Há dias, Jaime Gama, numa das suas charlas na net com Jaime Nogueira Pinto, disse que está a ser preparada uma edição das cartas de Albino dos Reis a Salazar. É uma excelente notícia! Há muitos anos, o José Stichini Vilela havia-me falado dessas cartas e do interesse da família em as editar. Perguntou-me mesmo se eu seria "candidato" à tarefa. Disse-lhe logo que não, porque tenho por muito claro o meu "princípio de Peter" em matéria histórica. Agora, as cartas parecem estar em muito boas mãos, como confirmou Gama.
Como já tenho escrito por aqui, entendo da maior importância a recolha de tudo quanto possa clarificar as redes pessoais durante o Estado Novo, para se entenderem melhor as motivações de certas decisões e o ambiente que marcou determinados períodos. Nas democracias, a abertura dos agentes políticos e o acompanhamento mediático que a liberdade permite tornam o escrutínio mais fácil e objetivo. Já nas ditaduras, o hermetismo do processo político e a construção propagandística e artificial da mensagem publicitada levam, com grande frequência, a que se cristalizem visões distorcidas. Por essa razão, nesse contexto, as memórias e a epistolografia são um auxiliar precioso para romper com a opacidade do processo histórico.
Albino dos Reis foi uma figura curiosa na constelação de personalidades do Estado Novo. Líder local durante a Primeira República, onde foi deputado em setores conservadores ligados a Cunha Leal, foi Bissaya Barrteto quem o aproximou de Salazar. Este passou a tê-lo como um confidente que era ouvido sobre o pessoal político a escolher, numa linha de utilidade comparável a Supico Pinto, Mário de Figueiredo ou Soares da Fonseca. Integrava assim um núcleo de personalidades de ambição limitada e fidelidade ilimitada, categoria política muito do agrado do ditador.
A lista nacional de deputados posta a votos após a promulgação da Constituição de 1933 tem Albino dos Reis à cabeça. Alguma aura liberal que sempre o acompanhou, a que se somava um forte rumor da ligação à Maçonaria, não o impediu de ser ministro do Interior num período de feroz repressão, precisamente por altura da criação da Polícia de Defesa Política e Social, antecessora de todas as polícias políticas repressivas que entre nós se sucederam. Desempenharia ainda o cargo de presidente do Supremo Tribunal Administrativo e, mais tarde, da Assembleia Nacional, sendo substituído em 1961 por Mário de Figueiredo, numa disputa que significou uma vitória da ala mais conservadora do regime.
Das figuras mais próximas de Salazar, Albino dos Reis é talvez aquela que fez uma transição mais suave para Marcelo Caetano. Caetano emerge como novo chefe do governo, designado pelo presidente da República, na sequência de um Conselho de Estado em que Albino dos Reis defendeu a substituição imediata do ditador doente, sendo conhecida a sua preferência pela solução adoptada. Segundo José Silva Pinto, num artigo que li algures, deve-se a Albino dos Reis a indicação de Melo e Castro para presidente da Comissão Política da União Nacional, gesto que não é de somenos, atento o "abanão" que esta figura provocou nas escolhas mais polémicas de Caetano, até ser afastado.
Conto agora uma pequena história pessoal.
Numa tarde de 1970, na sala de estar do Hotel Suíço-Atlântico, junto ao Palácio Foz, fui levado por um tio, que era deputado da União Nacional (aliás, não havia deputados de outros "partidos"...) na recém-eleita primeira Assembleia Nacional da era Marcelo Caetano, para junto de um grupo de deputados, instalados naquele hotel. Entre todos preponderava, com evidência, Albino dos Reis, do alto dos seus então 82 anos. Recordo duas outras figuras no grupo: Camilo de Mendonça, um "marcelista" notório que havia sido o primeiro presidente da RTP, que me parecia apenas de visita ao hotel, e um loquaz deputado de Aveiro, Homem Ferreira, que me pareceu ser um discípulo de Albino dos Reis.
A minha cooptação pontual para a conversa (não me recordo de ter dito rigorosamente nada) era um tanto estranha. Eu tinha 22 anos e devia ter ido visitar o meu tio. No outono do ano anterior, havia colaborado ativa e publicamente na campanha da oposição democrática em Vila Real, onde o meu tio fora cabeça de lista da União Nacional (a Ação Nacional Popular só nasceria mais tarde). Por essa altura, fizera já parte de uma lista associativa universitária cuja "homologação" fora recusada pelo governo. Porém, esse meu familiar e grande amigo, embora opositor político, tinha a plena certeza de que podia confiar na minha discrição e, pelo que também vim a constatar, na minha (falta de) memória. É que se me recordo muito nitidamente que Albino dos Reis, durante aquela hora, contou algumas histórias passadas com Salazar, que mobilizaram a atenção de todos, a verdade é que não fixei um único desses episódios: ou porque fossem anódinos ou porque a minha curiosidade estava centrada mais na coreografia do momento do que no "script" da conversa.
