O ano de 1969 anunciava-se decisivo. Em Agosto de 1968, Salazar caíra da cadeira. Marcello Caetano substitui-lo-ia no mês seguinte. Começara a “primavera marcelista”, um logro político que parecia evidente para muitos, mas que, para outros, ainda era visto como uma oportunidade a explorar para a mudança no regime.
Nos meios em que, à época, me movimentava, as esperanças na “abertura” marcelista eram nulas. A confirmá-lo, se necessário fosse, estava a “não homologação” ministerial dos resultados da eleição para a direcção associativa universitária, de que eu próprio fazia parte, e que deu mesmo origem a uma divertida reunião com o ministro José Hermano Saraiva (que um dia contarei). Dentre outras movimentações, nesse importante ano político, há ainda que destacar a grave crise académica em Coimbra. O país andava bem agitado.
E iria ficar mais. Em Outubro de 1969, teriam lugar eleições para a Assembleia Nacional. As primeiras do “marcelismo”. Em Lisboa, tinha já andado envolvido em algumas movimentações preliminares, como a célebre reunião no Palácio Fronteira, onde as águas políticas da Oposição se separaram. À esquerda, ficava a maioritária CDE (Comissão Democrática Eleitoral), onde predominava o PCP, aliado a “católicos progressistas” e a franjas mais radicais. Constatada a impossibilidade de acordo, Mário Soares e os seus amigos da ASP (Acção Socialista Portuguesa) haviam criado a CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), que concorreu isolada apenas em Lisboa, Porto e Braga. No resto do país, a escassez de recursos oposicionistas forçava à necessária unidade.
Era o caso de Vila Real. De férias na capital transmontana, sou contactado pelo António Leite (em casa de cuja avó se fizera a primeira reunião oposicionista) para integrar a estrutura local da CDE. Foi um período intenso de reuniões e mais reuniões, redacção de artigos e manifestos, agitação dos meios da juventude, alguma tensão ideológica intergeracional. Mas, algum tempo mais tarde, lá estou eu, com Otílio de Figueiredo e Délio Machado, no trio que foi fazer a apresentação formal da lista oposicionista ao Governador Civil, Torquato de Magalhães.
Esse mês de Agosto, em Vila Real, foi inesquecível. Sob a hábil e paternal liderança política de Otílio de Figueiredo, prestigiado médico e figura intelectual local, a oposição estruturava-se num leque amplamente pluralista. As clivagens políticas lisboetas, não nos sendo indiferentes, eram atenuadas pela necessidade de arrebanharmos todas as vozes contestatárias. Estas iam desde elementos que sabíamos ligados ao PCP até ao “reviralhismo” republicano tradicional, passando por figuras da esquerda moderada, que imaginávamos próximos da ASP e de Mário Soares. E, naturalmente, por lá andava algum radicalismo “esquerdalho”, a maioria sem partido, mas com muito sangue na guelra. Neste, recordo em especial o entusiasmo quase “anarca” do João "Bouquet", a grande alma da logística da CDE de Vila Real. E algumas outras figuras (não éramos muitos…) que não cabe aqui elencar.
Esse mês de Agosto de 1969 e o período que se lhe seguiu tiveram de tudo um pouco: reuniões clandestinas, incontáveis viagens pelo distrito, contactos com outros núcleos oposicionistas, discussões épicas na Gomes (o principal café da cidade), chamadas à polícia, censura de artigos na imprensa, dificuldades nas tipografias, ameaças profissionais a muitos aderentes, colagem de cartazes anónimos (fui o criador de um que apenas tinha escrita a palavra “MEDO”, impressa a preto forte, cortada por duas pinceladas de tinta vermelha), pides encartados e “bufos” locais a vigiarem a nossa sede, caravanas de propaganda ameaçadas fisicamente, frequentes insultos pelas ruas por parte de turiferários do regime, a necessidade de fotografar os cadernos eleitorais (não havia cópias distribuídas nem existiam ainda fotocópias, pelo que tivemos de fazer fotografias de todas as páginas das listas de eleitores, no Governo Civil, com um imenso custo financeiro), a impressão e distribuição dos nossos boletins de voto (para quem não saiba, cada lista eleitoral preparava então os seus próprios boletins, aqueles que iriam ingressar nas urnas, e tinha de os entregar pessoalmente a cada eleitor, porta-a-porta, porque os correios eram caros e não fiáveis!), etc.
