quinta-feira, abril 04, 2019

A China que aí chega


A China foi sempre um parceiro incomum na cena internacional. Por muito tempo, o maior país do mundo projetou uma imagem à qual vinham associadas algumas peculiaridades culturais que, manifestamente, se tornavam de difícil leitura na esfera ocidental. Os “sinólogos” prosperavam nessa exegese nunca unívoca, com o gigantismo do país e o desconhecimento das suas várias realidades internas a tornarem difícil uma qualquer previsão de atitudes do lado de Pequim. A China era um mistério mas, por muito tempo, não era vista como uma ameaça, não obstante a premonição atribuída a Napoleão: “quando a China acordar, o mundo tremerá”.

Com escassas exceções na sua história contemporânea, a China não revelou um pendor de agressividade militar externa, muito embora a sua atitude perante a vizinhança geopolítica tenha sido sempre caraterizada por uma marca de inflexibilidade. Uma diferente gestão histórica do tempo, que não é um mito mas uma evidência, contribuiu para adensar o mistério sobre os desígnios estratégicos de Pequim, sendo visivelmente neste registo que se enquadra a sua relação com Taipé.

Os EUA tentaram cavalgar o conflito sino-soviético promovendo a cooptação de Pequim para a primeira linha da cena internacional. O “realismo” de Kissinger mudou a realidade internacional mas, curiosamente, acabada a Guerra Fria e consagrada a humilhação de Moscovo, não se viu a China, por quase três décadas, exagerar na afirmação do seu papel como ator político global. 

O que se viu foi o seu interesse em explorar um intenso bilateralismo com determinadas áreas, mais visivelmente em África mas igualmente noutras zonas do mundo, como a Europa, tendo a economia como base determinante. O acesso da China à OMC, que hoje alguns se arrependem de ter facilitado, ajudou muito. O crescimento e o bem-estar tinham passado a estar no posto de comando de um modelo político que, bizarramente, combina o rigor centralista do socialismo com os genes do capitalismo. Uma fragilidade continua, no entanto, evidente: a demanda energética, que obriga a China a desenhar um padrão de relações externas muito heterogéneo.

A China é hoje um indiscutível gigante tecnológico, depois de anos de caricatura como produtor de quinquilharias baratas. É um poder adversarial – político, económico, militar? Para os EUA, isso é uma evidência. A Europa, neste domínio, vive ainda um momento esquizofrénico: olha com apetite aquele que é o seu principal mercado, mas começa a acordar para o desafio estratégico que vê chegar.

(Artigo ontem publicado no “Jornal de Notícias”)

1 comentário:

António disse...

Suponho que o meu comentário anterior é inconveniente. Regras da casa, que aceito e respeito. Este é mais inconveniente.
Estive a ver parte dum documentário sobre a China, sobre o sistema CCTV com reconhecimento facial que está a ser implementado. Tem tanto de fascinante como de aterrador. Nos monitores da sala de controlo duma praça, cada pessoa aparece enquadrada a vermelho, com um tag com o nome, idade, sexo, profissão - estava em mandarim, mas acredito no jornalista. Os computadores seguem todas as pessoas em simultâneo. Os automóveis são enquadrados a azul, também com um tag com a matrícula, e informações sobre o proprietário. A polícia está a ser equipada com óculos de realidade aumentada, que apresentam ao agente da autoridade informação relevante sobre as pessoas com quem se cruza. As bases de dados são muitíssimo detalhadas.
Quem atravessa a rua fora da passadeira de peões é reconhecido pelo sistema e recebe uma multa em casa. A sua foto e nome são expostos num cartaz digital onde vão passando as caras de quem infringiu a lei.
Uma estudante estrangeira que entrou num wc público não autorizado a estrangeiros não teve direito a papel higiénico, porque não consta da base de dados. Um homem de raça negra não teve direito a sabonete líquido no wc porque o dispensador unidose não reconheceu a cor da pele.
E é claro, há o sistema de pontos sociais, que mede constantemente onde se vai, com quem se fala, o que se compra, o que se lê, etc. No limite, se o cidadão se desviar muito das orientações do partido perde benefícios ou emprego.
Há a questão tibetana, claro.
Eu diria que mais tarde ou mais cedo outros países implementarão sistemas semelhantes, que são cada vez mais baratos.
O caro embaixador decidirá se o que escrevi é inconveniente. É real. É assustador. E devia ser debatido.

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