Alguém, de uma geração bem mais nova, comentava comigo numa conversa o texto que anteontem aqui publiquei, sobre uma pequena e inocente "aventura" num 1º de maio. Para se mostrar surpreendido com a violência e o arbítrio da repressão política nesse tempo da ditadura, agora que está na moda absolvê-la dos crimes e interpretá-la como um tempo de "lei e ordem", em que a "paz social" reinava, onde os portugueses "viviam habitualmente", como gostava de dizer o déspota de Santa Comba. É claro que as perseguições, os presos políticos, as torturas, os assassinatos, os crimes coloniais, somados à condenação do país à miséria de décadas foram, para alguns, apenas "detalhes", como diria Le Pen sobre os campos de concentração nazis.
Às vezes, torna-se difícil explicar aos jovens os arbítrios e os métodos da ditadura. A censura da imprensa, numa era de internet e de circulação livre de informação, é, por exemplo, algo que eles têm dificuldade em imaginar e conceber.
Há semanas, numa palestra pública para um auditório de jovens, dei-lhes três exemplos muito simples, que eu pressentia que ninguém na sala conhecia. E era verdade, todos ficaram surpreendidos. Não posso é garantir se todos ficaram escandalizados.
O primeiro teve a ver com o referendo para aprovação da Constituição de 1933. Ao revelar que as abstenções contaram como votos a favor - porque quem não se opõe é porque está de acordo... - a sala caiu num espanto.
O segundo caso, que muita gente bem adulta ainda hoje desconhece, é que, nos atos eleitorais da ditadura, as pessoas levavam os boletins de voto de casa. As listas (quase sempre só uma, salvo os raros casos em que a oposição se apresentou a voto) eram entregues na residência dos potenciais votantes, pelo correio ou pessoalmente (corri as ruas de Vila Real, em horas mortas, nessa tarefa, pela oposição local, em 1969). À oposição não era dada cópia dos cadernos eleitorais e, não havendo fotocópias à época, era necessário copiar à mão os nomes e moradas de cada um, em escassas horas em que a leitura das listas era permitida. A impressão dos boletins de voto era da responsabilidade dos candidatos, ficando o votante sempre na dúvida sobre se o tipo de papel escolhido era, de facto, o mesmo e se, na hora do escrutínio, ao entregar o seu voto, não podia ficar identificada a sua opção.
Mas a maior surpresa para meus jovens auditores foi a revelação do conceito de "medidas de segurança". Para quem não saiba, o cumprimento de uma pena de prisão por "crime político" podia não significar a saída imediata da prisão. Se as autoridades viessem a considerar que havia um perigo público com o regresso do cidadão à liberdade (e mesmo em certos casos de absolvição!), podiam ser instituídas "medidas de segurança" por um período de dois anos - decisão que era renovável, sem um limite legal, o que teoricamente poderia configurar uma prisão perpétua. Leia-se esta elucidativa peça (decreto-lei 40.550) : "O caráter indefinido do internamento permite dizer àquele que o sofre que nas suas mãos está o merecer a liberdade, o que poderá ser um meio eficaz de estimular no seu espírito reações salutares"...
Era isto o fascismo. Querer branqueá-lo não é apenas uma desonestidade, é um crime. Que a democracia não pune com prisão, mas deve punir com imenso desprezo.
25 comentários:
Sr. Embaixador deixe lá o Maio de 69 e venha para o Maio de 15! Não diga que havia eleições e que as abstenções contavam a favor porque senão podemos pensar que agora é a mesma coisa! Como é que as listas são gizadas atualmente?
Lá gizavam por métodos ditatoriais e agora são democráticos? Agora também pagam lotes de cotas antes!
Ninguém quer um regime ditatorial. Muito menos se pensar no ditador que lhe pode sair na rifa.
Insurja-se contra as abstenções não contarem, a pouca credibilidade de todos os políticos no ativo, os imensos lugares ocupados de favor, os escritórios de advogados, etc., tudo com nomes e sem exceção.
