domingo, abril 28, 2019

Encontro


- Já não se lembra de mim?! Pudera! Com a vida que tem...

Era um homem pequeno, magro, de olhar penetrante, tenso, um sorriso que não era mais que um esgar. Tinha-se aproximado pela rua, aos zigzags, e agora, no passeio, travava-me o passo.

Estávamos no cruzamento da rua do Almada com a dos Clérigos, no Porto. Há uns anos.

Costumo ter boa memória visual, mas, por mais que me esforçasse, não me recordava dele. Podia ser que com o fluir da conversa...

- É natural que já se tenha esquecido de mim. Passou já tanto tempo. Mas eu não esqueço aquelas palavras simpáticas que, há anos, me dirigiu, sobre o meu trabalho. Ficaram-me para sempre.

Que teria eu dito? Continuava mudo, encurralado no passeio estreito, com os carros à disparada, a impedir um início de retirada. O meu esquecimento seria da idade? É que continuava sem me lembrar de nada. O que já me incomodava.

- Pois eu, depois de ter por lá andado - bons tempos! -, tive uma vida muito complicada. Traições, sabe? Não se pode confiar em ninguém.

Onde é que teria sido o "lá" onde ambos nos tínhamos, ao que parece, encontrado? Sem nomes, relatou invejas que o tinham prejudicado, perseguições de que fora vítima, uma carreira profissional arruinada. Até a família! Tudo tinha corrido mal. Estava no desemprego.

Por essa altura, eu tinha passado aquele limiar temporal em que já me não era possível, com decência, perguntar quem ele era, onde nos conhecêramos, o que realmente fazia ou fez. O discurso do homem, culto e rico na expressão, revelava-me alguém bem preparado, mas, igualmente, uma personalidade abalada, perturbada. Continuava a acreditar que, por uma qualquer referência que acabasse por surgir, ainda ia "agarrar" a origem da figura e ligá-la a uma circunstância que me fosse comum.

Informou-me que lhe aparecera uma oportunidade para dar aulas. Começava na semana seguinte. E, algo críptico, acrescentou:

- O problema vai ser aguentar até lá.

Crendo ter vislumbrado uma escapatória, peguei na palavra, porque até então não tivera espaço para qualquer deixa, e disse-lhe que, se essa oportunidade se abria, seria apenas uma questão de tempo até pôr a sua vida em ordem. E adiantei umas platitudes de sala de espera de médico, como "o mundo dá tantas voltas" ou "sabe-se lá o dia de amanhã" ou "vai ver que tudo acabará por correr bem".

Vi, com alívio, que o meu interlocutor concordava, assentindo com a cabeça.

- Tem toda a razão, disse. Mas há-de concordar que é dificil, como no meu caso, estar sem comer quase há 24 horas. Mas vou aguentar! Não se preocupe...

Aí, fraquejei. Levei a mão à carteira e preparava-me para tirar uma nota, quando ele reagiu:

- Não, não! Nem pense nisso! Não junte uma humilhação mais àquelas por que tenho passado. Nunca perdoaria que o meu amigo ficasse com uma má impressão de mim. Posso ter fome, mas tenho a minha dignidade e, em especial, quero conservar a minha imagem. Como lhe disse, nunca esqueci as suas palavras. Basta-me isso! Eu cá aguentarei...

A cena invertera-se. Ele estóico, eu a pedir-lhe que aceitasse, dada a situação em que estava, uma simples nota para aconchegar o estómago. Não tinha nada a ver com humilhação ou dignidade, disse-lhe. Eu tinha muito gosto...

A relutância do homem começou a esbater-se. Condescendente, lá cedeu:

- Bom, se o meu amigo quer mesmo fazer-me esse favor, eu posso aceitar. Mas com uma condição! Isso é imperativo! Sem ela, não aceito! O meu amigo vai dar-me o seu endereço, para eu lhe enviar, logo que receber o primeiro salário da escola, aquilo que agora faz o favor de adiantar-me. Tenha paciência! Isso não dispenso! Nem eu aceito esmolas nem o meu amigo, pessoa que muito admiro, alguma vez seria tentado a dar-mas. Eu conheço-o!

