Era a manhã de uma quinta-feira de Páscoa. Lembro-me bem porque, a partir da hora do almoço, o país público fechava: lojas, rádios e até os cafés passavam a regime atenuado, nesse Portugal do final dos anos 50. Eu devia ter aí uns 11 ou 12 anos.
Por esse tempo, perto de minha casa, em Vila Real, havia uma pequena tabacaria, dirigida por uma figura com aquela "gravidade" que costuma atingir alguns homens de meia idade, sempre de fácies fechado, como que para serem levados a sério, cara de "poucos amigos". Embora criança, eu era, curiosamente, um desses "amigos". Passava por lá muito tempo, à conversa, sei lá sobre quê. Não obstante as mais de três décadas de idade que nos separavam, ele aturava-me. A boa letra que então tinha convertia-me também num seu benévolo "ajudante": escrevia-lhe parte da correspondência para as distribuidoras e para os serviços de expedição dos jornais, regulando encomendas e sobras. Em implícita troca de vantagens, eu lia lá pela tabacaria revistas que não tinha dinheiro para adquirir.
"Isilda, traz o bicarbonato!", ouviu-se, nesse dia, do lado de fora da porta. Era o dono da tabacaria a chegar, montado na sua Zundapp, fumegante e ruidosa, com uma caixa de madeira na parte de trás, de onde emergiam os rolos de jornais, que tinha ido buscar ao comboio.
(Eu deliciava-me com a abertura desses rolos, sempre embrulhados em jornais antigos. Por ali vinha a imprensa desportiva, mas também os jornais diários, além do "O Século Ilustrado" e a "Flama". Para mim, à época, os interesses eram outros. Eram, essencialmente, as revistas brasileiras de histórias "aos quadradinhos", desde os "cowboys" às publicações da Disney. Do que era editado em Portugal, a minha prioridade ia para o "Cavaleiro Andante", o "Mundo de Aventuras", o "Condor Popular" e coisas assim. O "Tintim", antecedido do "Foguetão", ainda não tinha surgido e o meu gosto pela "Crónica Desportiva" e pela "Plateia" ainda estava por surgir.)
O nosso homem entrou na loja, com o boné de felpo de que nunca se separava, os rolos de jornais sob o braço. Pousou-os ao longo do balcão que enchia toda a largura da loja. A Isilda, mulher de carrapito e abundante buço, com ar mais velho do que ele, atenta e veneradora, já vinha com o copo borbulhante do bicarbonato, que iria atenuar as azias estomacais do marido, cujo excesso de álcool era por demais evidente. Coisa habitual, diga-se, sempre potenciando o seu mau génio, de que a mulher e os filhos eram um alvo regular. O homem bebeu o copo de líquido esbranquiçado de um trago.
Tempo de Páscoa, a Isilda ousou revelar: "Encomendei um folar, ali na padaria". O que ela foi dizer! Foi o pretexto de que o marido estava à espera para explodir o seu mal-estar. Um bofardo desancou a cara da Isilda, que andou uns metros para o lado, recuperando-se da dor e da vergonha pelo meu embaraçado testemunho da cena. Por entre um chorrilho de insultos à mulher, o homem mal dera por mim. Discretamente, esgueirei-me para a rua, para não assistir às cenas dos próximos capítulos. Durante uns dias, não voltei a passar por lá. Depois, o apelo das revistas foi mais forte e, uma tarde, regressei. Fui acolhido com um sorriso triste da Isilda, meio cúmplice.
Era assim, o Portugal de então. Terá mudado muito? Nunca mais esqueci esse episódio de Páscoa.
14 comentários:
Sofrer em silêncio.
Deve estar melhor este Portugal, por muito que o queiram de volta a esses tempos.
Senhor Francisco. Diga pra Regina que sou muito comum.mas agradeço a ela por não vet meus defeitos. Na verdade tem um velho ditado na familia que todo Ferreira ( eu sou) pensa que todas as pessoas gostam dele ou dela. Um engano mas a gente sempre acha que é verdade. Com carinho Mônica
Mas esqueci de comentar sobre o bicabornato. Existe sempre no interior alguem parecido com este caso. Causos como os mineiros dizem.Rolando boldrin tem um programa que conta causos. Se tiver oportunidade veja. E ele leva muitos cantores sertanejos que cantam músicas bem tipicas do sertão. Com carinho Mônica
Claro que mudou, Sr. Embaixador...