Aí sim fazia uma enorme propaganda pela democracia e contra a possibilidade de a alguém poder passar-lhe pela cabeça uma eventual ditadura "alternativa"!
Repetir a mensagem, sempre e sempre, nunca será demais. Há os que não sabiam, mas há sobretudo aqueles que querem esquecer. E mesmo alguns que sonham de regressar a esses tempos. Bem haja Senhor Embaixador pelo seu "post".
Bem haja Sr. Anónimo das 10:24 !, nunca serão demais textos como o seu!
Este post era sobre a ditadura. Ponto
Ora bolas, não se pode criticar o Embaixador quando ele é incoerente com o que escreveu antes. Ele não publica! Lápis azul?
Sr. Embaixador,
Não querendo que os tempos de ditadura regressem, longe disso, hoje há liberdade a mais. Não respeito pelos pais, professores, polícia,....
O anonimo das 10.24 pretende de forma indirecta desvalorizar o regime abjecto q nos governou ao salientar as deficiencias q a democracia tb comporta. Desonestidade intectual, a meu ver. Cts.
Pois, senhor embaixador, o problema é mesmo esse - o esquecimento - que tudo lava, e que muitos tendem a pintar com cores brilhantes.
Ainda agora, um anónimo às 10:24 tenta comparar o incomparável, misturando quotas com votos rasgados, eleições partidárias com chapeladas, a famosa 'credibilidade' muito em voga, se calhar com as virtudes de antanho. Por muito mau que seja, e é, o caminho que a nossa democracia vai trilhando, ainda estamos longe do passado, mas que não se duvide que começamos a correr para ele,né muitos são os que vão de braços abertos.
Vivi, em 1969, uma experiência semelhante à sua.
Numa freguesia do concelho de Sintra, andava ao serão a tentar convencer, pela palavra e pela distribuição de propaganda, o pessoal que votava, a votar na CDE. Em muitos casos, na maior parte, em boa verdade, nem queriam ouvir-me, tal era o medo da PIDE (e sobretudo dos bufos, que podiam ser os vizinhos do lado).
E isto apesar de a maior parte me conhecer, em muitos casos com relações amistosas de anos. Diziam coisas do género: "É pá não me metas em sarilhos! A minha política é o trabalho"!
No dia da votação, soldados da GNR a cavalo, além de agredirem os militantes oposicionistas, não deixavam entregar os boletins de voto da CDE e da CEUD, a menos de 300 metros da Assembleia de voto.
Nas mesas de voto não era autorizada a presença de delegados das oposições, mas os membros dessas mesas, filiados na União Nacional, não só podiam entregar os boletins da sua cor, mas, ainda por cima, também tinham o descaramento de dizer aos menos esclarecidos politicamente, e que levavam o boletim que lhes tínhamos dado no exterior, que aquele boletim não era válido, "obrigando-os" a votar na UN.
Tanto para contar dessa campanha. Mas quem está hoje interessado nisso?
Salvo erro, a foto que ilustra o seu texto, foi tirada no Barreiro, e mostra a costumada agressividade da GNR, de que foram vítimas mulheres de trabalhadores da CUF, que procuravam ter notícias dos maridos, presos por se encontrem em greve.
O que me surpreende é que ainda existam saudosistas desses tempo.
Caro Chico
... e está bem expresso: este post era sobre a ditadura. Ponto. Coisa que o "anónimo" (repito: não gosto de "anónimos". Pronto. Ponto) devia ter tido em conta antes de escrever o que escreveu.
Talvez não fosse lembra-lo do que disse Churchill - a melhor ditadura é sempre pior do que a pior democracia
Abç
Caro Senhor Embaixador:
Deixo-lhe o meu testemunho sobre a minha experiência nas eleições de 1973.
Tendo adquirido a capacidade eleitoral com a maioridade, quis votar.
