“Tenho de falar à Leah!”. A frase de Maria Barroso ecoou de
forma estranha, naquela sala da “guest house” que a Autoridade Palestiniana
colocara à disposição do casal presidencial português, na noite de 4 de outubro
de 1995. Quer Mário Soares quer eu próprio fomos surpreendidos pelo insólito
daquele propósito. A quarta pessoa presente estava, desde há minutos, sem expressão,
como que em estado de choque. Era Yasser Arafat.
“Ó Maria de Jesus! Como é quer tu vais ligar agora à Leah?!”.
Leah Rabin era a mulher de Yitzhak Rabin. Mais precisamente, a viúva. O
primeiro-ministro israelita, em cuja residência, em Jerusalém, não muitas horas
antes, tínhamos almoçado, acabara de ser assassinado a tiro num comício em
Tel-Aviv.
Mário Soares estava na sua última visita oficial ao
estrangeiro, como presidente da República, no termo do seu segundo mandato. Eu
era, desde há cerca de uma semana, secretário de Estado do novo governo
português e substituía, na viagem, o ministro dos Negócios estrangeiros, Jaime
Gama. Depois de três dias em Israel, visitávamos oficialmente Gaza. A amizade antiga
de Soares com Rabin e Arafat, que ungia a esperança de um acordo de paz que, à
época, pareceu possível, era o cenário de fundo daquela dupla visita, muito prestigiante
para um país “honest broker” no processo, como Portugal era então visto.
“O que é que o governo aconselha que se faça? Suspendemos a
visita?”. A pergunta de Mário Soares era-me dirigida. Eu era “o governo”! Não
havia telemóveis com rede, estávamos desesperadamente a tentar contactar, via
satélite, António Guterres, o primeiro-ministro, através de um telefone
militar. Gaza não tinha aeroporto. O Falcon oficial ficara em Jerusalém, em
Israel, país fechado e em estado de sítio, depois do assassinato do seu
primeiro-ministro. Aqui entre nós, eu sabia lá o que se deveria fazer! O
bom-senso aconselhava, naturalmente, a que a visita fosse cancelada. Mas era muito
difícil sair dali.
“Como é que eu poderei falar com a Leah?”. Era outra vez a
voz de Maria Barroso, que, nos últimos dias, tinha reforçado a sua relação pessoal
com a mulher do primeiro-ministro israelita, que se fazia ouvir. “Ó Maria de
Jesus! Isso vê-se depois!”, respondeu, já sem paciência, Soares.
Maria de Jesus Barroso Soares não conseguiria, nessa noite,
o seu propósito de falar com Leah Rabin, como o seu coração recomendava. Fá-lo-ia,
num abraço emocionado, dois dias depois, no funeral. Nunca esqueci a sua atitude,
em que a sinceridade da emoção se tentou, sem êxito, sobrepor à nossa preocupada
razão.
3 comentários:
Bela evocação, que ilustra com precisão o caráter excepcional dessa maravilhosa Senhora!
Que belo e sensível texto! Pôs-me em contato com a política e a alma portuguesa. Obrigada.
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~ Pequena, apenas fisicamente...
~ ~ ~ Uma grande Mulher!
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~ ~ Grata pela partilha.
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