Vinha meio adormecido no banco de trás do Uber, de regresso a casa, ao final da tarde de ontem, depois de um dia intenso, com um sismo pelo meio. A voz que saía, límpida, da aparelhagem do Tesla, era-me familiar. O motorista, cuidadoso, talvez tendo notado o meu cansaço, tinha posto o som baixo.
Perguntei-lhe: "Quem está a cantar?" Pelo retrovisor vi surgir-lhe um sorriso, ao dizer: "Es la Negra". O sorriso aumentou de expressão quando retorqui: "Mercedes Sosa?" O homem quase ia largando o volante, ao perguntar: "Conoce usted a Mercedes Sosa?"
Era um chileno e devo ter subido logo uns pontos na sua consideração quando lhe disse: "Eu vi cantar Mercedes Sosa, "la Negra", há bem mais de trinta anos. Mas não me lembrava dessa canção".
Entretanto, com um pouco de conversa à mistura, cheguei a casa, com o motorista a despedir-se, visivelmente encantado por se ter cruzado com alguém que conhecia e gostava de "La Negra".
Lembrei-me então do "meu" Chile.
O golpe militar que derrubou o governo de Allende, no Chile, em 11 de setembro de 1973, teve um forte impacto emocional na geração política portuguesa que, por cá, expressava então a sua revolta contra a ditadura. À época, eu fazia serviço militar e recordo bem acesas discussões por ali tidas com colegas conservadores, que se regozijaram com o êxito de Pinochet e dos seus esbirros. Acreditam se lhes disser que um deles me telefonou na manhã de ontem?
O 25 de Abril como que nos vingou e foi com um sentimento de forte solidariedade que, em Lisboa, a partir de 1974, viemos a conhecer alguns chilenos que haviam sido forçados ao exílio. Com eles, partilhámos o sucesso da nossa Revolução. Recordo-me de gente do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria), com quem passei horas à conversa nas instalações do MES (Movimento de Esquerda Socialista), na avenida dom Carlos.
Seis anos mais tarde, no meu primeiro posto no estrangeiro, na Noruega, vim a cruzar outros chilenos, expatriados nas mesmas condições. Os países nórdicos acolhiam então com generosidade essas pessoas, a quem facilitavam meios para a sua sustentação. A vida dessa gente era muito simples: empregos em fábricas ou serviços, habitações sem o menor luxo e, como pano de fundo de tudo isso, um ambiente de imensa saudade do seu país.
Um dia, em Oslo, fomos assistir a um espetáculo musical da argentina Mercedes Sosa, conhecida por "La Negra", uma cantora que, ao longo da vida, seria uma das vozes mais críticas das ditaduras militares latino-americanas. O seu "Gracias a la vida" marcava-nos então bastante.
Fui ao espetáculo num grupo de diplomatas, que, além de espanhóis e de um brasileiro, integrava um chileno, casado com uma paraguaia, e um casal colombiano. As questões políticas não atravessavam, por regra e por prudência, a conversa de todas aquelas pessoas, jovens profissionais da diplomacia, todos no seu primeiro posto no exterior, que se iam encontrando em agradáveis convívios ao final do dia de trabalho.
Lembro-me que, à época, eu era, com toda a certeza, a pessoa mais à esquerda de todo aquele grupo, sendo que o chileno, que se chamava Enrique, representava ali o governo de Pinochet. Curiosamente, ambos ficámos amigos para a vida, sem termos tocado alguma vez em temas que pudessem trazer à tona as nossas óbvias divergências. Nas décadas profissionais que se seguiram, vim a apurar esta forma de estar na vida. Ainda hoje tento funcionar assim.
No final do espetáculo, vi os meus amigos latino-americanos a falarem com outras pessoas com a mesma origem geográfica, que ali tinham acabado de conhecer, todos unidos pela voz e pela música de "La Negra". Com o meu "portuñol", meti-me na conversa. E, numa dessas sintonias caídas do acaso, vi-me a trocar impressões com um chileno, que, no passo da conversa, me referiu ser um exilado.
Era um homem magro, alto, de cabelo comprido, com maneiras suaves. O nome de Allende veio com naturalidade à baila, e ele revelou-me ser irmão da mítica "Payita", secretária de Salvador Allende. Num instante, alguma sintonia ideológica se estabeleceu entre nós. Trocámos telefones e, dias depois, o Fermin, era esse o nome do meu novo amigo chileno, convidou-me, a mim e à minha mulher, para uma almoço simples, num domingo, em sua casa.
Vivia num modesto apartamento, numa zona menos nobre de Oslo, a que se acedia por uma escada esconsa. Lembro-me bem do aviso que me fez, logo que entrei na casa: "Daqui a pouco, vai chegar, para o almoço, o Enrique, o teu colega da embaixada do Chile. Não te espantes!" Eu espantei-me um pouco, confesso, mas ele logo explicou: "Ele é um chileno como eu e nem imaginas como me fará bem conversar com alguém que também vem do meu país. Temos de adiar a conversa política entre nós os dois para "unas copas", numa outra ocasião".
E assim aconteceu. Minutos depois, chegaram o Enrique e a Monse. A política, quiçá estranhamente, não passou por aquelas horas em que a saudade dos dois foi atenuada por algumas garrafas de "Casillero del Diablo", um vinho assim-assim trazido pelo Enrique, o único álcool chileno que havia à venda no monopólio estatal de venda de bebidas alcoólicas, Vinmonipolet.
Se hoje tenho uma invejável colecção dos "Rolling Stones", em vinil, devo isso ao Fermin, um amigo magnífico, um revolucionário romântico, cujo partido esqueci, que trabalhava numa fábrica de discos e insistia em me municiar regularmente com exemplares do que ia saindo. Até rock norueguês tenho! Em algumas noites em minha casa, para as quais cuidávamos em não juntar à festa o diplomata chileno, para podermos conversar sobre as nossas afinidades políticas, ouvimos deliciados Violeta Parra e Victor Jara. E, para sempre, guardei a imagem de vê-lo chorar a escutar Zeca Afonso...
Pela vida, com grande pena minha, fui perdendo contacto com imensas pessoas que conheci. Uma delas foi esse meu amigo chileno Fermin, que conheci na Noruega, no final de um concerto de Mercedes Sosa, cuja voz acabei de ouvir, há pouco, num Uber conduzido por um chileno a quem nem sequer tive tempo de perguntar o que pensava do atual presidente Boric. Nem de Allende, claro. Se calhar, foi melhor assim!
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