O SR. adquiriu poder económico para comprar os jornais
Pelo menos há divórcio.
E o respeito pela Mulher passa melhor pela capacidade que ela tem de se auto preservar do que por ser mártir por causa perdida...
"Alguns" homens é que não mudaram apenas "substituiram" o bicarbonato pelo análogo Kompensan...
Na Páscoa cheira a primavera e a folar...
Quanto ao folar, aos homens com hábitos alcoólicos (e mulheres também)não mudou nada. Quanto à chegada dos jornais e revistas às tabacarias, que vinham por comboio ou outros meios de transporte, já isso mudou.O que parece estar a renascer dos velhos tempos, como constatei ontem, para grande espanto, é o facto de se fechar a partir de quinta-feira santa, pelo menos nos serviços da Câmara de Lisboa: ia entregar ontem à tarde uns livros à Biblioteca Galveias e dei com o nariz na porta. A Câmara tinha dado tolerância de ponto quinta á tarde, pelo que só segunda é que poderei entregar os livros. Se isto pega, mais um sintoma de retorno a esses tempos em que ficávamos em casa a ver os dramáticos filmes pascais na televisão, muito compungidos porque tinham morto Cristo na cruz, uma malvadez que me entristecia muito quando era criança.
Ainda bem que estava fora desse tipo de país.
Percebo muito bem esse tipo de frustações-em-cenário-de-sociedade-"mental-escura".
Nesas altura fora a banda desenhada que também lia, estava num país de horizantes a perder de vista, sol e praia, Angola !
Alexandre
As tardes agora são longas. O debate no teatro D.Maria II tem início a que horas?
A entrada é gratuita ou paga?
Se puder agradeço a informação.
Cumps.
antes, até há pouco, escondiam se os problemas de violencia domestica em portugal, não se falava disso, era como se fosse coisa natural, faziam parte das vidas, só há pouco começaram verdadeiramente a ser noticiados, divulgados, a haver aconselhamento, protecção policial, judicial e outras, curioso episódio aquele a que assistiu, uma lição da vida em directo...
A Isilda deveria dar-lhe bicarbonato com arsênico, pois ia tratar-lhe da azia e exterminar o rato covarde que soca mulheres.
Nos anos sessenta trabalhei numa tabacaria em Lisboa. Ficou-me alguma nostalgia desses tempos. Tinha clientes estudantes, que mais tarde ascenderam a altos cargos, sempre meus amigos, ainda hoje quando encontro um ou outro me dispensam muita atenção. Por isso gostei imenso desta sua história passada na tabacaria. Foi também na tabacaria que Fernando Pessoa passou bons momentos...
Boa Páscoa para si e sua Família.
O García Márquez não lhe merece o mínimo dos apontamentos, quando o tem feito a figuras secundárias, comparadas com ele? Sou suspeito, prefaciei uma edição dos "Cem Anos de Solidão",em 1988, e, por ironia do destino, traduzi o "Pedro Páramo", de Juan Rulfo, em 1980, com uma capa de José David, que o Sr.Embaixador deve ter encontrado em Paris. Com Juan Rulfo, parlei muito na cidade do México em 1982. E tenho o "PP" autografado por ele.Um homem espantoso!!!! A ignorância dos escribas encartados portugueses é muito grande.Assim vai o mundo, assim vai este rectângulo.
ó como me congratulo com o comentário do anónimo das 13:00, pensei exatamente isso, mas como estamos de espírito Pascal estava a pensar antes em crucificação, reconheço que para quem sofre de azia o arsénico é capaz de ser mais refinado...
E para cultivar a azia folar de Chaves com Café, são servidos?
Boa Páscoa
Os tempos mudaram, o bicarbonato deu lugar ao gurosan. Mesmo efeito,inodoro, bolha menos agreste!
Boa Pascoa, com folares, amendoas e o que mais desejarem.
Saudades de Londres
F. Crabtree
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