Vivia numa zona com forte implantação da oposição (Almada), que estava muito activa e até conseguiu abrir uma sede eleitoral (que a PIDE, intrigantemente para alguns, deixou ficar aberta até muito tempo depois do acto eleitoral: está-se a ver que era para ir vigiando quem por lá passava).
Para votar tive de ir à Junta de Freguesia recensear-me, através de um requerimento em folha de papel selado, que custava 5 escudos, o custo de 5 jornais diários na altura. O que não era pouco dinheiro para o nível de vida.
Na Junta de Freguesia tive de aguentar na fila, mais os maus modos do funcionário (os funcionários públicos comportavam-se como ditadorzinhos, à semelhança do Poder Político Central).
Passado algum tempo recebi 2 envelopes de correio, cada um com as listas concorrentes: UN - União Nacional e CDE - Coligação Democrática Eleitoral.
O tão ansiado dia para debutar eleitoralmente foi uma decepção, não pude votar: a CDE desistiu perto da ida às urnas, por falta de condições para fazer a campanha eleitoral.
Assim iniciei e terminei a minha participação cívica no tempo do Estado Novo (Velho, que cairia de podre como um baralho de cartas 6 meses depois).
Para os nostálgicos do Estado Novo, deixo memórias daqueles tempos: de facto, a vida em Portugal era empolgante:
Como era Portugal antes da Democracia? (39:22)
https://www.youtube.com/watch?v=RBBUqAdiKEs&feature=youtu.be
(Trata-se de uma parte do documentário de António Barreto e Joana Pontes, que está editado em vários CD e passou na televisão).
Não regressámos ao 24 de Abril de 1974
Isso queriam alguns.
Antes teremos regressado ao 27 de Maio de 1926.
Isso quis a rebaldaria.
Antes do 25 de Abril, ninguem chamava fascismo à ditadura de Salazar.
Nem cá no burgo, que ninguem sabia o que era isso, nem rádio moscovo, nem BBC, nem rádio Vaticano nem Rádio France Internacional...chamavam tal nome à política do Homem de Santa Comba.
Só depois do dia 26 de Abril é que ficámos com a mania das grandezas e tivemos coragem de elevar a fasquia de Salazar.
Que fique para memória!
Senhor Reaça:
Ser reaça é uma opção ideológica, não uma obrigação de reescrever a História.
O senhor pode achar o que quiser, mas os factos não os pode desmentir.
Até porque há documentos escritos e registos de voz em número suficiente a desmentir essa sua afirmação de que «ninguém chamava fascismo à ditadura de Salazar».
Chamavam, sim, fascista, ao regime do Estado Novo: especialmente na Rádio Moscovo, mas também o Mário Soares e outros, não se podia era chamar abertamente e à luz do dia.
Se quer um conforto, pois não gosta que adjectivem o salazarismo como tal, do estrito e rigoroso ponto de vista da História o regime era uma ditadura de tipo fascista mas não era fascismo: como o italiano, o exemplo modelo.
Nem como o nazismo (também outra das referências do salazarismo), pois faltava-lhe a componente populista das massas: componente que Salazar abominava.
Veja o que fez ao chefe dos Camisas Azuis, Rolão Preto: expulsou-o para Espanha.
Belo texto, como sempre! Li há pouco as Memórias de Humberto Delgado onde estão patentes e expressos por quem as viveu na pele pagando com a vida todos esses "procedimentos" nas eleições de 58.
Até se me arrepia a alma quando me vêm com a falácia de que «no tempo do Salazar é que era bom»!
Essa de levar o voto de casa foi o primeiro vislumbre que tive de que algo não estava bem. Lembro-me de massacrar a cabeça ao meu pai a perguntar como é que se arranjava a outra lista. E a resposta deixou-me triste: não vez que eu sou muito conhecido e não posso chegarlá com um voto diferente que els topam logo!!
Para mim que sempre fui um inculto politico, foi a primeira revolta contra a injustiça e livre arbitrio. Felismente seis anos depois deu-se o 25 abril!!!
