domingo, dezembro 22, 2024

Histórias da música e da política


Saí há escassas horas de um excelente espetáculo musical, no teatro desta Vila Real com três graus centígrados, que reuniu, num improviso consecutivo de uma hora e meia, António Victorino de Almeida, Paulo Jorge Ferreira e Paulo Vaz de Carvalho - respetivamente ao piano, acordeão e guitarra. Foi um belíssimo concerto a anteceder o Natal! 

À tarde, tinha havido uma conversa aberta com o pianista, hoje com 84 anos, que me dizem ter sido muito interessante. O tempo, cá por Vila Real, costuma render bastante mais do que em Lisboa, mas ainda não dá para tudo. Perdi assim o ensejo de poder contar a António Victorino de Almeida um episódio que ele talvez desconheça.

Foi há mais de 40 anos. Eu estava colocado na nossa embaixada em Luanda, nesse tempo de feroz guerra civil entre o Estado angolano e a UNITA. As relações políticas entre Portugal e Angola estavam no seu ponto mais baixo. O governo do MPLA acusava Portugal, entre outras coisas, de deixar a UNITA organizar-se livremente no seu território. 

Na embaixada, eu tinha a meu cargo o setor da cooperação e era exasperante ver Angola recusar praticamente tudo quanto íamos propondo, para tentar reativar aa relações bilaterais. Com exceção da contratação de professores, quase nada se conseguia fazer. 

Nesse ano de 1983, o recém-chegado embaixador português, António Pinto da França, numa visita de cortesia em que o acompanhei à única estação de televisão local, a Televisão Popular de Angola - TPA, teve uma ideia que acabaria por se revelar original. Ele não desconhecia as severas restrições que o governo angolano colocava a tudo quanto tivesse origem em Lisboa, mas tentou a sua sorte com uma proposta que se pretendia inóqua. 

Uma década antes, o pianista António Victorino de Almeida, tinha tido um imenso sucesso com uma série de programas de divulgação musical, gravados na capital austríaca, intitulados "Histórias da Música". Eram charlas de meia hora em torno de temas, de compositores e de intérpretes, em especial de música clássica. Nada de mais neutral, de mais apolítico. 

Na conversa com a direção da TPA, que claramente ansiava por melhorar a sua oferta televisiva, que apresentava muito escassos programas interessantes, nas suas poucas horas de emissão, ele propôs a cedência daqueles episódios, sem o menor encargo. Antes de partir de Lisboa, Pinto da França tinha garantido essa disponibilidade por parte da RTP.

Para alguma surpresa nossa, os angolanos, tempos depois, informaram que, a título excecional, aceitavam divulgar essa série de natureza musical. Era uma interessante quebra do "bloqueio" às coisas vindas da antiga "potência colonial". Para nós, era uma verdadeira "lança em África". A diplomacia ensina-nos o valor da política de pequenos passos. E lá chegaram de Lisboa as cassetes com os programas, que fui levar à direção da TPA.

O programa de António Victorino de Almeida, que já tinha tido uma grande aceitação em Portugal, pela excecional capacidade de divulgador do pianista e pela originalidade da sua realização, para os padrões da época, criou um ainda maior entusiasmo em Angola, em face da evidente pobreza que era então a programação da TPA, muito baseada nas ofertas dos países de Leste. Muita gente, entre os nossos amigos angolanos, nos felicitou e agradeceu pela nossa iniciativa. Com inteira razão, António Pinto da França estava deliciado pela excelente ideia que tivera.

Durante meses, o êxito do programa foi em crescendo. Até um dia.

Um dia, um desses programas era sobre um tema muito particular: o hino nacional português. Cá em casa, existe uma lembrança muito viva dessa ocasião. À medida que o programa ia decorrendo, comecei a perceber que muito dificilmente, num ambiente tão crispado e lusofóbico como o que então atravessava os meios oficiais angolanos, aquilo não iria ser uma grande "bronca". 

António Victorino de Almeida fazia nesse programa uma apologia carinhosa do nosso hino, explicando e contextualizando o seu caráter gongórico e "bélico", apelando a que o olhássemos como um fator de união, tal como fazíamos com a nossa bandeira, gostássemos ou não dela. E, inserido nesse tempo do início dos anos 70, em que em Portugal só havia uma televisão, que era vista por uma imensidão de gente, a certa altura, ele dizia algo como isto: "Vá à sua janela para a rua, abra-a e cante o nosso hino, cante "A Portuguesa". Pode ser que o seu vizinho, na casa em frente, faça o mesmo. E teria imensa graça que, na sua rua, você, ele e outras pessoas cantassem agora o hino do nosso país, de Portugal". 

Recordo que isto se passava numa Angola independente há apenas oito anos, atravessando uma guerra civil, com o antigo "colono" a ser diabolizado, todos os dias, na propaganda oficial e oficiosa.

Nesse instante, temi que esse programa da série de Vitorino de Almeida viesse a ser o último na televisão de Angola. E não me enganei. 

Dias depois, todas as cassetes foram discretamente devolvidas pela TPA à embaixada, com um cartão de cumprimentos. Encaminhámo-las por mala diplomática para Lisboa, para serem entregues à RTP. 

Não faço ideia do que se terá passado no seio da televisão angolana, na sua relação com o zeloso e radical aparelho político da época. Mas não deve ter sido coisa fácil.

Tempos melhores acabaram por vir nas nossas relações com Angola.

sábado, dezembro 21, 2024

"Quem quer regueifas?"


Sou de um tempo em que, à beira da estrada antiga entre o Porto e Vila Real, havia umas senhoras a vender regueifas. Aquele pão também era proposto, à passagem em Valongo ou em Paredes, a quem ia de comboio na linha do Douro ou viajava nas camionetas do Cabanelas, com vozes a inquirir, bem alto: "Quem quer regueifas?" 

A regueifa, tostada ligeiramente por fora, tem uma textura muito própria e liga lindamente com qualquer doce, ou barrada simplesmente com manteiga. Para mim, o maior defeito da regueifa é que, passadas algumas horas, o miolo torna-se borrachoso e passa àquilo que, em minha casa, se costuma designar por "fase Firestone" dos pães. Acontece o mesmo com as baguetes de pão francês. Para evitar isso, só há uma solução: congelar ou comer logo. Sou um adepto militante da segunda solução.

Na nova A4, não há regueifas à venda, claro. E, ontem, sei lá bem porquê, talvez nostalgia de outros Natais, apetecia-me comer uma regueifa. Por isso, saído do Porto, deu-me para regressar à "estrada velha" e ir à procura de regueifas. Bati com o nariz no balcão de várias casas: as regueifas já estavam esgotadas, tinham-se vendido da parte da manhã. Para um cliente vespertino como eu, era uma péssima notícia. Mas não desisti. E, com a ajuda do "tio Google", consegui comprar uma bela regueifa nos arredores de Penafiel (embora o seu formato não seja o clássico que figura na imagem). Deixo o nome da casa, uma magnífica pastelaria, com serviço extremamente atencioso, não longe do hospital: "Cacaulate". Entrei à procura de regueifas, deixei-me atrair também pelos doces. É a vida! Tão cedo não faço análises, é o que me vale...

sexta-feira, dezembro 20, 2024

Entrevista à revista "Must"


Aque horas se costuma levantar? 


Em regra, tarde. Desde que saí da função pública, recusei todos os convites para atividades “from-nine-to-five”, para tarefas executivas. E foram alguns. Desde há 12 anos, sou dono de grande parte do meu tempo, coisa que não tinha sido durante 41 anos. Leio muito e preciso da noite para ler. Assim, tento que o meu dia comece sete horas após o momento em que me deito. Aliás, decido a hora a que me deito e a que quero acordar em função da agenda do dia seguinte. E ponho dois despertadores, para não ter surpresas. Se nada tenho marcado para a manhã, acordo quando acordar. 


O que costuma refletir/ponderar/pensar nos primeiros minutos acordado? 

Não sou um intelectual das manhãs. Nunca tive ideias geniais ao acordar. Só tenho sono. Não acordo logo, vou acordando. Eu sou como a madrugada: o dia vai nascendo dentro de mim. Verdadeiramente, só acordo cerca de uma hora depois de despertar. 


Qual é a sua rotina quando se levanta?  

Começo por olhar o iPhone e o iPad, para ver se houve chamadas ou mensagens relevantes. Depois, verifico os emails. Durante a noite chega um mínimo de duas dezenas de emails. Mas quase nada a que seja necessário responder: são essencialmente alertas e notícias, de várias partes do mundo. Umas leio logo, outras guardo para mais tarde, muitas nunca as chego a abrir. Mas procuro ser rápido na resposta a emails que me dirigem. 


