Sou produto de duas práticas familiares.
Tenho na minha memória que o ramo da minha família paterna, de Viana do Castelo, cultivava uma leitura meramente utilitária da mesa. Em casa da minha avó (o meu avô tinha morrido há muito, em 1925), ia-se para a mesa exclusivamente para comer e saía-se dela logo que a refeição estivesse concluída. A conversa era, naqueles minutos, um pano de fundo meramente acessório à função. Imagino que, com o irrequietismo de criança, esse regime me devia agradar bastante: nunca vi um miúdo ter gosto em ficar muito tempo à mesa.
Em casa dos meus avós paternos, o registo era precisamente o oposto. A mesa era o lugar para comer, mas também para ir conversando. O meu avô, figura patriarcal que deixou a sua carreira judicial para poder viver próximo da família, em Trás-os-Montes, era adepto da boa conversa pós-pandrial, com o café, parentes e amigos. Lembro-me muito de belas noites de verão na Casa do Pereiro, em Bornes, em que familiares vizinhos iam chegando e se juntavam a quem já estava à mesa. E de outros serões, no inverno, em Vila Real, juntando os filhos à conversa, à mesa de jantar, muito depois deste, com queijo, salpicão, bola de carne e outras vitualhas a adubarem o prolongamento do convívio, com um chá no fim.
O meu pai, tributário da primeira cultura, creio que sobrevivia com algum esforço à segunda. E como, durante bastantes anos, eu e os meus pais vivemos com os meus avós maternos na mesma casa, imagino que ele tivesse de fazer um sacrifício para se adaptar ao ritmo ditado pelo sogro, com o qual, aliás, tinha uma relação excelente.
Na leitura familiar, vinda de Viana e que a minha mãe partilhava, o meu pai sofria do "nervoso dos Costas", uma espécie de impaciência endémica que a tradição diz caraterizar-nos, uma agitação que, o mais das vezes, nos leva a uma exagerada intolerância ao convívio com figuras que se revelem menos interessantes, um diplomático eufemismo para chatos.
Reconheço que herdei esse último tropismo, mas sou também fruto da escola da conversa à mesa. Estou, assim, no meio das duas tradições familiares. Gosto de ficar à mesa quando a conversa me agrada, estou "em pulgas" para dali zarpar em outras circunstâncias.
Por que razão falo disto agora? Porque, na noite de ontem, com um casal amigo, estivemos à conversa, à mesa de um restaurante, durante nada menos do que quatro horas. Isso mesmo! E só fomos andando quando percebemos que, nas mesas ao lado, já tinha havido dois turnos de serviço e os empregados começavam a olhar-nos de viés.
À saída, pensei no meu pai e na expressão que ele sempre me atirava à cara quando me via perder horas em restaurantes, andar quilómetros para fazer uma experiência gastronómica, gastar dinheiro que talvez me fizesse falta para outras coisas em lautas refeições com amigos: "Isso é uma inferioridade".
Levava sempre essa risonha crítica à conta de ele ser um pisco a comer e um pouco forreta com os gastos. Na noite de ontem, dei comigo a imaginar o que ele teria pensado das horas que gastei a alimentar a conversa e o corpo. E tive muita pena por já não lhe poder ouvir o remoque.
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