Foi um belo mês de Agosto! Nunca mais o vou esquecer.
Nos meios em que, à época, me movimentava, as esperanças na “abertura” marcelista eram nulas. A confirmá-lo, se necessário fosse, estava a “não homologação” ministerial dos resultados da eleição para a direcção associativa universitária, de que eu próprio fazia parte, e que deu mesmo origem a uma divertida reunião com o ministro José Hermano Saraiva (que um dia contarei). Dentre outras movimentações, nesse importante ano político, há ainda que destacar a grave crise académica em Coimbra. O país andava bem agitado.
E iria ficar mais. Em Outubro de 1969, teriam lugar eleições para a Assembleia Nacional. As primeiras do “marcelismo”. Em Lisboa, tinha já andado envolvido em algumas movimentações preliminares, como a célebre reunião no Palácio Fronteira, onde as águas políticas da Oposição se separaram. À esquerda, ficava a maioritária CDE (Comissão Democrática Eleitoral), onde predominava o PCP, aliado a “católicos progressistas” e a franjas mais radicais. Constatada a impossibilidade de acordo, Mário Soares e os seus amigos da ASP (Acção Socialista Portuguesa) haviam criado a CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), que concorreu isolada apenas em Lisboa, Porto e Braga. No resto do país, a escassez de recursos oposicionistas forçava à necessária unidade.
Era o caso de Vila Real. De férias na capital transmontana, sou contactado pelo António Leite (em casa de cuja avó se fizera a primeira reunião oposicionista) para integrar a estrutura local da CDE. Foi um período intenso de reuniões e mais reuniões, redacção de artigos e manifestos, agitação dos meios da juventude, alguma tensão ideológica intergeracional. Mas, algum tempo mais tarde, lá estou eu, com Otílio de Figueiredo e Délio Machado, no trio que foi fazer a apresentação formal da lista oposicionista ao Governador Civil, Torquato de Magalhães.
Esse mês de Agosto, em Vila Real, foi inesquecível. Sob a hábil e paternal liderança política de Otílio de Figueiredo, prestigiado médico e figura intelectual local, a oposição estruturava-se num leque amplamente pluralista. As clivagens políticas lisboetas, não nos sendo indiferentes, eram atenuadas pela necessidade de arrebanharmos todas as vozes contestatárias. Estas iam desde elementos que sabíamos ligados ao PCP até ao “reviralhismo” republicano tradicional, passando por figuras da esquerda moderada, que imaginávamos próximos da ASP e de Mário Soares. E, naturalmente, por lá andava algum radicalismo “esquerdalho”, a maioria sem partido, mas com muito sangue na guelra. Neste, recordo em especial o entusiasmo quase “anarca” do João "Bouquet", a grande alma da logística da CDE de Vila Real. E algumas outras figuras (não éramos muitos…) que não cabe aqui elencar.
Esse mês de Agosto de 1969 e o período que se lhe seguiu tiveram de tudo um pouco: reuniões clandestinas, incontáveis viagens pelo distrito, contactos com outros núcleos oposicionistas, discussões épicas na Gomes (o principal café da cidade), chamadas à polícia, censura de artigos na imprensa, dificuldades nas tipografias, ameaças profissionais a muitos aderentes, colagem de cartazes anónimos (fui o criador de um que apenas tinha escrita a palavra “MEDO”, impressa a preto forte, cortada por duas pinceladas de tinta vermelha), pides encartados e “bufos” locais a vigiarem a nossa sede, caravanas de propaganda ameaçadas fisicamente, frequentes insultos pelas ruas por parte de turiferários do regime, a necessidade de fotografar os cadernos eleitorais (não havia cópias distribuídas nem existiam ainda fotocópias, pelo que tivemos de fazer fotografias de todas as páginas das listas de eleitores, no Governo Civil, com um imenso custo financeiro), a impressão e distribuição dos nossos boletins de voto (para quem não saiba, cada lista eleitoral preparava então os seus próprios boletins, aqueles que iriam ingressar nas urnas, e tinha de os entregar pessoalmente a cada eleitor, porta-a-porta, porque os correios eram caros e não fiáveis!), etc.
Foi um belo mês de Agosto! Nunca mais o vou esquecer.