Que tipo de pequeno-almoço costuma tomar? 

Ninguém vai acreditar: não sou eu quem decide. Tanto pode vir fruta como uma torrada com manteiga ou doce ou um iogurte. Ontem, foi Bolo Rei. É sempre um “happening”. No final, em regra, um café expresso. 


Costuma haver algum tipo de atividade antes de começar o dia?  

Rigorosamente nada. Não sou dado a ginásticas ou coisas assim. É a única coisa em que sou fiel seguidor das ideias de Churchill. 


Como são os seus trajetos? Como os faz? A pé, automóvel, transportes… 

Em regra, ando em três meios de transporte: de carro, de carro ou de carro. Ando muito pouco a pé e raramente de transportes coletivos. Ando muito de táxi e de Uber/Bolt. Sou um bom cliente da Radiotaxis. Sei que este comportamento não está na moda. 


Tem algum tipo de preparação prévia antes do trabalho? 

Não tenho rotinas diárias. Tenho tarefas em empresas, que podem ocupar o dia todo ou uma parte do dia. E que ocorrem pontualmente, algumas com atividades separadas por semanas. A maioria são em Lisboa, outras são fora, às vezes no estrangeiro. Antes dessas reuniões, há bastante material para ler e, algumas vezes, trabalho escrito para executar. 


A que horas começa a trabalhar? 

Trabalho quando entendo. Cada dia é diferente do outro. Às vezes tenho que escrever, na maioria dos casos leio informações e tomo notas durante algumas horas. Posso começar essa atividade depois de acordar, deixá-la para a tarde ou mesmo para a madrugada, onde o trabalho parece render sempre mais. É de madrugada que me surgem algumas ideias geniais. Depois, durmo “sobre” elas e, no dia seguinte, constato, em geral, que eram ideias banais. 


Quais são as suas principais tarefas e responsabilidades? 

Executo estudos de consultoria estratégica para que sou solicitado, faço parte de órgãos de gestão e supervisão de empresas, sempre em áreas não executivas. Faço comentário sobre temas internacionais na comunicação social, quando a isso convidado e se tenho interesse e disponibilidade para o fazer. E faço palestras e intervenho em debates. 


Como gere o seu tempo? 

Depois de décadas em que a decisão sobre o tempo não me pertencia, uso a liberdade que ganhei de uma forma um pouco caótica, mas altamente satisfatória. Na véspera de cada dia, arrumo a respetiva agenda, que é imensamente variada. 


Como lida com a pressão e o stress? 

Bem e mal. Como ficou demonstrado pelo momento de entrega deste inquérito, trabalho sob pressão do tempo e sob algum stress. Às vezes, aceito demasiadas coisas, para serem feitas simultaneamente, e isso traz-me uma pressão desagradável. Já pensei corrigir-me, mas sou cada vez mais tolerante com os meus defeitos, os quais, às vezes, já nem vejo como tal. 


Qual é a parte favorita e menos agradável do trabalho e porquê? 

Sempre gostei de trabalhar. Durante bastante tempo, trabalhava muito e de forma rápida. Sempre fiz o meu trabalho com alguma satisfação, como um desafio perfeccionista perante mim mesmo. Às vezes, quando vejo mal aproveitado o que me obrigou a algum esforço, fico desagradado. Mas passo à frente. Não esqueço nem perdoo agravos, mas dou-me ao luxo de, na maior parte das vezes, não tirar desforço. Não dou a confiança de me aborrecer (muito) àqueles que me tentam prejudicar. 


Tem alguém que o acompanha quando trabalha?  

Atualmente não. Já trabalhei com equipas com muitos colaboradores e percebi então o meu principal defeito: a dificuldade em delegar, salvo nas escassas pessoas em quem conseguia ter plena confiança. E nunca soube trabalhar em grupo. Sei que é politicamente incorreto estar a admitir tudo isto, mas, dizia já não sei quem, só a verdade é revolucionária. E esta é a pura verdade. 


Costuma fazer pausas? Para? 

Faço muitas pausas, às vezes em demasia, com efeito negativo na concentração. Sinto que há em mim defeitos comportamentais que se agravam com a passagem do tempo. Aproveito as pausas para fazer coisas que me satisfazem mais do que aquilo que estou a fazer. E resisto pouco a esses impulsos. 


Interrompe o trabalho para almoçar? O que costuma comer e onde? 

Se estou envolvido num trabalho, o almoço pode esperar. Mas também posso continuar a trabalhar durante a refeição. Em regra, almoço fora de casa umas três vezes por semana, com amigos ou em almoços de trabalho. Alimento-me sem critérios dietéticos e com escassas preocupações de saúde: em regra, o que me apetece é, curiosamente, aquilo que sei que me faz mal. Cada vez resisto menos às tentações. Que culinária? Cozinha tradicional portuguesa, com tinto a acompanhar. Às vezes um whisky no fim. Não me trato mal... 


Como lida com eventuais críticas e elogios? 

Reconheço que a modéstia não faz parte das minhas maiores qualidades. Mas aceito críticas que ache inteligentes e pertinentes, desde que feitas sem um manifesto desejo de ser desagradável. Levo as observações muito a sério, em especial se vindas da parte de quem me merece respeito e cuja autoridade profissional reconheço. 


O que diria sobre a ideia de que as pessoas com quem se relaciona profissionalmente têm de si? 

Só perguntando-lhes. A única coisa que eu gostaria que elas pensassem de mim, para além de todos os critérios de avaliação que possam ter sobre o fruto do meu trabalho, é que faço tudo a que me dedico com afinco e seriedade. O resto, o saldo e a qualidade do que faço, é algo que eles têm o direito de julgar. Sou muito menos tolerante para os juízos de caráter. 


Ao longo do dia, dá importância às redes sociais? 

Bastante. As redes sociais são a minha principal fonte de chamada de atenção para os temas internacionais do dia. Utilizo várias redes sociais, onde comento mas onde raramente interajo. Não consigo ter tempo para a interlocução com os leitores. Não sei se lamento. 


Tem hobbies ou atividades que faz regularmente? 

Quase nenhuns, salvo algumas tertúlias almoçantes, com amigos. Vejo muito pouco televisão, leio livros, sempre em papel, leio jornais, mas já quase só online, e escrevo o meu blogue diário. Ah! E vou a concertos musicais. E, claro, visito livrarias e restaurantes. Gosto de sair de Lisboa nos fins de semana e ficar numa pousada ou num hotel, a flanar, a ler, a comer, a conversar. 


A que horas costuma terminar a atividade profissional? 

Nunca, na realidade. Ou melhor, essa atividade só para ao deitar. Pensando bem, trabalho mais de oito horas por dia, sete dias por semana. 


"Leva” trabalho para casa? 

Trabalho essencialmente em casa, pelo que não abandono o “lugar de trabalho”. Quando viajo, a minha velha pasta, além do iPad que me liga ao mundo, vai atulhada de coisas para ler e para escrever. Levo o “escritório” comigo, às vezes até para a sala de espera de um médico. E, sempre, para o Alfa Pendular, de e para o Porto, onde gosto muito de viajar. 


Costuma conversar com alguém sobre a sua atividade no final do dia? 

Em casa, com a minha mulher, quando ela tem paciência para ouvir-me falar de algumas das várias coisas que faço. Mas a Star Crime, a 24 Kitchen e a Mezzo interpõem-se muito. 


Costuma viajar com frequência nas suas atividades profissionais? 

Viajo bastante pelo país, que conheço como creio que muito pouca gente conhece. Parte dessas viagens é por razões profissionais ou por atividades “pro bono”, que algumas vezes aceito. As viagens profissionais ao estrangeiro não são muito frequentes, acontecem apenas uma meia dúzia de vezes por ano, tal como para outras tarefas interessantes como palestras, colóquios, seminários para que sou convidado. Mas sou cada vez mais criterioso na aceitação desses convites, pagos ou não. 


Há muita diferença entre os dias da semana e os fins de semana? 

Quase nenhuma. Apenas, em regra, não tenho reuniões ao fim de semana. Mas os sete dias são, em absoluto, idênticos, no tocante à leitura ou escrita ou outro trabalho. 


Quais são os seus hábitos de jantar? Horário e exemplo de menu? 