Concordei, claro, "flattered" e aliviado com afastamento da suspeita de que eu pudesse ousar dar-lhe uma esmola. E lá lhe avancei alguns euros, acompanhados de um cartão pessoal. Sei lá porquê, senti-me aliviado. Parecia que o homem me acabara de fazer um favor. Na verdade, eu estava grato por ter recuperado a minha "liberdade", saído daquela conversa tão intensa. E lá se foi ele, rua abaixo. Até hoje.

A pessoa que me acompanhava, silenciosa durante toda a cena, interveio, por fim: “Quem era?”. Ainda hoje recordo o seu olhar de espanto, ao ouvir o meu ainda aturdido “Sei lá!”.

8 comentários:

Anónimo disse...

Conversa bastante típica de certas esquinas da cidade. Geralmente apresentam-se como colegas do tempo do liceu. Basta perguntar pelo estado de alguém (fictício) que seria supostamente um conhecimento comum para se descaírem.

Joaquim de Freitas disse...

Senhor Embaixador : Peço desculpa de lhe infligir, e aos nossos leitores, uma história idêntica ou quase, passada noutra cidade.

Era na véspera do 1° de Maio, quase como hoje, em Roma. Tinha visitado um cliente importante, a FIAT, fábrica de jantes, em Cassino, com vista para o célebre Mosteiro, onde tantos morreram para o conquistar aquando do desembarque dos aliados na baia de Anzio.

Só devia regressar a Lyon, em França, no dia seguinte, e por isso visitava pela quarta ou quinta vez as Termas de Caricalla, para fazer tempo…Tinha na mão um mapa de Roma, que me deram no hotel e que me dava aquela imagem do “turista” perfeito…que não conhecia o caminho, O que não era verdade!

Cruzei um homem, bem vestido, mesmo quase como um “gentleman”, que me saudou em italiano: Bongiorno ! …E continuou o caminho. Dois minutos apenas mais tarde, ouvi um passo apressado atrás de mim, e, muito surpreendido, vi que o senhor me acenava para esperar, correndo quase para chegar à minha altura. A rua estava deserta a essa hora matinal e verifiquei que era bem para mim que corria…

Testando a língua que podia falar, perguntou-me se falava italiano, que falo bastante bem, mas “investigava” a minha nacionalidade com o seu olhar inquisidor

Ora eu sou difícil a situar, porque o meu 1,84, olhos azuis, embora tenha perdido o meu cabelo loiro, que tudo o vento levou, ninguém distingue as minhas origens provavelmente suevas ou visigóticas do Reino Suevo de Braga e Guimarães…

Optou finalmente pelo Francês, pois que lhe disse que vinha de França e retornava a França no dia seguinte. Constatei depois que falava muito bem inglês e…alemão !

Contou-me então uma história não muito diferente da do seu homem portuense.

Era alemão, residia em Dusseldorf, andava a passear com a esposa e um filho, quando; numa rua não longe daqui, um indivíduo em Vespa, arrancou o saco da senhora, que não o largou facilmente, arrastando-a durante alguns metros, ferindo-se e perdendo mesmo assim o saco.
Até aqui algo de verosímil. A esposa está agora no Hospital de Latrão, gostava de lhe comprar, assim como para o filho, alguma coisa de agradável para comer, diferente do que lhe servem no hospital, mas com o saco lá se foram os passaportes e o dinheiro…E amanhã, 1° de Maio, o consulado estando fechado, só no dia seguinte poderei obter ajuda.

Conclusão: Pode por favor emprestar-me algumas liras, que lhe enviarei imediatamente para França desde o meu regresso. Deu-me o seu cartão de visita: realmente o endereço era bem Dusseldorf, “die klein Paris, disse-lhe, para que soubesse que conhecia a cidade e mesmo a rua onda habitava, que é muito central e que conhecia bem…Ia lá frequentemente, quando dirigi a filial alemã em Darmstadt, próximo de Frankfurt.

