Luanda, 1982.
Eu andava deliciado com o meu Golf Diesel, recém-chegado da Dinamarca, com um confortável ar condicionado. Fui pessoalmente buscá-lo ao porto, depois de esperar semanas que o barco acostasse.
Num dos primeiros dias de utilização do novo carro, ao passar pelo Largo Maria da Fonte (a estátua da libertadora minhota, cuja pertinência num lugar central de Luanda era realmente discutível, tinha sido substituída por um tanque de guerra, razão pela qual todos chamavam ao lugar o Largo Maria do Tanque...), sou mandado parar por uma operação policial, de controlo de tráfego.
- O camarada pode mostrar se os "piscas" funcionam?
Claro que funcionavam. O guarda era jovem, delicado, com uma atitude bem simpática.
Mas a cena era surreal. Ali estava eu, com um carro novinho em folha. a ser fiscalizado (depois dos "piscas" foram os "stops" e sei lá que mais), quando, mesmo ao lado, passavam viaturas sem portas, muitas sem pára-choques, algumas sem pára-brisas, outras de faróis "descaídos" por acidentes.
Diga-se que, na Luanda desse tempo, as dificuldades eram imensas, faltava tudo, era um milagre encontrar uma peça de substituição para qualquer veículo, qualquer coisa de natureza material (a começar na alimentação) só era possível de obter através de "esquemas" ou de conhecimentos, nesse caso com quase garantidos pedido de retribuição de favores, a surgirem mais tarde. As escassíssimas lojas abertas estavam quase vazias, às vezes com alguns objetos inúteis, apenas "para encher montra".
Eu levava com grande bonomia a inspeção, tanto mais que de nada valia ter outra atitude. E a "check-list" ia prosseguindo. A certo ponto, satisfeitos até aí todos os requisitos de segurança de tráfego, o "camarada polícia" (nesse tempo, todas as pessoas eram tratadas por "camarada", recordando-me mesmo de uma testemunha de um roubo que, na televisão, se referiu ao "camarada ladrão"...) teve uma última ideia:
- O camarada tem triângulo?
Sabia lá! Fui à traseira do carro e procurei, junto à roda sobressalente. Qual quê?! Os dinamarqueses tinham-se esquecido de pôr um triângulo no carro!
- O camarada sabe que é ilegal circular sem triângulo?
Eu sabia, mas também sabia que, com ou sem triângulo, o meu novo carro oferecia mil por cento mais condições de segurança do que tudo o que, de mecânico, se movia à nossa volta, desde os automóveis à temíveis "Ifas", uns camiões da RDA que, vistos de frente, estavam sempre inclinados para um dos lados ("sempre para a esquerda", assegurava, grave e irónico, o Chico Neto) e cujo sistema de travagem tinha regulares e trágicas deficiências.
- Tem razão, camarada. Não tenho triângulo. Tenho de comprar um. Onde é que se eles se vendem?
A ironia era pesada. Talvez só a alguns largos milhares de quilómetros de Luanda fosse possível encontrar uma loja onde um triângulo de pré-sinalização pudesse ser adquirido.
O jovem polícia negro fez um largo sorriso, compreensivo, e lançou, amigavelmente:
- Vá com Deus, camarada!