Janto muito em casa. Já fui bem mais, mas ainda sou um regular frequentador de restaurantes. Gosto de conhecer novas casas, tomo nota de recomendações, mas, crescentemente, fujo dos locais que sei que andam em voga. Sendo conhecido, entre amigos, como alguém que visita muitos restaurantes, adoro poder dizer, quando me perguntam o que achei de um determinado lugar de que toda a gente fala: “Não sei, não conheço, nunca fui lá!”. Horários? Gosto de ir pelas 20.30/21.00. Reservo sempre (sempre! e quando não aceitam reservas não vou), não fico em filas, não espero por uma mesa mais de cinco minutos. Menus? Assumo que sou um mau gastrónomo, sou muito tradicional e conservador, nada variado nas escolhas, pouco ousado perante experiências sensoriais novas. 


O que faz antes de dormir? 

Verifico a agenda do dia seguinte, olho o “Público” on-line e consulto alguns sites de notícias. E leio, no mínimo, aí umas 20 páginas de um dos vários (muitos) livros que tenho “em curso de leitura”, como costumo designar essa otimista tarefa que, em muitos casos, não chega nunca a ser concluída. 


A que horas se costuma deitar e quantas horas dedica ao sono? 

Como referi, deito-me quase sempre muito tarde, a menos que tenha tarefas a fazer cedo na manhã seguinte. Mas não tenho uma hora certa de ir para a cama. Procuro dormir sete horas por noite, mas às vezes não consigo, precisamente porque a irregularidade me prejudica o sono. Mas, não obstante esse preço, faço essa opção na vida. 


Como mantém o equilíbrio entre sua vida pessoal e profissional? 

Já fui “workaholic” e até quase “stakanovista”, cometendo então o erro de esperar que outros o fossem também. A minha vida foi sempre um todo: nunca parei o trabalho a uma certa hora, para depois iniciar o resto do meu dia. Nas 24 horas do dia, vou colocando aquilo que me apetece. Ou que tenho de executar. Faço parte das pessoas para quem trabalhar nunca foi um peso para a sua vida quotidiana. Além disso, fiz parte de uma espécie em extinção: as pessoas que sentiam um grande orgulho em serem servidores do Estado. Gostei muito de ter sido funcionário público (como o meu pai e o meu avô), mas tem sido imensamente enriquecedor trabalhar no setor privado, onde a “accountability” é muito mais rigorosa. Aprendi a admirar quem arrisca o seu dinheiro em negócios. 


Vê-se a ter outra atividade? 

Na vida, em 53 anos de trabalho, gostei de tudo aquilo que fiz. Mas admito que me teria sentido muito bem a fazer outras coisas. Sou muito adaptável e desafio-me a mim mesmo. Sou altamente competitivo comigo e – palavra de honra! – rigorosamente nada com os outros. Não faço parte das pessoas que proclamam: “Não gosto de perder, nem a feijões”. Perco e ganho com imensa naturalidade e, às vezes, até me sinto um pouco envergonhado quando ganho. 


O que mais gosta e menos gosta do que faz? 

O que mais gosto é, no final das tarefas, ter a consciência íntima de que fiz as coisas bem. Tenho alguma frustração quando sinto que fiz as coisas tão bem quanto sabia e podia, mas que, afinal, isso não foi suficiente para ter atingido o objetivo que pretendia. E que assim desiludi quem em mim confiou para a execução desse trabalho. 

Que vergonha!




Sinto vergonha, como cidadão português, ao ver instrumentalizada a polícia do meu país, ao serviço dos sentimentos xenófobos mais sórdidos, apenas para atender à "perceção de insegurança", isto é, à descarada manobra do PSD para tentar reaver o eleitorado do Chega. 

Vale mesmo tudo?

Pensem nisto!

O único cenário legítimo de colocação de tropas estrangeiras na Ucrânia, num cenário de pós-conflito, seria através de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. 

É difícil, dado o bloqueamento atual daquele conselho? Não é. Se a paz (eu não disse um acordo) vier a surgir no quadro de um entendimento EUA-Rússia, isso seria possivel.

quinta-feira, dezembro 19, 2024

São Tomé e Príncipe


Há meio século, em 26 de novembro de 1974, teve lugar em Argel a assinatura do acordo entre o governo português e o Movimento para a Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP), que abriria caminho para a independência daquele território em 12 de julho de 1975. Ontem, numa concorrida sessão na Universidade Lusófona, esse acordo foi evocado, numa oportuna iniciativa do embaixador santomense em Portugal.

Tive o gosto de, a seu pedido, fazer a primeira das cinco intervenções, que também ecoaram memórias da Guiné-Bissau, de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe e da Argélia. 

Procurei, no que disse, olhar o tema a partir da perspetiva de Lisboa, dando nota das tensões criadas no seio do novo poder político, no tocante ao tema da descolonização, que teve consequências, desde logo, na linguagem equívoca que sobre o assunto emergiu no Programa do MFA. Relatei a relutante mudança de atitude de Spínola até à assinatura da lei 7/74, elaborando sobre as diferenças face aos processos de independência das restantes colónias. Falei também um pouco sobre a realidade específica de São Tomé e Príncipe, fazendo uma leitura da evolução da atitude do governador Pires Veloso, em face da agitação local, desde as movimentações dos colonos portugueses à progressiva implantação do MLSTP, passando pelo radicalismo da Associação Cívica - tema que constatei permanecer polémico, pelo teor de algumas intervenções na sessão. 

Já na fase de debate, vir surgir na assistência alguém que, quase meio século depois, reconheci. Tratava-se de Maria da Graça Amorim, antiga ministra dos Negócios Estrangeiros de São Tomé e Príncipe, que foi a primeira embaixadora santomense em Lisboa. Em 1975, eu tinha tido com ela várias reuniões, pelas funções que então tinha no Gabinete Coordenador para a Cooperação, que aliás me levariam a São Tomé no ano seguinte, para resolver algumas questões pendentes. Eu e Maria da Graça ficámos ontem à conversa um bom bocado sobre esses velhos tempos. O mundo é muito pequeno.

quarta-feira, dezembro 18, 2024

Carlos Almada Contreiras


"Morreu o Contreiras!", chegou-me há pouco numa mensagem de um amigo. O Carlos foi o oficial da Armada com maior, e mais decisiva, intervenção no dia 25 de Abril de 1974. Teve, além disso, um papel político de grande relevo em todo o período subsequente,

Não faço ideia de como e quando o conheci, mas imagino que possa ter sido através do José Manuel Costa Neves, que, entre maio e setembro de 1974, me foi apresentando, na Cova da Moura, sede da Junta de Salvação Nacional, aos vários membros da Comissão Coordenadora do MFA. Nos meses seguintes, o Carlos e eu fomo-nos encontrando em algumas ocasiões, até que, em maio de 1975, ele passou a ser um dos meus chefes no SDCI, de onde saí em agosto para a vida civil. Nos anos seguintes, as nossas vidas deram as respetivas voltas e, a espaços, viamo-nos nos almoços da turma dos "implicados no 25 de Abril", uma tertúlia de uma vintena de amigos que se mantem há quase 50 anos.

Há uns anos, o Carlos decidiu promover a publicação, em livro, das intervenções na célebre Assembleia do MFA de 11 de março de 1975, cuja bobine sonora guardou por décadas. Como eu tinha participado e intervindo nessa noite, convidou-me para eu apresentar o livro, com ele e com o Vasco Lourenço, o que fizemos na Associação 25 de Abril e na Feira do Livro.

Carlos Almada Contreiras era um homem generoso, dedicado aos valores do 25 de Abril, muito respeitado por todos aqueles que, com ele, partilharam o sonho da Revolução de 1974. Afivelava um permanente sorriso, que às vezes parecia um pouco sarcástico, mas que era apenas reflexo da sua ironia sofisticada, do magnífico conversador e contador de histórias que era. Tenho a certeza de que vai fazer muita falta.

Justiça europeia


Teresa Anjinho foi eleita Provedora de Justiça Europeia. Esta escolha é muito prestigiante para Portugal e representa o reconhecimento de um percurso profissional de elevado mérito. 

Deixo um abraço parabéns a esta minha antiga colega no programa de relações internacionais "Olhar o Mundo", da RTP.

terça-feira, dezembro 17, 2024

"Magano"


Não sou um cliente habitual, sou apenas um episódico visitante do "Magano", o clássico restaurante na Tomás da Anunciação, em Campo de Ourique. Na minha vida, terei ido lá menos de uma vintena de vezes.

Por que não vou lá mais? Porque é um local muito procurado, com reservas sempre difíceis no próprio dia ou mesmo de véspera, não obstante ter preços que se não podem qualificar de baratos. Mas, se tem esse tipo de preços, por que diabo está sempre cheio? Porque se come ali excecionalmente bem. De todas as vezes que por lá almocei ou jantei, e isso vai já muito longe na minha memória, não recordo de ali ter comido mal, ou melhor, só tenho na ideia ter comido sempre muito bem no "Magano". 