Chamo finalmente a atenção para a foto que aqui deixo. Ela tem um pormenor interessante. Foi tirada em 3 de outubro de 1969, 23 dias antes das "eleições legislativas" para a Assembleia Nacional, num contexto que desconheço. À direita está Albino dos Reis e, ao seu lado, surge António Ferreira Gomes, o bispo do Porto a quem Salazar (que, à época, ainda estava vivo) proibira, a partir de 1958, a entrada no país e a quem Caetano autorizara o regresso em julho desse ano. Ambos brindam a alguma coisa. A que seria?
Como já tenho escrito por aqui, entendo da maior importância a recolha de tudo quanto possa clarificar as redes pessoais durante o Estado Novo, para se entenderem melhor as motivações de certas decisões e o ambiente que marcou determinados períodos. Nas democracias, a abertura dos agentes políticos e o acompanhamento mediático que a liberdade permite tornam o escrutínio mais fácil e objetivo. Já nas ditaduras, o hermetismo do processo político e a construção propagandística e artificial da mensagem publicitada levam, com grande frequência, a que se cristalizem visões distorcidas. Por essa razão, nesse contexto, as memórias e a epistolografia são um auxiliar precioso para romper com a opacidade do processo histórico.
Albino dos Reis foi uma figura curiosa na constelação de personalidades do Estado Novo. Líder local durante a Primeira República, onde foi deputado em setores conservadores ligados a Cunha Leal, foi Bissaya Barrteto quem o aproximou de Salazar. Este passou a tê-lo como um confidente que era ouvido sobre o pessoal político a escolher, numa linha de utilidade comparável a Supico Pinto, Mário de Figueiredo ou Soares da Fonseca. Integrava assim um núcleo de personalidades de ambição limitada e fidelidade ilimitada, categoria política muito do agrado do ditador.
A lista nacional de deputados posta a votos após a promulgação da Constituição de 1933 tem Albino dos Reis à cabeça. Alguma aura liberal que sempre o acompanhou, a que se somava um forte rumor da ligação à Maçonaria, não o impediu de ser ministro do Interior num período de feroz repressão, precisamente por altura da criação da Polícia de Defesa Política e Social, antecessora de todas as polícias políticas repressivas que entre nós se sucederam. Desempenharia ainda o cargo de presidente do Supremo Tribunal Administrativo e, mais tarde, da Assembleia Nacional, sendo substituído em 1961 por Mário de Figueiredo, numa disputa que significou uma vitória da ala mais conservadora do regime.
Das figuras mais próximas de Salazar, Albino dos Reis é talvez aquela que fez uma transição mais suave para Marcelo Caetano. Caetano emerge como novo chefe do governo, designado pelo presidente da República, na sequência de um Conselho de Estado em que Albino dos Reis defendeu a substituição imediata do ditador doente, sendo conhecida a sua preferência pela solução adoptada. Segundo José Silva Pinto, num artigo que li algures, deve-se a Albino dos Reis a indicação de Melo e Castro para presidente da Comissão Política da União Nacional, gesto que não é de somenos, atento o "abanão" que esta figura provocou nas escolhas mais polémicas de Caetano, até ser afastado.
Conto agora uma pequena história pessoal.
Numa tarde de 1970, na sala de estar do Hotel Suíço-Atlântico, junto ao Palácio Foz, fui levado por um tio, que era deputado da União Nacional (aliás, não havia deputados de outros "partidos"...) na recém-eleita primeira Assembleia Nacional da era Marcelo Caetano, para junto de um grupo de deputados, instalados naquele hotel. Entre todos preponderava, com evidência, Albino dos Reis, do alto dos seus então 82 anos. Recordo duas outras figuras no grupo: Camilo de Mendonça, um "marcelista" notório que havia sido o primeiro presidente da RTP, que me parecia apenas de visita ao hotel, e um loquaz deputado de Aveiro, Homem Ferreira, que me pareceu ser um discípulo de Albino dos Reis.
A minha cooptação pontual para a conversa (não me recordo de ter dito rigorosamente nada) era um tanto estranha. Eu tinha 22 anos e devia ter ido visitar o meu tio. No outono do ano anterior, havia colaborado ativa e publicamente na campanha da oposição democrática em Vila Real, onde o meu tio fora cabeça de lista da União Nacional (a Ação Nacional Popular só nasceria mais tarde). Por essa altura, fizera já parte de uma lista associativa universitária cuja "homologação" fora recusada pelo governo. Porém, esse meu familiar e grande amigo, embora opositor político, tinha a plena certeza de que podia confiar na minha discrição e, pelo que também vim a constatar, na minha (falta de) memória. É que se me recordo muito nitidamente que Albino dos Reis, durante aquela hora, contou algumas histórias passadas com Salazar, que mobilizaram a atenção de todos, a verdade é que não fixei um único desses episódios: ou porque fossem anódinos ou porque a minha curiosidade estava centrada mais na coreografia do momento do que no "script" da conversa.
