Nos anos 70, a Líbia de Kaddafi estava longe de ter a imagem negativa que, anos mais tarde, viria a adquirir, em especial pelo envolvimento com ações terroristas. O coronel e os seus colegas, recém-emergidos de um golpe militar que havia deposto a monarquia do rei Idris, eram vistos como um nasserismo modernizante, que pretendia colocar a riqueza do petróleo nas mãos do povo, nesses tempos em que o terceiro-mundismo fazia escola. Se os americanos estavam desagradados com o fim da base militar de Wheelus, que tinham mantido perto de Tripoli, os poderes europeus faziam então crescentes gestos de abertura ao novo regime, rico e fonte de negócios.
Nas suas deambulações para promover o novo regime democrático português, Mário Soares deslocara-se à Líbia, em 1974, onde se encontrara com Kaddafi. Talvez daí tivesse ficado alguma ligação ao PS português.
Um dia de 1977, o nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros foi alertado para o facto de que uma delegação líbia, chefiada por um ministro, que se deslocava a Lisboa para um congresso do PS, pretendia ser recebida oficialmente. Ao que nos chegou, traziam propostas de cooperação económica interessantes. Nessa altura, tinha a meu cargo o pelouro das relações económicas com os países árabes e fui encarregado de montar toda a operação.
Parte dela consistia em organizar os contactos para o chefe da delegação. Esta era presidida pelo ”ministro dos Municípios” da Líbia. Por esse tempo, o nosso Ministério da Administração Interna mantinha uma estrutura importante ligada ao nascente poder local. Assim, foi considerado adequado pedir uma audiência para ele ao seu “homólogo” português, o ministro Costa Braz.
A conversa entre os dois, a que assisti, acabaria por ser surreal. O ministro líbio era afinal uma espécie de ministro das Obras Públicas e o poder local, na Líbia, não era mais do que uma ficção. Enquanto Costa Braz falava das virtualidades do novo municipalismo português, gabando-lhe as vantagens e sublinhando o esforço da democracia para diluir o centralismo, o líbio elaborava sobre a necessidade de pôr termo ao poder tradicional das tribos, através de um poder central forte. As obras públicas, ordenadas por Tripoli, funcionavam como fator de legitimação do novo regime. Foi uma verdadeira cacofonia, entre chá e “misunderstandings”.
Acabada a audiência, Costa Braz pediu-me que ficasse para trás e, divertido, perguntou-me o que é que ele estava a fazer “naquele filme”. Eu, embaraçado, expliquei toda a confusão. Ela, contudo, iria continuar: Costa Braz ainda viria ser convidado, mais tarde, para ir à Líbia...
Verdade seja que, no seu todo, aquela operação luso-líbia iria funcionar às mil maravilhas: uma missão portuguesa (que integrei) deslocou-se à Líbia semanas depois, voltámos para concluir o acordado no ano seguinte e isso seria o início de uma importante presença empresarial de Portugal naquele país, que durou décadas, empregando muita mão-de-obra portuguesa. Isso continuaria até ao fim do regime de Kaddafi, bem como da própria Líbia, enquanto existiu como um estado funcional.
Há dias, por um mero acaso, acabei por ter um contacto indireto com o coronel Costa Braz, um homem de abril que tem sido menos lembrado. Uma figura distinta e impoluta dentre os militares da Revolução, que, não por acaso, viria a ser Provedor de Justiça e Alto-Comissário contra a Corrupção. A sua saúde não andará famosa nos dias de hoje, mas aproveito para daqui lhe enviar um abraço de admiração e respeito. E esta singela recordação.