Voltei, com uns amigos, no passado sábado, de propósito para experimentar a nova ala que foi criada numa casa ao lado, com um espaço muito funcional e agradável. E, como sempre, comemos lindamente! Todos nós! Se gosta de cozinha alentejana, o "Magano" é uma magnífica escolha. O serviço é muito atento, às vezes até um pouco pressionante demais, e há por ali uma bela carta de vinhos. 

E, por falar em vinhos, se sair do "Magano" e atravessar a rua, encontrará do outro lado a "Garrafeira de Campo de Ourique", onde a família Santos há décadas nos orienta nas melhores escolhas. De nada! 

Nomenclatura

A Ucrânia reconheceu a autoria do atentado que liquidou um general russo em Moscovo. Se o Kremlin tivesse mandado matar um general ucraniano nas ruas de Kiev, as notícias falariam em "ato terrorista". 

Terrorismo é sempre uma violência do outro lado.

Doença


segunda-feira, dezembro 16, 2024

Livros para o Natal - "Cartas a um jovem decente"


Mafalda Anjos, nascida depois do 25 de Abril, é um nome firmado no mundo do nosso jornalismo. A sua cara tem vindo a tornar-se mais conhecida pelo comentário político na CNN Portugal, mas o seu currículo vai muito para além dessa visibilidade. Foi diretora da "Visão" e, por uma década, dirigiu a prestigiada Revista do "Expresso", além de vária outra atividade desempenhada na profissão que escolheu, sobre algumas outras que um curso de Direito lhe poderia ter proporcionado.

Comprei o "Cartas a um jovem decente" com alguma curiosidade. Sabia que Mafalda Anjos era mãe de família e interessava-me perceber o que ela quis dizer a uma geração com a qual tenho muito pouco contacto e que, já não "indo para novo", cada vez mais sinto dificuldade de interação, porque crescentemente se diluem os meus códigos da relação intergeracional. 

Li o livro, menos de 200 páginas, no dia em que o comprei. O que é? É difícil de definir. Correndo o risco de todas as caricaturas, diria que estamos perante um manual de bom senso para uso das novas gerações, de onde transparecem algumas evidências que o ruído dos dias às vezes obscurece, somado ao fruto de outras experiências que só se ganham na interação com os jovens.

Mafalda Anjos assume abertamente, no texto, uma "ideologia", de que faz descarado proselitismo: a da decência. Esse é o pano ético de fundo onde projeta as reflexões que faz sobre múltiplos aspetos da vida contemporânea de quantos se aproximam ou já acederam à fase adulta da existência. Sem ser "maternalista", a autora arrisca por vezes, embora numa linguagem esforçadamente simples, um trilho cultural que, posso imaginar, deve afastar-se, aqui ou ali, daquele que constitui o núcleo de informação de muitos dos destinatários potenciais do seu texto. Mas, com esse desafio feito, fica pelo menos a consolação de que estes recebem, através das páginas que ela escreveu, uma "biblioteca" que muito os pode ajudar no futuro.

Através deste livro, escrito por uma mãe jovem, fica a saber-se bastante sobre o que pode ser a relação pais-filhos no mundo de hoje, titulada por alguém que mostra uma imensa tolerância e respeito pela liberdade dos jovens, nas escolhas que eles têm que fazer, ao chegarem às esquinas e às rotundas da vida. Deve ser bom ser filho de Mafalda Anjos.

Recomendo bastante estas "Cartas". Aprendi bastante com elas.

domingo, dezembro 15, 2024

A cor do "Salazar"


Acabo de dar conta da intenção, cá por casa, de vir a oferecer a alguém um "Salazar", por este Natal. Um Salazar com cores simpáticas é, em si mesmo, uma contradição em termos.

Os nossos comunistas

 

Leio que o PCP está em congresso e diverte-me a obsessão da nossa imprensa em procurar encontrar, no seio do evento, algo que abale o unanimismo a que os comunistas portugueses quase sempre fizeram jus. 

Tenho pelo partido alguns amigos e conhecidos, uns mais abertos do que outros a admitirem graças sobre a prática política dessa vetusta organização. Comentários esses que, gostem eles ou não, farei sempre que me apetecer, mesmo que isso já me tenha valido acusações públicas de ser anti-comunista. Coisa que não sou nem nunca serei. Tenho muito respeito pelo PCP, mas não uso de "respeitinho" ao analisar as suas ideias e a sua prática.

Faço parte dos portugueses que, nunca tendo sido militantes do PCP, têm uma profunda admiração e eterna gratidão pela luta que o partido levou a cabo contra a ditadura. Não tenho a mais pequena paciência para o argumentário preconceituoso de quantos acham que "o que eles queriam era impor uma nova ditadura". Essas pessoas nunca conseguirão entender que uma ideologia como a que alimentou o PCP, um partido criado há bem mais de um século, passou por fórmulas políticas que hoje estão definitivamente datadas, mas que fizeram parte indissolúvel de tempos em que a ideia da esperança na regeneração radical da vida social dos povos a elas estava ligada. Não perceber isto é não perceber a História. E o PCP está há muito na nossa história e nela ficará muito para além de alguns "parvenus" conjunturais.

Desprezo igualmente a recorrente visão de um PCP golpista, papão do PREC. Lidei de muito perto com gente do PCP por esse tempo, tive com eles profundas divergências e até alguns confrontos. É óbvio que os comunistas portugueses teriam apanhado o "comboio da Revolução", se o ano de 1975 tivesse corrido de outra forma, mas não foi por acaso que os moderados de novembro desse ano deixaram que o PCP permanecesse no governo e mantivesse sem interrupções toda a sua expressão política. Bem oposto era o projeto dos oportunistas que, sem êxito, procuraram aproveitar o fim do PREC para ensaiar um novo 28 de maio, uma vez mais anti-comunista. 

O PCP é, desde há meio século, um partido respeitador da Constituição da República, que, em muitos aspetos, até parece ser hoje o seu verdadeiro programa político. Não conheço ninguém que possa apontar ao PCP um ato que indicie o menor infringimento da ordem constitucional instituída em 1976. É sabido que os comunistas têm um endémico azar ao capital privado, com o qual convivem com evidente esforço, e que adorariam que o tecido económico do país fosse maioritariamente público. É uma evidência que o PCP "sofre" a economia de mercado, que hoje é a matriz incontornável da sociedade portuguesa. Nunca os comunistas se reconciliaram com este estado social de coisas e nunca irão perceber nem aceitar que essa é uma das fontes da nossa atual liberdade. Mas não vejo o menor inconveniente que subsista na sociedade portuguesa um partido, embora cada vez mais minoritário, que persista nesta matriz. 

Os comunistas portugueses são também órfãos inconsoláveis do fim da União Soviética, têm a Rússia como o seu "next best" e resistem a qualificar Putin como o autocrata que é. Detestam os Estados Unidos e, em geral, consideram a União Europeia uma entidade do mal. Pelo mundo, batem palmas a quem irrite o mundo ocidental, o que os leva ao ridículo de apoiarem regimes como os de Maduro, Lukashenko, Ortega ou o homem da Coreia do Norte. Mas, com toda a justiça e dignidade, estão firmemente ao lado da Palestina. No todo global, os comunistas portugueses, que sabem bem ao que andam, já se devem ter dado conta de que a vertente externa tem vindo a contribuir internamente para a sua impopularidade. Mas, para eles, o mundo há muito que é assim.

No Portugal democrático em que gosto de viver, entendo que os nossos comunistas devem ter todo o espaço para defenderem essas suas ideias, por muito que estas se afastem do "mainstream" maioritário. Comigo sempre poderão contar para ajudar a preservar publicamente esse seu direito. Desejo que o PCP tenha tido um ótimo congresso, seja lá isso o que for.

sábado, dezembro 14, 2024

"Snob Bar"


Ele aí está, de regresso, como muita gente desejava, a começar por mim. O encerramento do Snob acabou por ser de curta duração, mas foi o tempo suficiente para que tivesse sido feita uma agradável mudança na sua arquitetura interior e uma modernização, muito bem conseguida, da sua lista, com aumento e qualificação da oferta. As duas salas tradicionais mantêm-se.

Fui lá jantar ontem, ainda antes da inauguração oficial, que terá lugar na 2ª feira: tinha visto a notícia da reabertura num jornal e reservei pelo Fork. Foi tudo muito bom! Pedimos o clássico bife, que veio com uma carne do lombo excelente, e um bacalhau à Braz de muita qualidade. Abrimos com a partilha de uma dose de gambas ao alho, tudo no ponto. As sobremesas eram bastante boas. A lista de vinhos (e outros alcoóis) é adequada (o limoncello é um acrescento que sugiro). Os preços são razoáveis, desejando-se que seja possível manterem-se assim.