Chamo finalmente a atenção para a foto que aqui deixo. Ela tem um pormenor interessante. Foi tirada em 3 de outubro de 1969, 23 dias antes das "eleições legislativas" para a Assembleia Nacional, num contexto que desconheço. À direita está Albino dos Reis e, ao seu lado, surge António Ferreira Gomes, o bispo do Porto a quem Salazar (que, à época, ainda estava vivo) proibira, a partir de 1958, a entrada no país e a quem Caetano autorizara o regresso em julho desse ano. Ambos brindam a alguma coisa. A que seria?
10 comentários:
Provavelmente à amizade.
Gostei da sua caracterização do núcleo de confidentes de Salazar em que inclui o Dr. Soares da Fonseca, personagem que tenho estado a estudar no âmbito de um livro em preparação sobre a antiga Companhia Colonial de Navegação (CCN), da qual ele foi o segundo presidente do C.A., de 1957 a 1969. A ideia da ambição limitada e fidelidade ilimitada explica muita coisa na vida da Colonial durante o seu consulado e alimenta a "fé" nas causas... Para se fazer carreira profissional dentro da CCN era também uma boa formula.
Interessante como a 2ª Republica, ainda provoca complexos de inferioridade.
Salazar! nunca é demais umas linhas diárias sobre o Homem.
É um bálsamo, ler qualquer umas linhas, mesmo as mais negativas.
Caro Anónimo das 17.36. Comigo pode "contar" sempre! Nunca esquecerei o Botas...
... tá-se mesmo a ver!
Sinistros...Credo sr. Embaixador melhor uma foto modo férias... Mas pronto
Uma correção mínima: não foi Albino dos Reis que substituiu Mário de Figueiredo na presidência da então Assembleia Nacional mas ao contrário, Figueiredo substituiu dos Reis em 1961.
Pela 2ª vez faz referência ao Hotel Suiço Atlântico; a primeira foi a descrição do programa familiar do 24 Abril 74, em que fomos com os respetivos Pais à feira de antiguidades na FIL, com saída do Hotel. E agora a tertúlia com o dr. Albino dos Reis. É bom saber que tem boas recordações da casa que foi da minha Família durante 3 gerações. Vou acompanhando as suas notícias pelo blog, claro.
Permita-me, meio ano depois desta publicação, poder responder à pergunta final desta V/ nota.
Foi a figura do título desta nota que me trouxe até aqui e ao lê-la, melhor passei a compreender a personalidade de Albino dos Reis.
Em 1º lugar um breve reparo. A foto tem a data de 3 de Setembro de 1969 e encontra-se com outras da mesma data publicada num livro “Memórias de uma vida ao serviço da igreja católica” de Bartolomeu Rego editado em oliveira de azeméis em 2010.
Escrito, por um sobrinho, traz à memória o pároco por muitos anos em Ul- oliveira de azemeis- padre António Maria Domingues da Fonseca, que neste momento procuro conhecer mais um pouco da sua obra.
De facto está relacionada e muito com as duas figuras da fotografia. Com o bispo do Porto porque foi quem o ordenou e manteve uma amizade sólida e duradoura que agora melhor estou a compreender. Acresce que esse padre também esteve a paroquiar em Novelas-Penafiel e relacionou-se com o pai do Bispo, tão de perto que nessa mesma data, e já então falecido, veio na alocução desse almoço, a afirmar como “2º pai”.
E também naquele tempo foi quem organizou um solene pontifical em Penafiel quando o Bispo natural de lá, foi nomeado para PORTALEGRE-Castelo Branco
Esse almoço convívio, realizado em Ul, em casa de um casal bem conceituado e amigo desse padre, Manuel Ferreira Pinto, foi feito a convite do padre ao bispo para festejar o regresso ao país que tinha ocorrido tempos antes em18.6.69, já com Salazar doente e Marcelo no Governo, tal a amizade que os unia e conta que foi a Fátima convidá-lo.
Quando o bispo indicou o dia o padre convidou para além doutras figuras que constam noutra fotografia, também o Conselheiro Albino dos Reis, que era natural de lá e com uma diferença de idades de 16 anos. E também arranjou a casa para o receber “condignamente”.
Nesse livro que tenho em mãos, foi a ele a quem o padre “implorou” que intercedesse para trazer de volta o Bispo, com quem se encontrava em Espanha, um dos três países de exílio.
Nesse discurso tece rasgados elogios ao Conselheiro e ao Bispo e no final fazem esse brinde da foto pelo fim do exílio do Bispo.
O Conselheiro pelo que estou a apurar era a ligação privilegiada do padre na ligação ao Ministro das Obras Públicas para obter subsídios para obras por todas as paróquias por onde passou. Isto sem desmerecer claro as suas valiosas qualidades. Mas isso não vem agora para o caso…
Com as informações obtidas no livro citado e outras de testemunhos, é bem provável que o Bispo não soubesse da presença como convidado do sr Conselheiro.
Mas isto dos relacionamentos não podemos ter grandes certezas…
Como ponto final cerca de um ano depois em 18 junho 1970, o Bispo do Porto foi de novo a Ul para uma homenagem maior, pelo seu regresso à diocese e o convidado maior continuou a ser Albino dos Reis.
Desculpe-me e obrigado
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