A embaixada em Londres era então chefiada por António Vaz Pereira, de quem eu era ministro-conselheiro e seu "número dois". Vaz Pereira estava no seu último posto de uma carreira diplomática relevante. Ali chegara ido de embaixador junto da NATO, após ter exercido idênticas funções em Moçambique e na Dinamarca. Fora também diretor político nas Necessidades, o lugar de topo da decisão diplomática. Como personalidade, era um "character", um conhecido "gourmet" e cozinheiro, um reputado pescador. Homem culto e lido, pensava pela sua própria cabeça e tinha opiniões fortes, que não escondia e fazia gala de afirmar. Bastante conservador, mas sem alinhamentos políticos, tinha plena confiança em mim e dava uma grande liberdade ao meu trabalho. Durante quatro anos, tivemos uma relação excelente e ficámos amigos, até à sua morte.
Voltemos à visita. De Lisboa, foi-me transmitido pelo telefone que estavam em contacto direto com Downing Street. Não estava prevista a presença de Vaz Pereira no encontro de Cavaco Silva com Major, por vontade portuguesa.
Cavaco Silva era useiro e vezeiro na atitude de, frequentemente, afastar os embaixadores portugueses de encontros que tinha com os seus homólogos. E, como é óbvio, um chefe de governo que constata que um primeiro-ministro que o visita não leva consigo o embaixador parte do princípio de que este não lhe merece confiança. Daí retirará as necessárias consequências, na importância futura a conceder ao diplomata.
Cavaco Silva foi primeiro-ministro durante uma década. A doutrina dividia-se sobre se era ele próprio quem promovia essa atitude, que colava com o seu temperamento fechado e distante, ou se era instigado a tal por algumas "eminências pardas" (no MNE, alterava-se com frequência a penúltima consoante do adjetivo...) à sua volta. No fundo, era irrelevante: o resultado seria sempre o desprestígio dos embaixadores portugueses.
Na conversa com a pessoa que, de Lisboa, me informou da coreografia da visita, não tive o menor sucesso quando objetei contra a ausência do embaixador no encontro com Major. Nada que me surpreendesse.
Informei de tudo Vaz Pereira que se limitou a comentar, com um sorriso e uma gargalhada galhofeira que era muito sua: "Albarda-se o burro à vontade do freguês." E, como "bofetada de luva branca", pediu-me que informasse o gabinete do primeiro-ministro de que tinha "o maior dos gostos" em convidar Cavaco Silva e a comitiva a irem jantar à residência da embaixada, a cerca de três centenas de metros do hotel onde se instalavam, na noite da chegada. Nova recusa: todos jantariam no próprio hotel. Claro que a Cavaco Silva, bem como à sua corte, não passou pela cabeça ter a delicadeza de convidar o embaixador português no Reino Unido a juntar-se-lhes.
Vaz Pereira era um homem superior. Sentiu o toque, mas decidiu não reagir. Disse-me para eu tratar do que fosse necessário, para que a visita, de que ele fora deliberadamente afastado, corresse pelo melhor. Falei com o "Foreign Office" sobre alguns pormenores, reservei o hotel e tratei dos carros.
Cavaco chegou de Falcon a um aeroporto militar perto de Londres. Vaz Pereira e eu esperávamo-lo. Cumprimentou-nos, recusou o convite que o embaixador lhe fez para ir no belo e histórico Daimler oficial da embaixada, entrou com alguém num dos carros alugados e zarpou para o hotel. Só voltámos a vê-lo à partida, no dia seguinte.
Nessa noite, porém, eu ainda iria ter um divertido episódio com um membro da comitiva de Cavaco. Estava a jantar em casa quando recebi um telefonema do chefe da segurança do primeiro-ministro.
O anedotário político está cheio de historietas caricatas passadas com essa pequena figura, de que a mais célebre é a desconfiança que, um dia, lhe tinha causado ver uma pomba pousar junto a uma janela, numa sala do edifício da União Europeia, em Bruxelas, em que estava Cavaco Silva. O homem entrou em stresse, desconfiando que a pomba pudesse transportar um engenho explosivo e lançou um alerta, provocando risota e caindo no ridículo dos circunstantes. De todos? Não ficou para a pequena história qualquer reação de Cavaco Silva sobre a pomba.