O serviço, agora com a marca de qualidade do sempre excelente Café de São Bento, deixa a anos-luz o atendimento, esforçado mas muito menos profissional, que o velho Snob oferecia. Mas, claro, não esqueci por ali a figura do senhor Albino, que, depois da reforma da dona Maria, tinha passado, desde há já uns anos, para a cozinha. Com o fim do fumo, o velho Snob tinha sofrido uma grande machadada na clientela, como o próprio senhor Albino reconhecia. Ainda bem que o Snob pode ter agora uma continuidade, sem contudo se descaraterizar.

O Snob estará aberto todos os dias da semana, entre as 19.00 horas e as 02.00 da manhã.

Muito boa sorte é o que lhe desejo! Continuarei cliente, claro.

Livros para o Natal - "Só neste país"


Há uns anos, ofereci, como presente natalício, vários exemplares do livro que Filipe Santos Costa e Liliana Valente escreveram sobre o jornal "O Independente", que tinha no título a expressão "A Máquina de Triturar Políticos". 

Eu tinha vivido esses anos de "O Independente". Recordava-me do jornalismo diferente, ousado e moderno que "O Independente" inaugurara, em que se incluia uma imensidão de patifarias que o jornal fizera a muita gente, em especial durante os governos de Cavaco Silva, prolongando-se depois no consulado de Guterres. Eu próprio tinha sido alvo pessoal de uma delas. Dito isto, não deixava de reconhecer que o jornal marcara, de facto, um tempo importante na história do nosso jornalismo, pelo que achei muito interessante, informativo e instrutivo o livro que aqueles dois excelentes jornalistas sobre ele tinham escrito. Ainda às vezes consulto o livro.

Foi assim com grande curiosidade que avancei para este "Só neste país", que Filipe Santos Costa e Liliana Valente agora assinam. E não me arrependi. O livro é um magnífico repositório das imensas bizarrias que atravessaram a classe política, e não só, desta pátria que em boa hora nos calhou em rifa. Mesmo para quem, como eu, tem a pretensão de estar bastante atento ao quotidiano político, constatei que havia algumas coisas de que afinal não tinha conhecimento e, sobre outras, vi-me obrigado a rever o que julgava saber. Muito bem escrito, divertido e rigoroso, é um "album de glórias" de imensos momentos quase sempre menos gloriosos da nossa vida pública, que revelam bem como fomos e como somos, nada indicando de que assim deixaremos de ser no futuro.

O "Só neste país" pode ser uma bela prenda de Natal.

À volta da guerra


Ver aqui

Os dias da França


Ver aqui.


A nova Síria


Pode ver aqui.

A tosse do primeiro violino


Acontece-nos a todos: a tosse durante os concertos. É histórica, vem nos livros, está nos filmes. Aumenta sempre na "rentrée", diminui pelo final da "saison". Como se fosse uma maldição, sendo que é apenas a chegada do outono, das constipações, das gripes, dos "achaques". Às vezes, é breve, o mais das ocasiões repete-se, quase sempre quando menos desejamos. E, como a estatística prova, tende a emergir nos pesados instantes de efémero silêncio. Pode começar por um pigarro, mas acaba em regra por ser aquela infernal comichão na garganta que regressa momentos mais tarde, aumentando sempre na razão direta do nosso embaraço. Às vezes, conseguimos que seja uma coisa quase solitária, discreta, atenuada pelo lenço. Outras vezes, sai cava, rugosa, brutal, com os vizinhos a olharem-nos de lado, temerosos de covid ou de coisa pior. Disfarçamos, mas, por muito que o tentemos e mesmo que tal não seja verdade, ficamos com a sensação de que nos convertemos no centro das atenções. A nossa tosse estraga-nos sempre a ocasião, muitas vezes apenas porque tememos que arruine a dos outros. Há quem leve pastilhas, rebuçados do doutor Bayard ou paliativos parecidos. Há quem desista de ir a um espetáculo por saber que ali será um embaraço insuportável para si próprio Há, finalmente, tenho-os visto e ouvido!, quem tussa livremente, sem cuidado, de forma javarda, aspergindo o ambiente, estando-se nas tintas para os outros ou para o que possam pensar de si. Há um pouco de tudo, nesse mundo rouco das tosses.

Ontem, na Gulbenkian, houve, por uma vez, um momento libertador. Estava-se no final do primeiro andamento da 9ª de Mahler. Era o breve interlúdio entre o cair de braços do maestro nórdico e o erguer da sua batuta para o prosseguimento do concerto. Com fulgor, a tosse surgiu de uma origem inesperada: da boca do primeiro violino! Foi então que, um pouco por todo o Grande Auditório, na sintonia de uma improvável orquestra, elas ecoaram, livres, num improvisado coro: as tosses. Foram muitas, oriundas de várias filas, em diversos tons, umas contidas, outras libertadas pelo estímulo, todas nervosas por natureza, ajudadas pela qualificada fonte inspiradora que tinha dado o mote. Foi uma brevíssima sinfonia irregular, de autor coletivo anónimo, em trinta escassos segundos, em estreia mundial, que chegou a provocar uma discreta risota em algumas zonas da audiência. Por uma rara vez, o palco deu o tom a uma plateia que ali se soltou do acosso irritante das gargantas. Foi um belo momento de harmonia.

sexta-feira, dezembro 13, 2024

E o "jeunisme"?


Afinal, em França, a resolução da crise política acabou por cair na "geração dos 70". Por onde anda a rapaziada da fornada "start-up"? O "jeunisme" está a passar de moda? 

A França sob o olhar do mundo


Comentar em inglês a nomeação do primeiro-ministro francês numa televisão do Azerbaijão, entrevistado por uma "pivot" espanhola, foi uma experiência interessante.

Dador de lições

Um país que, no prazo de um ano, teve já quatro primeiros-ministros deve ter algum dificuldade (ou melhor, algum pudor) em querer dar lições ao mundo, mandando bitaites sobre a respetiva situação política - da Ucrânia ao Líbano, passando pela África que o está a pôr com dono.

Bayrou

François Bayrou é o novo PM francês. A "novidade", depois de tantas hesitações, recai assim num dos mais antigos políticos franceses no ativo. 

Sarkozy (e o Les Républicains) detesta-o, por ele ter apoiado Hollande em 2012. 

Le Pen deve-lhe um gesto. Quando a candidata do Rassemblement National necessitava de um mínimo de "parrainages" de eleitos, para poder concorrer à presidenciais de 2022, Bayrou, num belo gesto "republicano", ofereceu o seu nome.

Os socialistas têm sobre ele "mixed feelings". Ségolène Royal nunca lhe perdoará a falta de endosso, na segunda volta das eleições de 2007. Noutro tom, Mitterrand dizia que uma pessoa que conseguiu superar a gaguez é sempre de respeitar.

Influências

Nunca houve dúvidas de que a Rússia procura influenciar, em favor das forças que protegem os seus interesses, eleições e movimentações políticas em alguns países. O que acho estranho é que isto pareça ser um escândalo quando os EUA, e agora a UE, atuam de forma idêntica.

quinta-feira, dezembro 12, 2024

Gostos


A revista "Ler", dirigida por Francisco José Viegas e editada por Filipa Melo, submeteu-me a um inquérito sobre (algum)as palavras de que mais desgosto e gosto. 

Aqui fica a lista:

Palavras de que não gosto

Hodierno. Sempre encanitei com esta forma pedante de dizer que uma coisa é dos dias de hoje. Sei lá bem porquê! Talvez por ver a palavra usada por alguns pavões da escrita, dos que compensam a falta de conteúdo com exageros na forma.

Experienciar. Anda agora na moda, faz parte das fórmulas de uma geração que parece que não vive as coisas, para quem tudo não passa de um somatório de momentos exaltantes. Experienciem à vontade! Que lhes faça bom proveito!

Resiliência. Que raio de palavra! Andava discreta pelos dicionários, onde alguém, há uns anos, a foi buscar para o nosso dia-a-dia. Ficou-me na memória negativa de certos tempos políticos que quero esquecer. Era então dita com o significado de "ai aguenta, aguenta!". Vejo-a agora recuperada, de forma modernaça, no PRR. Está visto, não têm juízo!

