quarta-feira, fevereiro 12, 2025

Crabtree


Seria hoje à noite, no University College, em Londres, que deveria ter tido lugar o jantar anual da Crabtree Foundation. Mas não este ano.

Começámos (começaram) 100 anos após a data atribuída à sua morte, em 1854 E Crabtree, nascido em 1754, tinha 100 anos quando morreu. Desde 1954, um grupo de 200 personalidades, democraticamente cooptadas, reune-se, em regra uma vez em cada ano, no University College, em Londres, na quarta-feira mais próxima do "Valentine's day", para ouvir uma de entre elas pronunciar-se, durante uma boa meia hora ou mais, sobre um aspeto da vida, da obra e dos feitos dessa figura única da história polįtico-cultural e sócio-económica britânica que deu pelo nome de Joseph William Crabtree. 

Juntam-se aos membros da Crabtree Foundation mais de uma centena de convidados, rigorosamente selecionados. Por ali está a nata da sociedade britânica, professores universitários, artistas, membros do parlamento, banqueiros da City, diplomatas, militares, advogados, empresários e outros profissionais de relevo. 

O nome do orador seguinte é anunciado no jantar de cada ano, pelo que o indigitado tem suficiente tempo para se documentar com a informação necessária à sua palestra, até porque esta pode vir a ser contraditada (quase sempre é) por outros presentes, nomeadamente por uma figura central da sessão, "The Living Memory and Keeper of the Archives and the Seals", personalidade que vela pela compatibilidade e não contradição entre as "orations" ao longo dos anos. 70 textos sobre a vida e obra de Crabtree é já muito!

Os temas escolhidos para estas intervenções são totalmente livres, desde que revelem estudo aturado, investigação aprofundada e reflexão intelectual adequada, com amor adequado à verdade a que temos direito e à imaginação tida por necessária. Até hoje, foram já publicados três belos volumes (edições "hard cover", com ilustrações) que recolhem as "orations" anuais sobre Crabtree, numa tarefa que incumbe ao "Keeper of the Scholars and the Colllected Orations". 

Note-se que, no jantar, cujos vinhos são selecionados, com elevado critério, pelo "Vinter of the Foundation", o uso de "smoking" para os homens é obrigatório (é admitido, como exceção, o traje escocês), sendo que algum formalismo elegante (e conservador) no traje é também exigido às senhoras. 

Estas começaram a ser admitidas como convidadas a partir de 1995 (foi uma noite de discussão atribulada, lembro-me bem) e, posteriomente (numa decisão também muito contestada, mas hoje já aceite, embora por alguns ainda com visível resignação), as senhoras passaram a poder integrar a Crabtree Foundation como membros plenos, naturalmente dentro do estrito "numerus clausus", que nunca foi abandonado. 

Convidado anteriormente durante dois anos, pela mão do saudoso e grande "scholar" crabtreeano que foi Bartolomeu Cid dos Santos, desde 1992 que tive a felicidade de ser chamado a integrar este distinto cenáculo, para o qual, diga-se, continua a haver listas de espera bem longas. 

Somos muito poucos os estrangeiros que foram até hoje admitidos, pelo que registo com grande honra o facto de já me ter cabido a presidência da Crabtree Foundation, no ano de 2012, responsabilidade que implicou a direção do rígido protocolo do jantar e a livre escolha do orador e do presidente meu sucessor, para ano seguinte. Escolhi uma mulher, o que não foi muito consensual. 

Convém sublinhar que não é só em Londres que a Crabtree Foundation se reúne. Há vários "chapters" distribuídos pelo mundo, de Harare a Glasgow, de Florença a Sidney, entre outras cidades. Em Lisboa estuda-se, desde há vários anos, a possibilidade de ser criado um "chapter", tanto mais que há fundada evidência das relações de Crabtree com o nosso país. Aliás, o espírito de Crabtree é cada vez mais universal, a sua mensagem espalha-se rapidamente à escala global e o passado desta personagem de perfil ímpar tem hoje assegurado um futuro radiante à sua frente. 

Este ano, problemas logísticos insuperáveis impedem que nos reunamos. Não haverá "oration", anunciada antes no jantar dos "Elder and Awful Guardians" -  sete figuras centrais na direção da Foundation, cuja indicação e representatividade democrática, se bem que desconhecida, nunca é contestada. Talvez por isso!

Algum leitor menos atento e menos habilitado é capaz de estar, a esta hora, a perguntar-se: "mas afinal quem foi Crabtree, o que é que essa figura fez de tão relevante que justifique que centenas de pessoas se reunam anualmente para saudar a sua memória?". Vá ao Google, às apps de Inteligência Artificial e será esmagado pela sua própria ignorância. Pode parecer presunçoso responder desta forma, mas apetece-me dizer que, se não sabe, talvez não mereça saber, o que me dispensa de ir muito mais longe. 

Deixo, porém, umas últimas notas. 

Não excluo, em absoluto, que a alguns leitores possa ter chegado, ou vir a chegar, a malévola indicação de que Joseph William Crabtree é afinal uma figura ficcional, com a sua vida inventada exclusivamente pelas "orations" que, ao longo destes 70 anos, foram produzidas a seu respeito (na imagem, deixo a listagem das últimas, por onde se pode avaliar a rara riqueza das temáticas). Eu próprio já ouvi dizer que "Crabtree nunca existiu" e outras barbaridades similares. Neste tempo de verdades alternativas, tudo é possível, até nada!

Outros poderão chegar a suspeitar, imagine-se!, que o retrato a óleo aqui reproduzido, que nos acompanha num cavalete durante os jantares e ao qual faremos a certo passo a reverente saudação, copos erguidos bem ao alto, com toda a sala a ecoar "To the Great Man!", teria, afinal, sido comprado em Portobello ou num mercado de rua similar. Às calúnias responde-se com o silêncio do desprezo. Eu respondo com a orgulhosa fotografia ao lado desse magnífico óleo.

Quem sabe se outros ainda pensarão, na pobre tristeza dos iludidos, que o cajado que, desde há décadas, figura sobre a mesa da presidência do jantar (e cuja guarda cabe ao "Keeper of the Cudgel"), e que se sabe à saciedade ter sido usado por Crabtree na sua histórica travessia dos montes Apeninos, teria sido adquirido, afinal, num qualquer "car boot sale". 

Finalmente, sabemos que chega a dizer-se que a romagem anual ao histórico local que a tradição oral indica como sendo de nascimento de Crabtree, Chipping Sodbury - infelizmente, a doutrina nunca foi pacífica sobre o local onde está a tumba de Crabtree - é apenas um pretexto para uma "cottage pie" e algumas "pints" no The Horseshoe, um pub local. 

O leitor pode acreditar no que quiser. Nós fazemos exatamente o mesmo. Por mim, convertido em definitivo ao espírito de Crabtree, tentarei voltar no próximo ano, como fiz no passado, por diversas vezes, ido de Lisboa, de Nova Iorque, de Viena, de Brasília ou de Paris. 

Por Crabtree, tudo! Até este longo texto cujos leitores, se tiverem conseguido chegar até ao fim, eu saúdo, pela sua paciência.




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