domingo, fevereiro 09, 2025

Sarkozy e Sócrates


Vai ter início em breve, ao que se sabe, o julgamento de José Sócrates, o culminar do famoso "processo Marquês". Em França, Nicolas Sarkozy começou a cumprir pena em casa, com pulseira eletrónica, tendo ainda vários outros processos pendentes. A tragédia tolhe a vida de ambos.

Como embaixador em França, tive o ensejo de testemunhar, por diversas ocasiões, durante mais de dois anos, a boa relação que se tinha criado entre esses dois homens. Passava por ali uma corrente que sempre me pareceu ser de mútua e franca simpatia, talvez porque também houvesse alguma similitude nos respetivos estilos. Ambos assumiam uma atitude fazedora, concretizadora, uma vontade de romper com as peias que, à partida, sempre dificultam a ação política. 

Sarkozy era mais agreste, crispado, com sorrisos que eram quase esgares, mesmo desdenhosos. Sócrates, que tinha um feitio igualmente irascível, assumia nos contactos pessoais uma postura mais aberta e amável para o interlocutor, a qual, contudo, de um momento para o outro, ao que se dizia à menor contrariedade, podia transformá-lo no "animal feroz" que ele publicamente um dia assumiu ter dentro de si. 

Hoje, ao pensar nos dois e nas suas mútuas atribulações com juízes e tribunais, lembrei-me do episódio de um encontro entre ambos, em Paris, que um dia testemunhei.

Estávamos em maio de 2010. Sócrates, como primeiro-ministro, tinha ido à capital francesa para um encontro de trabalho com aquele que era o seu verdadeiro homólogo, o chefe do governo, François Fillon. A embaixada havia preparado cuidadosamente essa reunião, que tinha uma agenda essencialmente bilateral, muito técnica, e só escassamente europeia. Essa seria a dimensão política que Sócrates iria depois tratar pessoalmente com Sarkozy. 

A presidência da República francesa indicou-nos que, ao contrário da reunião com Fillon, que tinha bastante gente dos dois lados, o que se justificava pelo caráter técnico de vários dossiês, na reunião com Sarkozy só poderia haver sete pessoas do lado do visitante. Essa era a regra, como vi depois confirmado em reuniões de Sarkozy com Passos Coelho. 

Como é da prática protocolar, após a chegada ao Eliseu, a delegação portuguesa subiu rapidamente para a "Sala Verde", onde já se encontrava a equipa de Sarkozy. Para trás, para as fotos na escada do palácio, ficaram o próprio Sarkozy e Sócrates, comigo e com o embaixador francês em Lisboa em plano recolhido. No passo nervoso que Sarkozy impunha, subimos a escadaria para o primeiro andar e entrámos na "Sala Verde", onde deveria ter lugar a reunião. Lá dentro, estavam já as delegações.

Sarkozy olhou o ambiente e, claramente, não lhe apeteceu o exercício com toda aquela gente. Saudou as pessoas, atravessou a sala com um seco "Bonjour" e, abrindo a porta para o seu gabinete, que ficava adjacente, convidou Sócrates a entrar e fez a sua escolha: "Tu viens", disse para Jean-David Levitte, seu conselheiro diplomático. E, esquecendo o seu embaixador em Lisboa, disse-me: "Vous aussi, M. l'Ambassadeur". E fechou a porta atrás de si. Na "Sala Verde", entre toda a gente, ficavam dois membros do governo português...

Eu conhecia bem aquele gabinete, o mesmo em que Jacques Chirac recebera várias vezes António Guterres. Mas, dessa vez, Sarkozy queria, claramente, ter um encontro quase a sós com Sócrates. E logo se percebeu porquê. Eu e Levitte seríamos as únicas testemunhas. Conhecia muito bem Levitte, desde os tempos de Chirac até ao período em que ambos tínhamos coincidido em Nova Iorque, como representantes dos nossos países junto da ONU. Éramos amigos.

"Está calor! José, não queres tirar o casaco?", propôs Sarkozy, com Sócrates a aceitar. Nem a mim nem a Levitte passou pela cabeça, por um segundo, fazer o mesmo, embora o calor fosse idêntico para nós. Os diplomatas sabem as regras implícitas destas coisas.

Os mais de três quartos de hora seguintes foram épicos. Sarkozy fez a sua radiografia da União, mas não só. Falou dos líderes que eram colegas de ambos à mesa do Conselho Europeu numa perspetiva crítica que ultrapassou tudo quanto eu achava possível vir a ouvir da boca de um chefe de Estado francês. Mas também analisou, de forma acerada, outros líderes mundiais, integrantes do G7 e alguns do G20. Raros tinham a sua "nota positiva". Um a um foram escalpelizados de forma, quase e muitas vezes, cruel. "Imbecil", "burro", "incompetente" e outros epítetos, com caraterizações físicas de permeio, foram sendo distribuídos pelos primeiros-ministros e figuras cimeiras do mundo. Poucos se salvaram...

José Sócrates não acompanhava o tom de Sarkozy, ainda tentou atenuar uma ou outra crítica, apenas sorrindo com o imparável colorido semântico do presidente francês. Eu, que ali estava de Moleskine em punho, escusei-me intimamente a tomar a menor nota do que era dito. Levitte, como é do seu estilo, mantinha-se seráfico, às vezes com um esgar giocôndico, no que podia ser lido como de sintonia com o chefe. 

Acabada a reunião, atravessámos uma "Sala Verde" de onde as frustradas delegações tinham entretanto saído, com a nossa já instalada nos carros que nos levariam ao aeroporto. Não observei, por isso, a cara dos nossos dois governantes, que Sarkozy deixara especados à porta do gabinete. Nem a do meu colega francês em Lisboa, mas essa era o menos importante: os embaixadores, como ouvi um dia a um que foi meu chefe, são "expendable" - descartáveis, sacrificáveis.

Quando, feitas as despedidas e ditas por Sócrates as rituais palavras à nossa imprensa, no "perron" do Eliseu, ele e eu entrámos no carro, exclamou: "Viste aquilo? O homem é intravável!" E riu-se imenso. Eu, burocrático, rindo também, limitei-me a dizer: "Optei por não tomar notas dos 'retratos" que Sarkozy fez. Seria uma imensa bronca se algum dia aquilo se viesse a saber!" Com Sócrates a concluir: "Fizeste bem. Aliás, dificilmente alguém acreditaria..." 

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