Zona de conforto. Outra expressão da modernidade. "Sair da zona de conforto" é algo dito como um ato de audácia, um gesto de decidir correr riscos, a expressão da ambição. Que raio de coisa! Ousadia é saber desenhar a nossa vida até chegarmos à "zona de conforto". Só dela saem os masoquistas. Ou então, a zona não era confortável.

Procedimento concursal. A primeira vez que vi a expressão, plasmada num diploma legal, não quis acreditar, achei que estavam a gozar connosco. O termo "concurso" era redutor, o oficiês achou que tinha de ser criativo e logo se passou para um procedimento cretinativo. E já pegou, está por toda a parte!

Paraninfar. Num jornal na minha terra, semana após semana, havia notas de alguém ter "paraninfado" um casamento ou um batismo. Pobres padrinhos, vilemente acusados de tal ato! Mesmo sem lerem Nobokov!


Palavras de que gosto

Melro. É-me agradável o som da palavra dita em voz alta e isso talvez se deva ao facto de, desde criança, ouvir o meu pai recitar o poema homónimo de Guerra Junqueiro. Na pandemia, alimentei muito os melros que pousavam no meu quintal e afeiçoei-me a eles. Sou, desde então, um melrófilo.

A-Ver-o-Mar. É um subúrbio da Póvoa, onde Maria Lamas andou a falar com mulheres do seu e nosso país. É um topónimo composto que me traz uma ideia de descanso, de serenidade feliz. A simpática localidade "Água de todo o ano", perto de Ponte de Sor, não lhe chega aos calcanhares.

Bem. Apesar do termo ter vindo a ser aviltado por imbecis, pessoa "de bem" é um qualificativo que sempre tive por honroso. Uso-o muito. "Bem" é uma palavra muito boa, que soa sempre ... bem!

Melancolia. É raro eu escrever a palavra. Ligo-a muito à atitude perante a vida de pessoas que conheci e que conheço, além de algumas caras de Modigliani. O vocábulo é bonito e "ondulante", no percurso da sua pronúncia suave. O sentimento tem o seu quê de poético, reflete uma tristeza respeitável e misteriosa. 

Sacripanta. Na aceção que intimamente registei da palavra, há um lado menos sério do que aquele que os dicionários registam. O termo tem de ser lido em voz alta, dito com um tom de jocosidade acusatória. "Saíste-me cá um sacripanta!", exclamo eu a um visível mas amigo malandro. Explorem a saltitante beleza fonética do vocábulo.

Espatifar. Há na sonoridade dos tempos do verbo a força de coisas a partir-se, a esfrangalhar-se (outra bela palavra), a romper-se com estrondo e efeito sempre físico. Como agora se diz, é um vocábulo "gráfico" por excelência. E, talvez não por acaso, traz um patife lá dentro.

Fico sempre surpreendido...


... pela pluralidade mediática no Irão.

Radha Kumar


Em mais uma excelente iniciativa de Álvaro Vasconcelos, no quadro do "Forum Demos", grupo que criou e coordena desde há vários anos, no qual colaboro com regularidade, tivemos ontem o privilégio de conversar com Radha Kumar, uma fascinante intelectual, académica e escritora indiana, com um trajeto interessantíssimo, nomeadamente na abordagem das questões da paz e do debate democrático. 

As pessoas reunidas naquele jantar ouviram Radha pronunciar-se sobre a situação no seu país e, durante quase três horas, trocaram com ela ideias sobre os rumos da Índia e do mundo. Foi uma belíssima jornada! 

quarta-feira, dezembro 11, 2024

"Breve Infinito - O Cais Anterior"


... ao fim da tarde de hoje, apresentei a obra "Breve Infinito - o Cais Anterior", de João Miranda, numa edição Âncora.

Pode ler o que eu disse aqui.

Prémio Mário Quartin Graça


Na minha qualidade de presidente do júri do Prémio Mário Quartin Graça, atribuído pela Casa da América Latina, intervim hoje na sessão da entrega do prémio de 2024 à académica brasileira Renata Flaiban Zanete. Anunciei também a atribuição das quatro menções honrosas, que o júri entendeu dever distinguir, dada a qualidade dos trabalhos este ano apresentados.

O Prémio Científico Mário Quartin Graça é atribuído anualmente a uma dissertação de Doutoramento em Ciências Sociais e Humanas, a autores portugueses ou da América Latina.

Franças

Os socialistas franceses mostraram abertura a poder vir a aderir a uma atitude de "não-censura" (eles que votaram a censura que derrubou o governo Barnier) a um futuro governo, mesmo que nele não participem, em troca deste se comprometer a não impor leis através do mecanismo constitucional de exceção (49.3).

A evolução dos socialistas franceses rumo a um compromisso de governo necessitará ainda de ser confirmada. O seu líder, Olivier Faure, é muito contestado internamente, nomeadamente em setores do seu grupo parlamentar.

A primeira e irreversível consequência de uma anuência do PS francês a um novo governo será a rutura do ""Nouveau Front Populaire" (NFP). Se Ecologistas e Comunistas seguirem o PS, "La France Insoumise" de Mélenchon, força principal do NFP, fará o caminho de "cavalier seule".

Dentro do PS francês há, contudo, um setor muito ligado à ideia do NFP. A razão desta hesitação é simples: se o PS tivesse ido a eleições isolado, teria tido um resultado muito inferior. Pensava-se que Faure pertencia a esse grupo próximo da LFI ... 

Ao colocar o "Rassemblement National" e o LFI como extremos a isolar no caminho para um novo governo, Macron concretiza o sonho político da direita: equiparar no imaginário público o grupo de Mélenchon ao partido de extrema-direita.

terça-feira, dezembro 10, 2024

Votos de rápidas melhoras!

Vale tudo?

O "whataboutism" no seu melhor: perante a evidência da onda de execuções levada a cabo pelos novos senhores da Síria, as redes sociais mostram gente muito compreensiva com essa barbárie, argumentando que Assad fazia o mesmo. 

Está frio...


... mas está um belo dia!

No Grémio


Amanhã, quarta-feira, dia 11 de dezembro, pelas 18.30, apresentarei no Grémio Literário o livro de João Miranda "Breve Infinito - o Cais Anterior". Não sei se o poderei classificar como um romance, porque é um texto de género híbrido, como terei oportunidade de explicar. Por que não passa por lá?

Não olhar

A concentração das atenções na questão da Síria passa a ser o cenário ideal para que o povo palestino continue a ser objeto de um tratamento bárbaro. A Europa, entidade sempre  cobarde face a Israel, parece seguir o título do clássico livro de Aldous Huxley: "Sem olhos em Gaza". 

segunda-feira, dezembro 09, 2024

O "Painel" do Cardoso


No interior da velha casa que a imagem mostra, numa parede, havia um grande painel em que o artífice, descuidado, tinha trocado dois azulejos de uma nuvem, oferecendo à obra um não deliberado sentido de transgressão estética. Era o restaurante "Painel de Alcântara".

Na Lisboa dos anos 80, com o Bairro Alto a borbulhar de novidades ousadas e de gente fardada de preto no "Frágil", o "Painel de Alcântara" entrou na boa moda verdadeiramente "alternativa", isto é, passou a ser popular, em zona orgulhosamente não "trendy", entre gente que gostava, muito simplesmente, de comer bem. 

Creio que terá sido em 1985, chegado de Luanda, que comecei a frequentar o "Painel", a "walking distance" das Necessidades. Tinha aberto há pouco. Com o também recém-criado "Poleiro", na rua de Entrecampos, para os jantares, o "Painel" passou a ser uma "cantina" segura em que eu ancorava com regularidade os meus almoços.

O "Painel" era propriedade do Cardoso, Adelino de seu nome. Era namorado da Zezinha, uma cara bonita e uma mulher muito gentil, que estava ao balcão, do lado esquerdo de quem entrava naquela casa pequena e esconsa, situada no dédalo operário de Alcântara. Seco de carnes, agitado no gesto, um pouco brusco para quem o não conhecesse bem, mas muito educado na atitude para com os clientes, o Cardoso era um mouro de trabalho, que ia às 5 da manhã ao mercado sacar, para nós, os melhores produtos. 