Graça Sampaio:
No 3.º volume da História de Portugal, de Oliveira Marques (posteriormente reeditada apenas em 2 volumes), nas páginas 444 a 447, transcrevem-se partes dos Relatórios das reuniões da Comissões da União Nacional, realizadas em todos os distritos, com vista às eleições presidenciais de 1949; Setembro a Novembro de 1948.
E também se transcrevem Ofícios confidenciais do Comando Distrital de Setúbal da Legião Portuguesa referentes às eleições para deputados em 1969; 22 a 27 de Outubro de 1969.
Aí se faz o ponto da situação ou se descrevem os procedimentos para se ganhar as eleições.
Isto é, as falcatruas mais abjectas.
É confrangedor ler aquilo mas ao mesmo tempo hoje, a tantos anos de distância, chega a divertir-nos.
Eu conheço um dos intervenientes referidos, que tem 93 anos e está completamente lúcido.
Provavelmente o Anónimo (de dia 3/5, às 10:24) que quer comparar isto com as deficiências da nossa democracia é bastante jovem para ter vivido este pesadelo.
E o senhor Reaça se calhar seria um dos intervenientes, que gostosamente praticaria aquelas patifarias, se tivesse vivido naquele tempo.
Deixo dois nacos de prosa: «… foi pedida a minha colaboração no sentido de montar e chefiar um “carroussel”, com viaturas particulares e pessoal legionário munido de certidões de falecidos, ausentes, etc., fornecidas pela U. N., a fim de votarem nas assembleias, duas, três ou quatro vezes, por exemplo: os homens de Almada votavam no Barreiro, Seixal e Moita…».
«Aljustrel: … Os operários das minas (1500 ou mais) estão contra, mas não figuram no recenseamento …»
E não será branqueamento e desonestidade referir apenas os aspectos negativos do Estado Novo mas nunca, jamais, falar do que também teve de positivo?
Gostei imenso do texto, faz muito bem desvendar aspetos castradores da liberdade e da liberdade individual aos que querem ser cegos ou andar distraídos, até para que conste.
Quem disse que havia eleições na ditadura foi o Sr. Embaixador! O exemplo que deu da abstenção contar a favor é o que acontece em qualquer eleição por aí e até nem refiro, em especial, às "políticas". Qualquer associação, agremiação sindicato ou ordem tem os seus dirigentes eleitos por "esmagadoras minorias" do universo respetivo.
Claro, em consequência, aparecem estes neo-liberais de pacotilha ou gestores das "mais altas valias" colocados na administração e nas empresas públicas, que até entremeiam nos seus discursos frases anti salazarentas, a dizerem que estão lá porque o povo quis. E os Senhores aplaudem?
E até parece que toda a gente anda por aí à vontade sem medos e receios! Nem percebo o alarido que deu o meu escrito!
Mas querer ditadura? eu? pelos potenciais ditadores que vejo? Deus me livre!
Quanto ao Senhor que se preocupa com o meu anonimato, que para mim é um anónimo e assim quero que continue a ser, indico-lhe o meu NIF - 101975678. Pode vasculhar à vontade lá nos "ordenadores" nas finanças da sua área, parece que dão autorização a muita gente, 24/24 horas...
Senhor Zuricher Bom dia. Por curiosidade , diga-me, por favor, o que andava bem com o Estado Novo em Portugal. Obrigado.
Ao ler o que precede, penso em Condorcet :
"Plus un peuple est éclairé, plus ses suffrages sont difficiles à surprendre [...] même sous la constitution la plus libre, un peuple ignorant est esclave."
No tempo de Salazar, desde que este resgatou um país falido, até que caiu da cadeira, só se perderam as que cairam no chão.
Freitas malgré avoir lu Condorcet ne comprenait pas du tout. Bonaparte oui, bien compris le paradoxe: les suffrages exprimés ont été modifiés pour la "vraie" volonté du peuple ... comme ici .. mais secrètement...
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