segunda-feira, fevereiro 10, 2025

Fados e guitarristas


No passado sábado, fui ao "Fama de Alfama" ouvir fado, com um grupo de amigos. Foi uma bela noite, com boas vozes e excelente música, numa "casa de fados" muito pouco "típica": é que lá come-se bastante bem, a preços muito confortáveis. Convenhamos que não é normal! Quase protestei! 

A meio do espetáculo, o guitarrista Micael Gomes, que vim a saber ser conhecido como Mike 11 no "hip-hop", que a imagem mostra, executou um magnífico improviso, um "blend" de sonoridades, no meio do qual me pareceu detetar algumas notas de Carlos Paredes. Como sou inseguro nas minhas perceções musicais, mas tendo o raro privilégio de estar sentado em frente da pessoa que, em Portugal, mais sabe dessas coisas, o meu amigo Rui Vieira Nery, vi a minha ideia confirmada.

E lembrei-me então do dia em que conheci Carlos Paredes. 

(Este blogue, em rigor, devia chamar-se "Isto é como as cerejas!"

Foi há precisamente 50 anos, nos primeiros meses de 1975, em casa de Carlos Eurico da Costa, poeta e administrador da empresa de publicidade Ciesa-NCK, onde eu então trabalhava como colaborador externo. 

Paredes ia apresentar sugestões que lhe haviam sido pedidas para a banda sonora de um "spot" televisivo e radiofónico, destinado a mobilizar as pessoas a votarem nas "primeiras eleições livres". A encomenda era do STAPE (Secretariado Técnico para o Assuntos Político-Eleitorais), ali então representado pelo seu diretor, comandante Luís Costa Correia (o Luís, estou certo, deve lembrar-se bem desta cena). 

O compositor e músico chegou, com o ar muito modesto que era o seu, um andar desengonçado, quase a pedir desculpa pela intrusividade da sua presença. Eu sentia-me fascinado pelo ensejo de poder conhecer pessoalmente o autor dos "Verdes Anos". Recordo ter-me sentado, reverencialmente, em frente do guitarrista, quando este começou a apresentar algumas hipóteses que tinha preparado para o fundo musical do anúncio. 

Dedilhou sucessivamente quatro ou cinco temas e, nas pausas entre cada um, dizia coisas como esta: "Não sei o que acharam. Esta parece-me fraquita..." ou "Só me saiu isto..." ou "Se calhar, isto precisa de ser melhor trabalhado!" A mim, cada uma parecia melhor do que a anterior!

Deslumbrado, creio que hesitei até ao fim em dar qualquer opinião sobre as peças, tal a sua qualidade. O Luís Costa Correia e o Carlos Eurico da Costa pareceram-me partilhar "l'embarras du choix", mas lá acabaram por eleger o tema que, durante semanas, viria a fazer parte do quotidiano televisivo e radiofónico de todos os portugueses.

Só voltei cruzar-me com Carlos Paredes quando, em 1993, acompanhado por Luísa Amaro, fez, em Londres, a convite de Mário Soares, no quadro da sua visita de Estado, um memorável concerto para a rainha Isabel II, no Guildhall. No final, a rainha fez questão de o conhecer pessoalmente e - recordo - quis ver as mãos de Paredes. Quando o felicitei, emocionado como estava pela sua magnífica apresentação, Paredes perguntou-me, modesto: "O amigo acha que eu estive bem? É que hoje não estava nos meus dias..."

Duvido que alguém possa ser verdadeiramente português se não gostar da música de Carlos Paredes. E, para quem gosta de Abril, a música de Paredes foi a banda sonora da nossa Revolução.

Ao sair, já bem tarde na noite, do "Fama de Alfama", dei comigo a pensar que Carlos Paredes, se acaso ainda fosse vivo, teria apreciado muito a prestação de Micael Gomes. Seria um outro Portugal a vir ao seu encontro. É que Paredes gostava muito do futuro.

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