E chegou o tal telefonema, pelo meu telefone fixo, num tempo em que não tínhamos telemóveis. O homem vinha queixar-se-me de que, na sua perspetiva, a segurança britânica estava a descurar gravemente a proteção a Cavaco Silva, dentro do hotel. Segundo ele, não se viam agentes e isso era uma falha muito grave. Perguntou-me se eu podia intervir, com urgência.
Comecei por lembrar-lhe, com algum gozo escondido, que à embaixada não fora pedida a menor diligência sobre questões de segurança. Adiantei que estava em absoluto convicto de que os britânicos, que à época tinham uma experiência ímpar em matéria de terrorismo, por virtude das frequentes ações do IRA, teriam feito uma criteriosa avaliação dos riscos potenciais que Cavaco Silva corria, desenhando o dispositivo adequado para esse nível de risco.
O homem, contudo, não se calava - e não me deixava jantar... Prometi-lhe que ligaria ao "liaison officer" britânico, transmitindo a sua preocupação. Não era suficiente: queria um forte "reforço do dispositivo", com agentes em permanência, durante toda a noite, no andar do hotel onde Cavaco Silva iria dormir. Disse-lhe que faria essa sugestão aos britânicos. "E teremos resposta?", atirou-me, ansioso. "A resposta que vai ter será a chegada, ou não, dos agentes. Por isso, logo verá!"
O chefe da segurança dramatizou: "O senhor doutor parece não entender que o primeiro-ministro Cavaco Silva é, neste momento, o mais importante líder da Europa. É ele quem preside ao Conselho Europeu! Se acaso sofresse um atentado, quem poderia substituí-lo?" Ri-me intimamente.
E foi então que a minha veia irónica não resistiu e, num registo "by the book", me saiu isto: "Se o primeiro-ministro português fosse vítima de um atentado, creio que quem iria presidir ao Conselho Europeu seria o Dr. Fernando Nogueira, na ordem protocolar do governo, não lhe parece?"
Senti, do outro lado da linha, o homem a "trepar pelas paredes". Retorquiu num tom ofendido e, com um "isto não fica assim!", desligou o telefone. Informei o embaixador Vaz Pereira do episódio, o que nos mereceu uns divertidos adjetivos sobre o caráter dos nossos episódicos visitantes, e transmiti ao meu contacto no "Foreign Office" a angústia securitária que atravessava a comitiva cavaquista. E fui jantar, que já se fazia tarde.
Mas não tinha ainda chegado à sobremesa quando recebi nova chamada, agora de uma outra figura, alguém da ala diplomática da comitiva, junto de quem o obcecado chefe da segurança se tinha ido queixar da "impertinência" da minha resposta. Detalhei, com medida paciência, a minha intervenção no assunto, ficando com a sensação de que o meu interlocutor, lá no fundo, entendia bem o que tinha passado. Nunca cheguei a saber se os britânicos tinham ou não "reforçado o dispositivo". A única certeza que o mundo pôde ter foi que Cavaco Silva sobreviveu incólume, depois dessa angustiada noite londrina da sua paranóica segurança.
No dia seguinte, à partida, no aeroporto, ainda me diverti imenso, ao constatar que o tal chefe da segurança, por uma qualquer razão, foi o único membro da comitiva a quem veio a ser feita uma revista pessoal completa e com algum pormenor. Enquanto se descalçava e esvaziava os bolsos, o nosso homem fuzilava-me com a vista, à distância, como se estivesse convencido de que eu fora o culpado desse tratamento discriminatório, aos olhos (que, em alguns casos, me pareceram divertidos) dos seus colegas da delegação. Não, não tive nada a ver com o que lhe aconteceu, mas, posso agora confessar, talvez gostasse de ter tido...
Porque é que conto isto hoje? Porque, há horas, à saída de um espetáculo, pareceu-me vislumbrar o homem. Seria ele? Já pouco importa. Ou melhor, importa: fico a dever-lhe o pretexto para escrevinhar o que acabam de ler.
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