Avaliei a situação, a história estava bem montada, e o aspecto muito “civil” e mesmo refinado daquele senhor, as línguas que falava, incitaram-me a ajudar com o equivalente de 50 francos franceses da época, o que dava um saco de liras! O risco era ínfimo, e podia ser um investimento quando chegasse ao purgatório.

Confundiu-se em agradecimentos, deixou-me o cartão, e lá se foi comprar sandes para a esposa!

Passaram-se semanas antes que encontrasse nos meus papéis o cartão do senhor. E lembrou-me, por curiosidade de chamar o n° de telefone indicado.

Perguntei se podia falar com o senhor x

Responderam-me rapidamente, em alemão: Oh mein Gott ! Você é o vigésimo esta semana a querer falar com esse bandido, Por favor, vá à polícia. Já estou farto de responder ao telefone… Esse tipo é um vigarista que vai em todas as cidades europeias. Fala todas as línguas. Deve ganhar bem a sua vida…Neste momento está na Inglaterra! Bela vida…

Entschuldigung .. Auf Wiedersehen!...

Um dia, passando nessa rua de Dusseldorf confirmei que se o endereço é justo, o homem é um cidadão do mundo…

Outros pagaram depois pela vigarice, porque fiquei vacinado para o futuro. Agora nem paro para ouvir os “pedintes” gentlemen. Há muitos Gare de Lyon, em Paris que procuram os dois euros que fazem falta para comprar o bilhete de regresso…

Joaquim de Freitas disse...

Senhor Embaixador : Peço desculpa de lhe infligir, e aos nossos leitores, uma história idêntica ou quase, passada noutra cidade.

Era na véspera do 1° de Maio, quase como hoje, em Roma. Tinha visitado um cliente importante, a FIAT, fábrica de jantes, em Cassino, com vista para o célebre Mosteiro, onde tantos morreram para o conquistar aquando do desembarque dos aliados na baia de Anzio.

Só devia regressar a Lyon, em França, no dia seguinte, e por isso visitava pela quarta ou quinta vez as Termas de Caricalla, para fazer tempo…Tinha na mão um mapa de Roma, que me deram no hotel e que me dava aquela imagem do “turista” perfeito…que não conhecia o caminho, O que não era verdade!

Cruzei um homem, bem vestido, mesmo quase como um “gentleman”, que me saudou em italiano: Bongiorno ! …E continuou o caminho. Dois minutos apenas mais tarde, ouvi um passo apressado atrás de mim, e, muito surpreendido, vi que o senhor me acenava para esperar, correndo quase para chegar à minha altura. A rua estava deserta a essa hora matinal e verifiquei que era bem para mim que corria…

Testando a língua que podia falar, perguntou-me se falava italiano, que falo bastante bem, mas “investigava” a minha nacionalidade com o seu olhar inquisidor

Ora eu sou difícil a situar, porque o meu 1,84, olhos azuis, embora tenha perdido o meu cabelo loiro, que tudo o vento levou, ninguém distingue as minhas origens provavelmente suevas ou visigóticas do Reino Suevo de Braga e Guimarães…

Optou finalmente pelo Francês, pois que lhe disse que vinha de França e retornava a França no dia seguinte. Constatei depois que falava muito bem inglês e…alemão !

Contou-me então uma história não muito diferente da do seu homem portuense.

Era alemão, residia em Dusseldorf, andava a passear com a esposa e um filho, quando; numa rua não longe daqui, um indivíduo em Vespa, arrancou o saco da senhora, que não o largou facilmente, arrastando-a durante alguns metros, ferindo-se e perdendo mesmo assim o saco.
Até aqui algo de verosímil. A esposa está agora no Hospital de Latrão, gostava de lhe comprar, assim como para o filho, alguma coisa de agradável para comer, diferente do que lhe servem no hospital, mas com o saco lá se foram os passaportes e o dinheiro…E amanhã, 1° de Maio, o consulado estando fechado, só no dia seguinte poderei obter ajuda.

