terça-feira, abril 22, 2014

O 25 de abril e a política externa


Texto que serviu de base à intervenção que ontem fiz, durante o painel "Portugal no Mundo", durante o Congresso "A Revolução de Abril", promovida pelo Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa:

A tentação de afirmar que tudo mudou com o 25 de abril é muito forte no que toca à política externa. E isso tem uma explicação fácil: é que, contrariamente à lenta maturação de outras mudanças que ocorreram na sequência da Revolução, no plano internacional, quase de um dia para o outro, a imagem de Portugal sofreu uma forte alteração, passámos a ser olhados de uma forma diametralmente oposta à véspera. Da ditadura obsoleta, politicamente isolada, sustentáculo de uma presença colonial perdida historicamente no tempo, emergiu uma súbita esperança democrática e de libertação, feita de alegria florida nas ruas. 

Até o surgimento das forças armadas a titular uma revolta democrática, apenas meio ano depois do Chile, constituiu uma novidade simpática e promissora.Vieram depois algumas dúvidas, o Ocidente tremeu com o curso político em Lisboa mas, para o bem e para o mal, visto das várias perspetivas, Portugal nunca mais foi igual sob olhar do mundo.

Como a Ucrânia nos prova nos dias de hoje, tal como Cuba o atestou nas últimas décadas, um país não pode fugir à sua geografia e tem de acomodar as suas ambições ao contexto em que está inserido. Assim aconteceu com o Portugal depois de abril. 

Eu costumo afirmar que o facto de não ter surgido, na convulsão política pós-Revolução, uma séria proposta no sentido de Portugal abandonar a NATO representa como que a consciência subliminar de que o país tinha condicionantes geopolíticas a que não podia escapar. Se a leitura que Moscovo fazia deste equilíbrio marcou ou não a atitude do PCP, com Angola à mistura nesse contexto, essa é uma questão que fica para os historiadores. Os factos, porém, são incontroversos: aquela que era a principal âncora geopolítica do país desde o pós-guerra não foi posta seriamente em causa, não obstante alguns apelos radicais surgidos aqui ou ali. 

Quero com isto dizer que a nossa geografia prevaleceu. Mas essa geografia também mudou. Umas vezes mudou ela própria e nós mudámos com ela, outras vezes mudou porque nós próprios fomos sujeitos dessa mudança.

A nossa geografia mudou no plano físico, com o fim das fronteiras e com os acessos rodoviários e aéreos a tornarem-nos menos periféricos. O choque de modernidade que isso teve num país até então isolado, fora das rotas de vizinhança do centro do continente, foi uma aventura silenciosa de que já ninguém tem verdadeira consciência.

A nossa geografia mudou fortemente no plano político, com a integração europeia a determinar um quadro de responsabilidades que nos alargou os horizontes e nos tornou parceiros de um projeto mais vasto, eticamente sustentado e com uma coerência global que incorporámos na nossa própria matriz de afirmação externa.

Mas mudou também na nossa atitude no quadro multilateral, "ajudados" pela aventura voluntarista por Timor, que determinou uma postura mais ativa sobre direitos humanos. E, noutra dimensão, criou-nos uma dinâmica própria em matéria de cooperação para o desenvolvimento. Por tudo isto chegámos, por três vezes e não por acaso, ao Conselho de Segurança da ONU, organizámos duas cimeiras Europa-África, temos um Alto Comissário para os Refugiados, tivémos a liderança da Aliança para as Civilizações, criámos as condições para que um português chegasse à chefia da Comissão Europeia.

E, também no campo multilateral, soubémos exportar segurança, com intervençoes de grande mérito tituladas pelas nossas Forças Armadas envolvidas em operações de paz. Essa nossa nova "geografia de segurança", que vai para além da NATO, se apoia na Europa e tem decorrências na luta anti-terrorista, é um terreno da maior importância, um teste ao nosso sentido de responsabilidade internacional

A nossa geografia mudou também no plano humano, ao ter sido possível, a partir do 25 de abril, estabelecer um modelo de enquadramento democrático da nossa diáspora, garantindo-lhe um papel na vida política interna e procurando tomá-la um ator da nossa dimensão externa. E, mais tarde, de país emissor de fluxos migratórios, tornámo-nos recetores de imigrantes, convertemo-nos num "melting-pot" onde a Europa de leste veio encontrar as muitas Áfricas, a que se somou o Brasil mais a China. Embora alguns não saibam, isto também é política externa e devo confessar que tenho um imenso orgulho em que o Portugal de hoje seja considerado positivamente lá fora, pelo modo como acolhe os mundos que estão do outro lado desta casa, do largo de S. Domingos ao Martim Moniz e à Mouraria.

A nossa geografia também mudou muito no tocante ao nosso relacionamento bilateral externo. Mudou com a normalidade com a vizinhança imediata, de Espanha a Marrocos, com a descoberta de uma vocação mediterrânica que levou à fixação de um interessante laço com um mundo islâmico que vê em nós um interlocutor atento.

Mas essa nova geografia, que também pode ser considerada 'de afetos" conduziu, desde logo, ao estabelecimento de um quadro institucional prioritário com Estados que falam a nossa língua e com os quais tentamos reconduzir a uma cooperação aquilo que foi uma longa e traumática relação colonial. Mas, igualmente, reforçámos o nosso relacionamento com Estados e regiões com os quais vivíamos a uma distância criada pela ditadura e pelo colonialismo, do centro e leste europeus à África e bastante mais além. Foi essa nova postura que nos conduziu à normalidade do relacionamento com a China, mas também com a Indonésia e com a Índia.

