Há dias, num jantar de amigos, veio à baila a eterna questão: por que diabo o cemitério de Campo de Ourique se chama "dos Prazeres"? Ninguém fazia a mais pequena ideia e, para "desempatar", lembrei-me de ligar a alguém que, no que toca à cidade de Lisboa, sabe sempre tudo: o José Sarmento de Matos. O Zé, num segundo, explicou-nos que o cemitério sobranceiro ao vale de Alcântara tem esse nome porque aí havia uma quinta no meio da qual se erguia uma ermida a Nossa Senhora dos Prazeres.
O cemitério dos Prazeres está ligado à minha memória de infância. Na minha família lisboeta, após a morte de um primo muito jovem, os pais, que lhe haviam erguido um jazigo nos Prazeres, tinham-se mudado propositadamente para uma casa quase em frente ao cemitério, de onde diariamente - e não estou a exagerar - iam visitar o lugar onde estava o depositado o filho. Estão hoje por lá todos.
Poucos meses depois de ter vindo viver para Lisboa, voltei ao Prazeres. Era uma romagem por ocasião do funeral de António Sérgio. Estavamos no início de 1969, um ano que ia ser muito importante na vida política em Portugal, em que a "abertura" que a chegada ao poder de Marcelo Caetano tinha prenunciado revelaria toda a sua falsidade.
O funeral de António Sérgio, um intelectual e pedagogo humanista, cuja presença no eixo da oposição não comunista fora marcante por muitas décadas (Sérgio foi ministro na I República e tinha sido uma figura central da "Seara Nova"), redundou num ato público de expressão política democrática. Para mim, seria uma espécie de "batismo de fogo" da agitação política lisboeta. Recordo algumas correrias pela rua Saraiva de Carvalho, com a polícia à perna, e de uma imensa bandeira nacional nas mãos de uma figura esguia de homem, que voltaria a encontrar em outras cerimónias republicanas subsequentes.
Eu não conhecia então a cara de muita gente nas hostes da oposição, figuras a que a imprensa dava escasso destaque, "estimulada" pela censura. Nesse dia 25 de janeiro de 1969, notava-se que no centro da manifestação - que, de momentos de silêncio tenso, passou subitamente a palavras de ordem anti-regime, com o hino nacional à mistura, a anteceder o brutal ataque da polícia - havia um núcleo de pessoas que me parecia dominar a cena. Os amigos que comigo iam ajudaram-me a nele identificar algumas figuras. Creio que foi aí que vi, pela primeira vez, Mário Soares, regressado escassos meses antes da sua deportação em S. Tomé. Ao seu lado, ficou-me a imagem de uma mulher ainda jovem, de cabeça bem erguida, com ar determinado, num corpo pequeno: era Maria Barroso.
46 anos depois, vamos acompanhar Maria Barroso aos Prazeres. Graças a ela, a Mário Soares e a muitos outros que lutaram pela democracia de que usufruímos, fá-lo-emos hoje em plena liberdade. Já não haverá por lá polícia que nos impeça de saudar a memória dos mortos que queremos honrar. Também por isso, os portugueses não a esquecerão.
5 comentários:
triste país que tem os prazeres num cemitério e os negócios estrangeiros nas necessidades.
Também estive, com um amigo, no Cemitério dos Prazeres aquando do funeral de António Sérgio. Não corri pela Saraiva de Carvalho porque morava então na própria Parada dos Prazeres, hoje Praça São João Bosco, e fui para casa.
Quanto à figura esguia que ostentava a bandeira nacional em várias ocasiões (manifestações junto à estátua de António José de Almeida, por exemplo)não sei o nome dele. Mas sei que era vendedor de jornais com banca montada na Rua da Prata, mesmo na esquina com a Rua do Comércio.
José Neto
A propósito, Senhor Embaixador, qual será a razão do palácio onde está o MNE se chamar Palácio das Necessidades?
José Neto
Mas temos um meio de transporte que ajuda a ir da graça ( não de graça) aos prazeres...e volta. Aliás, ir dos prazeres à graça talvez seja ainda melhor. Este trajecto deveria ser de utilidade pública - e privada.
O anónimo das 12.16m é uma das razões pela qual eu mantenho a esperança neste Jardim à beira-mar plantado = 0 nosso sentido de humor é muito, muito forte . Valha-nos isso e a Senhora dos Prazers, que quanto à das Necessidades ... estamos conversados .
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