei-me com um funcionário que se recusava a fazer entrega de documentos entre os gabinetes, porque tinha deixado de ser "contínuo" e fora reclassificado como "operador de reprografia de 2ª classe". Perguntei-lhe então o que é que ele achava que deveria ser a sua atividade: "tirar fotocópias", respondeu-me. Não me contive: "Eu, se precisar de fotocópias, nunca lhe pediria a si. É que se é de 2ª classe, só deve tirar más fotocópias. Se tirasse boas fotocópias, era de 1ª classe...". 

Um dia, nos Estados Unidos, deixei dois americanos, brancos, um tanto chocados. A propósito de um empregado negro que passava, um deles utilizou, para o designar, o tradicional termo "afro-american". Não resisti e perguntei-lhes: "Digam-me um coisa: como é que eu os designo a vocês? Julgo que o termo WASP (white anglo-saxon protestant) é inconveniente. Posso chamar-lhes "euro-americans"? Não sei porquê, mas fiquei com a sensação de que não apreciaram... 

quinta-feira, janeiro 05, 2012

Nacionalismo económico

O nacionalismo económico é um reflexo normal em tempos de crise. A tendência para o argumentário protecionista, para o estímulo a consumir preferencialmente o que é "nacional" e, à la limite, a busca tendencial da autosuficiência (ouve-se muito isso, sob o conceito de "segurança alimentar", no debate sobre política agrícola), tudo isso faz parte de uma reação natural num tempo de medos e de incertezas.

Sem negar a importância de tentar reduzir, por todos os meios possíveis, o défice da nossa balança comercial externa, alguma prudência e racionalidade devem ser mantidas neste tipo de discurso: basta lembrar que, se todos os outros procedessem da mesma forma, ninguém consumiria um único produto português no estrangeiro. Ora é unânime o reconhecimento de que é na exportação que reside grande parte da chave para o nosso crescimento. Mas convenhamos que é um pouco irónico estar a apelar ao "patriotismo" dos consumidores quando - como se viu  nos últimos dias - há operadores económicos com uma noção de Pátria bem mais ligada à folha de lucros.

O debate sobre esta temática está muito aceso aqui em França, em tempos de campanha presidencial, com os vários candidatos a falarem nela, em tons diferenciados. Há dias, o presidente Sarkozy fazia uma importante distinção entre o conceito de "comprar produtos franceses" e o de "comprar produtos produzidos em França", dizendo ser favorável a que se privilegie a compra destes últimos (mesmo por empresas estrangeiras que aqui investiram e atuam - criando postos de trabalho, pagando impostos) ainda que em detrimento de que de produtos fabricados no estrangeiro por empresas francesas (fruto de deslocalizações, por virtude de regimes salariais e fiscais mais favoráveis e, eventualmente, de algum "dumping" social). Percebe-se a racionalidade desta tese mas, também ela, se confronta com uma realidade inescapável: muito daquilo que, na área industrial, é atualmente produzido, em França como em outras partes do mundo, nomeadamente nas áreas com maior valor acrescentado, obriga à utilização de componentes importados de países com custos de produção mais baixos, sendo de todo impossível garantir a sua substituição por produtos idênticos gerados em território francês.

A globalização (a que, em França, se chama "mundialização") criou uma lógica de funcionamento coletivo dos mercados que, na prática, limita hoje muito o recurso a medidas de "preferência nacional" através de decisões administrativas ou outras de sentido normativo. E a plena interiorização disso na filosofia da política externa da UE reduziu, também bastante, as possibilidades de recuo para a retoma da antiga "preferência comunitária", tanto mais que a justiça comunitária é de um irreversível rigor. O único espaço que hoje ainda existe, para os países que não queiram violar abertamente as regras a que se comprometeram na Organização Mundial de Comércio, é trabalhar nas margens de recuo que o fracasso do "ciclo de Doha" da organização acaba por dar. Basta ver as medidas que o Brasil tomou nos últimos dias para se perceber o que pode representar uma assumida agenda protecionista nos tempos modernos.

Mas é importante que cada um seja chamado a assumir as suas responsabilidades. Muitos dos que agora protestam contra as consequências negativas deste estado de coisas estiveram, com todo o entusiasmo, ao lado dos promotores das aberturas dos mercados nas liberalizações dos anos 80 e 90, quando isso lhes dava jeito para adubar as loas que faziam ao "internacionalismo dos mercado". Isso era então o salvatério para um mirífico bem-estar coletivo, um espécie de "amanhãs que cantam" do liberalismo, aprendido em MBA anglo-saxónicos ou que em Portugal se esforçam por passar por isso. São os mesmos, aliás, que endeusaram a desregulação "criativa" dos mercados financeiros internacionais, com as consequências que agora se viu. E gostaria de lembrar que quando, por essa altura, alguém se atrevia a falar das condições sociais de produção em certos espaços geográficos (trabalho infantil, regras laborais, limitações sindicais, "dumpings" diversos), era um "aqui d'el rei!" de que se estava a tocar na liberdade de comércio. Agora queixem-se...