O "Painel" tinha então o louro Zé na cozinha, a fazer um trabalho notável. Um dia, o Cardoso quis falar connosco, um grupo de "habitués" do MNE: o Zé tinha sido mandado incorporar no serviço militar. Podia lá ser! A guerra já lá ia há muito! Alguém teve então a ideia genial de convidar para almoçar no "Painel" uma alta figura do ministério da Defesa. No final, perguntámos-lhe que apreciação fazia da refeição. Estava deslumbrado! Esmerei-me na réplica, de que tinha sido encarregado: ainda bem que tinha tido oportunidade de testar a maestria culinária do Zé. É que ele iria sair da tarefa dentro de poucas semanas, para ir compulsivamente "de verde" para um qualquer quartel qualquer. Não era uma pena? O homem concordou comigo, connosco, que entrámos em coro. E, por artes e manhas que já não são da minha conta, o Zé lá se livrou ou adiou a convocatória, ficando entre os tachos do Cardoso, para nosso sossego digestivo. Não por muito tempo, diga-se, porque as leis do mercado funcionaram e o rapaz zarparia, meses mais tarde, para outras paragens, imagino que mais rentáveis. 

E assim o Cardoso teve de assumir ele próprio a cozinha. Verdade seja, a qualidade do "Painel" manteve-se elevada. O cardápio era simples, tradicional: abriam o queijo e o presunto, com bom o vinho da casa, seguia-se uma lista farta, as pataniscas com o insuperável arroz de feijão a dominar, o excelente cabrito assado, o cozido das 4ªs e as favas guisadas com entrecosto, capazes de humilhar as moçoilas de Tormes. 

Um dia, o "Painel" alargou-se à casa ao lado. Entretanto, a Zezinha foi-se pela sua vida, o Cardoso casou algures, teve filhos, chamou para junto de si alguns irmãos, chegou a haver por ali noites com fados. Mas ele soube manter incólume, por bastantes anos, o nome e a boa fama do "Painel", graças ao seu imenso trabalho, à grande qualidade da sua comida e ao amável serviço. 

A vida do Adelino Cardoso terá entretanto dado algumas voltas. O "Painel" fechou e o Cardoso, ao que um dia viémos a saber com muita pena, morreu ainda bem jovem. Recordarei para sempre a sua simpatia e atenção. O meu amigo Cardoso foi um senhor da restauração lisboeta, um homem bom e um excelente profissional. 

Há horas, nesta Lisboa gelada, passei por lá e fotografei o que resta daquilo que foi o magnífico "Painel de Alcântara".

A mudança


O cenário é obviamente de poder. Mas algo me faz não acreditar que esta fosse a secretária de Bashir al-Assad. É que o homem teria, pela certa, um melhor gosto, quanto mais não fosse influenciado pela mulher, tributária da estética londrina. Mas nunca se sabe!

Embora ficando muito longe da inesquecível pose do grupo de talibãs na chegada à sede do poder em Cabul, este repouso do guerreiro, imperdoavelmente sem uma arma à vista, convoca em si todo o simbolismo da mudança. 

domingo, dezembro 08, 2024

SIC Notícias

Aceitei com gosto o convite da SIC Notícias para ir hoje, depois das 19.00, falar do terramoto político na Síria e dos humores de Trump sobre a Ucrânia.

Dei conta na minha intervenção da curiosa nomenclatura que é usada para designar os insurgentes, num qualquer cenário violento. Quem não gosta deles chama-lhes terroristas. Aqueles a quem eles dão jeito geopolítico chamam-lhes guerrilheiros ou coisas mais fofas. Quem altera a designação que usava, a meio dos conflitos, chama-se a si próprio de potência oportunista.

Síria

Assad tinha muito poucos amigos. A Rússia perde um "hub" regional e o Irão um aliado. Israel e Turquia esperam tirar vantagens. Riade e Amman devem estar muito inquietos. O que se passou no Iraque e na Líbia deve fazer refletir o mundo. A região fica muito mais complexa. Já estava pouco...

Os estranhos acontecimentos na Coreia do Sul



Ver aqui.

A França em ebulição política


Ver aqui.

sábado, dezembro 07, 2024

Tributo a Mário Soares


Foi bonito!

Vejam bem!

 


Isto volta a complicar-se!

 


Soares e uma certa diplomacia


Oslo, Noruega, junho de 1980. 

O conselheiro da embaixada espanhola em Oslo telefonou-me: "O teu embaixador vai ao aeroporto receber Mário Soares?". Caí das núvens: "Mário Soares vem a Oslo?!". Era uma reunião do "bureau" da Internacional Socialista. A nossa embaixada não tinha sido avisada. O embaixador espanhol, um conservador da velha escola, com ar altivo de "señorito", num tempo em que Adolfo Suarez chefiava o governo em Madrid, ainda não tinha decidido sobre se iria ou não acolher Filipe González. Queria saber o que íamos fazer. Disse-lhe que não sabia, mas que logo lhe diria. 

Por esse tempo, em Portugal, Soares era líder da oposição ao governo da primeira Aliança Democrática, chefiada por Sá Carneiro. Eanes era presidente da República e, por coincidência, há pouco mais de uma semana, tinha efetuado uma visita de Estado à Noruega, de que a nossa minúscula embaixada ainda mal estava refeita.

Nessa embaixada, eu era o único diplomata além do embaixador, de seu nome António Cabrita Matias.  Ele tinha chegado a Oslo em meados de maio, vindo da Austrália, que fora o seu primeiro posto como embaixador. Tinha sido transferido à pressa, para poder acolher a visita de Eanes, dado que o anterior titular, Fernando Reino, era, desde há uns meses, o novo chefe da Casa Civil do próprio Eanes. Eu ficara entretanto encarregado de negócios, chefiando a embaixada, durante esses meses de transição e de preparação da visita.

Cabrita Matias, era um homem pequeno, magro, sempre elegantemente vestido, com um cabelo negro puxado para trás, penteado com aparente brilhantina, naquele modelo de estética capilar que sempre identifico nas fotografias dos primeiros governantes do Estado Novo. Tinha um sorriso que era mais um esgar profissional, mas que projetava um ar de simpatia tímida, embora algo desdenhosa.

Fui avisá-lo da chegada de Soares, que era logo no dia seguinte. Os tempos políticos em Portugal estavam muito tensos, nesse ano que iria ficar bem marcado na nossa História política. Vi que Cabrita Matias hesitava claramente sobre o que deveria fazer, embora procurasse não dar isso a entender. Receber o líder da oposição, num tempo político lisboeta tão crispado, sem ter instruções expressas para tal?

António Cabrita Matias foi talvez a pessoa mais solitária que cruzei em toda a minha vida. Era solteiro, um pouco misógino, mas creio que não homossexual. Passava as férias e os Natais completamente sozinho. Gabava-se de não escrever a ninguém. Não o vi cultivar um único amigo, nem sequer na carreira, embora, no fim da vida, eu próprio o considerasse como tal. Desconfiava, à partida, de tudo e de todos, quiçá fruto de experiências desagradáveis, que nunca me revelou. Cuidava em manter a maior distância possível face a Lisboa. 

Colocado em 1974 na Austrália, por seis longos anos, num tempo em que a informação circulava de outra forma, perdera contacto com o país em acelerada mudança, nesses anos após a Revolução de Abril. Não comentava a política portuguesa, embora eu o sentisse bastante conservador. As tricas partidárias em Portugal estavam, em absoluto, fora do seu radar de interesses. Desconhecia os nossos atores políticos mais comuns e tinha reais surpresas com o que eu lhe contava de um mundo lisboeta que continuava a interessar-me muito e a ele quase nada. Era completamente incapaz de me pedir o "Expresso" ou "O Jornal", que eu recebia pela mala diplomática. Comigo comentava apenas temas internacionais, onde era evidente um fascínio pela América, onde vivera tempos que deviam ter sido agradáveis. Lia o "Herald Tribune" e a "Time". Era inteligente, culto, dotado para línguas. 

Cabrita Matias tinha uma vida social e diplomática formal, clássica a roçar a caricatura, mas com uma grande generosidade nos convites que fazia como embaixador, onde gastava abundantemente aquilo que o Estado lhe pagava. Parecia, contudo, ter, como grande objetivo de vida, que, simplesmente, o deixassem em paz. Na sua filosofia profissional, a embaixada devia evitar fazer-se notada pelas Necessidades. Nisso era o mais flagrante contraste com Fernando Reino, que trabalhava como se Oslo fosse o centro do mundo. 

Devo confessar que não me foi fácil conviver diariamente, durante dois anos, com uma pessoa com aquele recorte idiossincrático. Contudo, com um algum esforço de adaptação da minha parte e uma crescente amabililidade do lado dele, que cedo percebeu a minha lealdade funcional, acabámos por nos dar relativamente bem. Faço este retrato para melhor se poder entender o que vou relatar.

Voltemos então a Mário Soares, que chegava no dia seguinte. Para quem não saiba, não há regras fixas a seguir, nas visitas de figuras que não ocupam funções oficiais. Cada caso é um caso e é preciso, essencialmente, ter algum bom senso e inteligência prática. 