Conclusão: Pode por favor emprestar-me algumas liras, que lhe enviarei imediatamente para França desde o meu regresso. Deu-me o seu cartão de visita: realmente o endereço era bem Dusseldorf, “die klein Paris, disse-lhe, para que soubesse que conhecia a cidade e mesmo a rua onda habitava, que é muito central e que conhecia bem…Ia lá frequentemente, quando dirigi a filial alemã em Darmstadt, próximo de Frankfurt.

Avaliei a situação, a história estava bem montada, e o aspecto muito “civil” e mesmo refinado daquele senhor, as línguas que falava, incitaram-me a ajudar com o equivalente de 50 francos franceses da época, o que dava um saco de liras! O risco era ínfimo, e podia ser um investimento quando chegasse ao purgatório.

Confundiu-se em agradecimentos, deixou-me o cartão, e lá se foi comprar sandes para a esposa!

Passaram-se semanas antes que encontrasse nos meus papéis o cartão do senhor. E lembrou-me, por curiosidade de chamar o n° de telefone indicado.

Perguntei se podia falar com o senhor x

Responderam-me rapidamente, em alemão: Oh mein Gott ! Você é o vigésimo esta semana a querer falar com esse bandido, Por favor, vá à polícia. Já estou farto de responder ao telefone… Esse tipo é um vigarista que vai em todas as cidades europeias. Fala todas as línguas. Deve ganhar bem a sua vida…Neste momento está na Inglaterra! Bela vida…

Entschuldigung .. Auf Wiedersehen!...

Um dia, passando nessa rua de Dusseldorf confirmei que se o endereço é justo, o homem é um cidadão do mundo…

Outros pagaram depois pela vigarice, porque fiquei vacinado para o futuro. Agora nem paro para ouvir os “pedintes” gentlemen. Há muitos Gare de Lyon, em Paris que procuram os dois euros que fazem falta para comprar o bilhete de regresso…


Joaquim de Freitas disse...

PS) Ia esquecendo: O "artista" ,porque era um, para dar um toque "sério" à coisa, depois de me deixar , veio imediatamente para traz ,aparelho fotogràfico em punho, para me pedir a autorizaçao de me tirar "o retrato". Foi talvez o que me irritou mais, porque o imaginei depois a dizer à minha foto, se é que a fez (?), este lorpa também caiu...na esparrela !

Rui C.Marques disse...

Há cinquenta e alguns anos.A caminho apressado do Liceu,logo pela manhã,sou interrompido por um individuo de aspecto fúnebre :"tenho um filho morto no hospital e preciso de mandar fazer-lhe a barba antes de ser enterrado.Pode ajudar-me ? Dei-lhe o dinheiro.
Num intervalo das aulas contei o episódio a alguns colegas.E um disse: "Olha outro!".Depois mais um :"Já somos três!".Ainda outro:"Não!",já somos quatro!".E um úlimo:"A barba desse morto ficou bem cara!" .


Miguel disse...

Depois de de ler esta estória fiquei a rir, imaginando o Sr. Embaixador, ainda hoje, a pensar quem seria o senhor.
Não posso afirmar com 100% de certeza, mas com 99% parece mesmo o conto do vigário.

Também já tive um desses que me abordou numa área de serviço na auto-estrada.. Falámos durante um bocado, eu envergonhado por não me lembrar dele e ele sempre solicito e simpático.
Só correu mal quando ele me quis "oferecer" umas roupas e eu agradeci muito mas não aceitei.. foi sorte minha.

Miguel

AV disse...

Foi um gesto que lhe ficou bem a si e continua a ficar com a distância do tempo.

Unknown disse...

ups..... mais um enganado com o conto do vigário
mas a esta altura já se terá apercebido disso, certo?

O comandante

As ordens, nessa manhã de há precisamente 50 anos, tinham sido claras: os portões da unidade ficavam fechados e ninguém entrava sem uma auto...