Fatura

Não consigo encontrar um mínimo de racionalidade na decisão, hoje anunciada na comunicação social, de vir a punir com coimas quem não pedir recibo numa qualquer transação comercial e, ao mesmo tempo, instituir uma outra coima para quem não quiser emitir essa fatura.

Não seria muito mais simples determinar que toda e qualquer transação comercial deveria dar origem automática à emissão de uma fatura/recibo, sem que nunca houvesse necessidade de pedir esse documento? Em vários países onde vivi existe essa regra, pelos vistos inaplicável em Portugal.

Mas, com certeza, devo ser eu quem está a ver mal as coisas.

Neologismos

Hoje, passou-me pela mão um documento oficial em que se fala de "aprendentes" de cursos. 

Será que já faz parte do politicamente correto ter medo de dizer "alunos"?

quarta-feira, janeiro 04, 2012

Diplomacia desportiva

Ontem, durante o Seminário Diplomático, ao ministro francês dos Negócios Estrangeiros, convidado de honra para a ocasião, foi oferecida uma garrafa especial de vinho do Porto, testemunho da importância que tem, para Portugal, o mercado francês. Alain Juppé é "maire" de Bordeaux, onde se produzem magníficos vinhos de mesa, mas nada parecido com o néctar do Douro. 

Como tenho aqui repetido algumas vezes, a França é o primeiro destinatário mundial das exportações de vinho do Porto, embora haja ainda muito a fazer para garantir que possamos aqui vender quantidades significativas dos nossos melhores Portos. E - já agora, vale a pena dizê-lo - não foi fácil conseguir, há alguns meses, numa negociação que foi complexa, isentar o vinho do Porto de uma nova tributação fiscal, no orçamento francês para 2012.

Se a França é, atualmente, o maior consumidor, o Reino Unido foi, desde sempre, o seu mais tradicional destino de exportação. Por essa razão, e porque continua ainda a ser um mercado muito importante, a nossa diplomacia em Londres tem um particular e constante cuidado com a promoção do vinho do Porto e com a sustentação dos fluxos comerciais do produto.

O Porto faz parte, aliás, da tradicional cultura social britânica, quase tanto como o chá (aí introduzido por Catarina de Bragança, diga-se de passagem). Num jantar britânico, é de bom tom, no final da refeição, colocar sobre a mesa uma garrafa de cristal com vinho do Porto: cada pessoa serve-se a si própria e, após fazê-lo, pousa a garrafa sobre a mesa, colocando-a à sua esquerda, por forma a que o parceiro desse lado proceda de forma idêntica. É considerada má educação passar a garrafa diretamente para a mão do vizinho do lado: deve ser ele a levantá-la da mesa. Ah! e, sem exceção, a circulação da garrafa fez-se de acordo com esse sentido, o dos ponteiros do relógio.

Os britânicos têm, como regra, honrar também os seus convidados portugueses com uma oferta de um Porto, no final das refeições. Só que nem todos os portugueses entendem bem isto.

Em 1992, o Benfica foi jogar a Londres, com o Arsenal, e a direção dos "gunners" convidou a direção do clube português para um jantar, num restaurante de Regent Street. Simpaticamente, como encarregado de negócios, fui incorporado na delegação portuguesa. O jantar correu como é "normal" em ocasiões idênticas: os portugueses falaram com os portugueses e os ingleses entre si. Como diplomata, fiz as despesas das conversas com os anfitriões. Nada que não seja comum...

Chegado o final do jantar, assomou à mesa um "decanter" com o vinho do Porto, gesto maior de simpatia para com visitantes, ainda por cima portugueses. E aí, para surpresa imensa de quem nos convidava (e minha, também, confesso), nenhum - repito, nenhum - dos portugueses, com a exceção do diplomata presente, aceitou um cálice de Porto. Uns diziam abertamente que não gostavam, outros que lhes fazia mal e era "pesado", outros apelaram a uma alternativa, como um "malte" ou um cognac. A cara dos britânicos era indescritível. 