Cabrita Matias não perguntou a minha opinião sobre o que deveria fazer, mas eu dei-lha: "Se me permite que lhe diga uma coisa, acho que o senhor embaixador deve ir ao aeroporto. Trata-se de um antigo primeiro-ministro e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros". E acrescentei um argumento que não era despiciendo, para um embaixador acabado de chegar ao país: "O governo trabalhista norueguês não deixaria de notar, se acaso não estivesse lá a receber Soares". 

O que eu disse tocou-o, embora intimamente deva ter pensado que era o meu "côté socialista" (como, mais tarde, com frequência, diria, a sorrir, quando passou a ter maior confiança comigo) que induzia o conselho que eu lhe dava. Como era extremamente orgulhoso e não queria que ficasse a ideia de que tinha sido eu que o influenciara, logo acrescentou: "Decidi ir. Afinal, foi o ministro Mário Soares quem, há anos, me nomeou para Camberra como embaixador".

No dia seguinte, no aeroporto de Fornebu, à chegada de Mário Soares, que vinha acompanhado por Maria Barroso, Rui Mateus e a mulher deste, constatou-se que não cabíamos todos no mesmo carro. "A embaixada não tem outro carro?", perguntou-me Mateus, com um ar um tanto sobranceiro. "A embaixada tem apenas este carro e nem este funciona muito bem...", respondi-lhe, seco. Ele e a mulher foram de táxi, eu acomodei-me ao lado do motorista e Soares, Maria Barroso e o embaixador ocuparam o banco de trás do carro.

A conversa entre os três começou por ser de circunstância. Cabrita Matias, como vim a constatar, era um requintado especialista em platitudes. Tinha mesmo, na sua abundante biblioteca, cheia de coisas religiosas e de ciências ocultas, livros americanos com anedotas e historietas, como um meio prático para iniciar e alimentar conversas fúteis. É verdade! Era simpático e deliberadamente mimético nos seus contactos profissionais, como tática para agradar. A última coisa que lhe passava pela cabeça era tocar em temas polémicos. Fugia disso como o diabo da cruz! Imagino que tivesse descrito a paisagem e falasse da vida em Oslo, na curta viagem a caminho do hotel em que Soares se instalava e onde a reunião da Internacional Socialista iria ter lugar.

Quando, ainda durante o trajeto, o embaixador referiu, incidentalmente, a recente visita de Estado de Eanes, Soares agarrou o tema: "Sabe, senhor embaixador: a situação política em Portugal atravessa um momento de grande tensão. Eu tenho profundas divergências com o presidente Eanes e com o primeiro-ministro Sá Carneiro. E, como saberá, o primeiro-ministro tem uma muito má relação com o presidente. Dificilmente as coisas poderiam estar piores". 

Com imensa curiosidade, esperei a reação de Cabrita Matias. Esperei e temi, com razão. Saiu-lhe algo parecido com isto: "Eu percebo, senhor doutor, que toda essa agitação política acabe por ser uma forma vibrante de viver o jogo democrático em Portugal. O que seria dos jornais se não fosse essa imagem de constante polémica! Mas, com certeza, há um espaço de diálogo para pacificar essas tensões. Estou certo que, em alguns dias, em finais de tarde, o senhor doutor, o dr. Sá Carneiro e o general Eanes se encontram, com cálice de cognac na mão e um bom charuto, ao calor de uma lareira, talvez no palácio de Belém, para discutirem os três, com calma, as grandes questões do país".

Eu enterrava-me no banco da frente, desgostoso por não ter um espelho retrovisor para ver a cara de Mário Soares e Maria Barroso. Aguardei, ansioso, a resposta e ela chegou, em alto e bom som, abalando o interior do velho Peugeot: "Ó senhor embaixador! Em que mundo é que o senhor vive?! Eu, o dr. Sá Carneiro e o presidente Eanes em conversa à lareira?! Era só o que faltava! Como é que pode ter uma ideia dessas? O senhor não sabe o que é Portugal nos dias de hoje!". Já não recordo o resto da cena. Entretanto chegámos ao hotel, onde os visitantes ficavam.

O hall do SAS de Oslo estava apinhado de delegados estrangeiros, ansiosos por fazer o "check-in" e, simultaneamente, inscreverem-se para a reunião socialista. Ainda olhei em volta, não fosse por ali surgirem Willy Brandt ou Filipe Gonzalez. Mas nada, ninguém conhecido. Com Soares a dar mostras de fadiga da viagem e porventura desejoso de se ver livre de nós, eu procurava apressar as formalidades. Mas o "first come, first served" da democracia nórdica impunha-se. Cabrita Matias, pela certa adepto do "à tout seigneur, tout honneur", decidiu, a certa altura, tomar a iniciativa. Vendo passar uma senhora, de cujo pescoço pendia uma identificação com o vermelho do evento, ia-a tomando quase pelo braço, com ar e tom irritado, como se de uma hospedeira da reunião se tratasse. Fui eu quem, no último instante, lhe travei o gesto, explicando: a senhora era Gro Harlem Brundtland. Dentro de escassos meses, iria ser escolhida para primeira-ministra da Noruega, como já estava nas cartas. Cabrita Matias tinha ainda pouco conhecimento da vida política local. Escapou ali, por muito pouco, a uma cena, que podia ter sido penosa, com alguém com quem um embaixador não poderia nunca ter conflitos.

Passaram entretanto dois dias. Fomos ao hotel buscar o casal Soares para os levar ao aeroporto. Mário Soares parecia ter esquecido as bizarrias do nosso embaixador. Talvez para fazer conversa, contou que, dentro de semanas, iria fazer uma visita à China, como vice-presidente da Internacional Socialista. Era a primeira vez que a organização recebia um convite dessa natureza. Soares mostrava-se curioso com essa futura experiência. No banco de trás, ouviu-se a voz do embaixador: "Vai passar por Nanquim, senhor doutor?" Soares não sabia ainda do programa. "É que se for a Nanquim, daqui a semanas, vai poder ver os mais bonitos campos de flores da China. Não devia perder isso!" 

Fez-se então um silêncio na conversa. Deduzi que os campos floridos talvez não fizessem parte da hierarquia de prioridades de Mário Soares. Mas Cabrita Matias tinha um sentido social de anfitrião que não lhe permitia conviver com pausas. E, ainda antes que a viagem acabasse, lançou: "O senhor doutor Mário Soares permite que lhe dê um conselho?" Voltei a alarmar-me! Devo-me ter aconchegado ao banco, para o choque do que dali viria. Soares, com uma voz entre o tolerante e o exasperado, de quem já estava por tudo, respondeu: "Faça favor, senhor embaixador, faça favor!" E o embaixador avançou com o "conselho": "Se quer o meu conselho, não fale de política aos chineses. Refira outras coisas, use metáforas, mas não lhes coloque abertamente temas políticos. Aquilo é outra forma de estar no mundo, de olhar as coisas".

A resposta de Soares soou-me forte, na nuca: "Não lhes falo de política?! Ora essa! Não lhes vou falar eu de outra coisa. Ó senhor embaixador! Desculpe lá, mas deve guardar esses seus conselhos para outras pessoas, mas não mos dê a mim, por favor!" Não me recordo se Maria Barroso disse alguma coisa, para pôr alguma água na fervura. Só sei que estive calado. Neste entretanto, felizmente, o nosso motorista, o excelente Domingos, tinha parcado o carro em frente à porta do pequeno aeroporto de Oslo. Sair daquela conversa foi um bálsamo.

Soares regressou a Portugal. Nesse mesmo ano de 1980, meses depois, auto-suspender-se-ia conjunturalmente do cargo de secretário-geral do PS, protestando pelo apoio dado pelo partido à recandidatura de Ramalho Eanes, contra o candidato apoiado pela AD, Soares Carneiro. Em 4 de dezembro de 1980, Sá Carneiro morreu em Camarate. Eanes foi reeleito e a AD nunca mais seria a mesma. 

Muitos anos depois, algures no mundo, onde nos fomos encontrando por diversas vezes, com longas e agradáveis conversas, perguntei a Mário Soares se se lembrava daquela visita a Oslo. Soares tinha uma magnífica memória, mas apenas para o que era importante. E, manifestamente, aquelas cenas nórdicas não o tinham marcado muito. Disse-me que guardava apenas na ideia ter-se cruzado, na Noruega, com um embaixador "um pouco estranho", mas nada mais. De cujo nome não se recordava. Mas acrescentou: "Lembro-me apenas que era o meu amigo que estava por lá com ele", disse-me, generoso, sem que eu acreditasse.

Tenho muitas saudades de Mário Soares.

Palestina

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