A "diplomacia desportiva" tem destas peculiaridades. E, por vezes, não ajuda à económica. Para a pequena história, e para azar dos britânicos, o Benfica ganhou, e bem!

terça-feira, janeiro 03, 2012

Seminário diplomático

Hoje, não vou estar presente no Seminário diplomático, onde o MNE reúne os seus chefes de missão, que estejam de passagem por Lisboa, com a hierarquia das Necessidades. E este era, precisamente, um ano em que haveria mais razões para eu por lá estar: o convidado de honra é o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Alain Juppé. Mas há, do meu lado, impedimentos temporários de saúde que não podem ser ultrapassados.

Este género de reuniões existe, creio, desde a primeira metade dos anos 90. Julgo ter sido em 1994 que assisti, pela primeira vez, àquilo que eram então chamadas as "reuniões de altos funcionários". Em seis desses encontros, entre 1995 e 2001, neles perorei regularmente sobre política europeia, quando as funções que então tinha a isso me chamavam. Creio que não estive presente no seminário por duas vezes: em 2003, porque alguém cuidou em não me convidar, e em 2007, por compromissos oficiais no estrangeiro.

É sempre importante para os chefes de missão ouvir de viva voz o seu ministro, bem como outros altos responsáveis setoriais, apontando as suas orientações para a nossa política externa, no ano que abre. Isso é ainda mais relevante num tempo como o atual, com um novo governo, num momento de excecional exigência, em que a malha diplomática e consular está sujeita a constrangimentos e a severas economias de escala. Perceber bem as nossas prioridades, aquilo em que devemos centrar a nossa ação, as mensagens que devemos transmitir àqueles junto dos quais estamos acreditados, enfim, tudo o que de nós se exige neste contexto muito particular, torna-se, assim, essencial. Essa é a principal razão - para além das que indiquei e do interesse em reencontrar amigos e colegas - pela qual lamento bastante não poder estar presente no Seminário diplomático de 2012.

Corgo

Ao longo da vida, fui aprendendo a não ter opiniões perentórias (é assim que se escreve, nos termos do novo Acordo Ortográfico, por muito que isso custe a alguns) sobre assuntos de que pouco sei. Posso ter sentimentos ou "feelings", posso emitir opiniões "de mesa de café", mas habituei-me a estudar os assuntos antes de sobre eles me pronunciar de forma categórica. E, quando não os conheço, assumo-o claramente. Fico mesmo surpreendido com a imensidão de "tutólogos" (os que falam e escrevem sobre tudo) que por aí anda, alguns, aliás, bem pagos "à peça". Que sabedoria!

Vem isto a propósito do anunciado termo formal da linha do Corgo, a ligação ferroviária entre a Régua e Chaves, passando por Vila Real, Vila Pouca de Aguiar, Pedras Salgadas e Vidago, que teve belas carruagens antigas (1ª, 2ª e 3ª classes) e, durante muitos anos, fumarentas locomotivas a vapor. Não faço ideia se há ou não razões sólidas para a decisão. Deve haver, pela certa.

Tenho no meu ouvido, desde a infância, a voz de um funcionário da CP a chegar à casa da minha família, em frente à estação das Pedras Salgadas, à procura do meu tio João Santos, secretário da Câmara municipal de Chaves: "o senhor chefe da estação manda perguntar ao senhor Joãozinho se ainda se atrasa muito, pois o comboio tem de partir...". E recordo-me que o mesmo responsável pela estação ia frequentemente buscar um banco de madeira para ajudar algumas senhoras da família a galgar a distância entre o cais e o último degrau do comboio. Penitencio-me por nunca ter feito o percurso entre as Pedras Salgadas e Chaves, com a gabada descida do Reigaz, a passagem em Oura e no Vidago, com vista para o Palace, até ao cruzamento com a linha do Tâmega, antes do fim da linha (cujo projeto de continuidade internacional para Verin ficou sempre no papel). Mas ficaram-me na memória, para sempre, apeadeiros com nomes tão sonantes como Nuzedo, Zimão, Tourencinho, Fortunho ou Cigarrosa.

A CP decidiu agora assumir a decisão de fechar a linha do Corgo, ao que parece por imperativas razões financeiras. Não sei quanto custaria manter, para efeitos turísticos, o percurso que ainda existia, entre Vila Real e a Régua. De uma coisa estou bem certo: custaria muito menos do que os oito milhões de euros que as greves dos maquinistas, só no ano de 2011, fizeram perder à empresa. Mas essas são outras contas. 

Bebinca

Há já um tempo que não comia bebinca. Imagino que tenha sido por me ouvirem dizer que tinha saudades desse doce goês que tive o privilégio d...