Mas, como disse no início, nunca saímos do Atlântico, embora apenas na retórica tenhamos uma política nacional para esse espaço. Talvez por isso, porque o Atlântico é uma constante muito forte que nos sobredetermina, foi por aí que surgiram alguns patéticos seguidismos, que devemos tomar à conta de meros episódios sem grande significado. Mas este é um quadro que mantemos como estruturante para a preservação dos nossos interesses estratégicos. E tudo indica - mas assumo que esta é uma perspetiva pessoal - que, sem abandonar o investimento fundamental no projeto europeu em que nos empenhámos, sem descurar a CPLP e outras dimensões que derivam de laços muito particulares, como é o caso dos que nos prendem à América Latina, temos todo o interesse, como país, em saber recolocar-nos, com sentido das proporções, no centro da nova relação transatlântica que se desenha.

Termino com uma banalidade, reafirmando que, graças ao 25 de abril, somos hoje um país "orgulhosamente acompanhado". Por isso, quando um dia voltarmos a ter uma política externa, depois do interlúdio de silêncio internacional que estamos a atravessar, Portugal pode e deve, com realismo e medida ambição, continuar a aproveitar as portas que, também para o mundo, abril nos abriu.

11 comentários:

Isabel Seixas disse...

Uma boa reflexão, gostei muito.

Anónimo disse...

Acrescentaria apenas que de país exportador de emigração convertido em país de imigração, nos tornámos de novo país emissor de emigrantes, desta vez não raro de quadros qualificados. Isto também é, voluntariamente ou não, política externa, por omissão ou por defeito, em particular o facto de não promovermos a migração circular, as relações de transcidadania e de não mobilizarmos suficientemente em nosso proveito as novas diásporas.

patricio branco disse...

um bom apanhado, embora o peso de portugal no mundo continue a ser minimo, por razões de dimensão, peso politico e económico, por opções de politica externa. por vezes isto tem vantagens, é curioso que não sendo um país interessante como receptor de imigrações, não sofremos os problemas da espanha e itália, não somos competitivo nesse ponto...
a componente atlantica é apenas teórica e nem os açores ou madeira nos fazem aproveitar mais esse espaço riquissimo, ou tirar partido dele.
estranhamente, há regiões do mundo com as quais não nos relacionamos, como a america central, grande parte da ásia e parte da africa.
a rede consular diminiu drasticamente nos ultimos 10 anos, o que é uma retirada na assistencia aos portugueses que vivem no exterior.
tambem a promoção internacional do português está em niveis minimos de investimento.
é verdade que nos candidatamos a alguns lugares em instituições internacionais e de acordo com o principio da rotação e da imagem tranquila os vamos ocupando.
o 25a permitiu a abertura de relações com os paises socialistas e a descolonização, foi o mais visivel em politica externa.
portugal é o que é e penso que o seu papel e posição no mundo estão hoje definidos, mas talvez isto tambem tenha vantagens, ser pequenino e discreto.

Helder Estêvão disse...

MUITO BEM. Os meus sentidos e sinceros parabéns pela excelente análise da inserção geopolítica de Portugal no mundo e nas diferenças entre o antes e o depois do 25 de Abril e nas suas implicações, tanto na sociedade, como nas transformações que delas resultaram

Anónimo disse...

Belo texto com excepção do último parágrafo que é uma análise partidária de curto prazo
João Vieira

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro João Vieira: é reconfortante ver que concorda comigo em como é uma questão de curto prazo. Felizmente que o é.

Defreitas disse...

Vista panorâmica muito completa do que era Portugal e do Portugal que os Homens de Abril ajudaram a desabrochar.
Estou de acordo com o Senhor Patrício Branco : Portugal não deixa de ser esse pequenino pais e essa grande História que alguns nos invejam.

Não creio que todos os políticos que nos representam nas instituições internacionais merecem ser consagrados.

O presidente da Comissão de Bruxelas tem um péssimo CV e foi "posto" naquela posição pelo bem querer dos grandes deste mundo, não muito respeitáveis também. Talvez mesmo passíveis do Tribunal Internacional da Haia por genocídio.

Se diplomatas Portugueses presidiram a Assembleia da ONU, não se deve à influência de Portugal em qualquer campo que seja, mas à docilidade da sua diplomacia. O Senhor Embaixador explica-o muito bem: Ninguém pensou pôr em causa a NATO nem a base americana dos Açores em 1974. Os responsáveis de então, viram bem "quem mandava " no Ocidente. E francamente não vejo bem o que poderiam fazer doutro senão alinhar na "Pax Americana"" .

Portugal nunca colheu frutos extraordinários da sua "boa vontade" a colaborar com os "aliados" . "Aliados" que ontem forneciam as armas aos movimentos militares que serviam para combater os soldados Portugueses na África! Vítimas da "real politik".

Portugal continuará a respirar ao ritmo dos fins de mês difíceis, dependente da vontade de Berlim, e a Revolução terá ao menos permitido que os Portugueses educados possam emigrar livremente para minorar o défice demográfico do Grande Reich Alemão.

No fundo, Senhor Embaixador, fico com o sabor amargo de constatar que os grandes ideais de Abril 1974 , dos Homens que sonharam dum Portugal renovado rumo ao progresso , foram escamoteados pela mesma classe que o tinham mantido no obscurantismo e na ditadura durante 40 anos.

São os mesmos que têm o poder económico, isto é, as alavancas do poder "tout court" !

Falta saber como será possível aos Portugueses salvar a Revolução de Abril , antes que os cravos murchem completamente.

PS) Quanto ao parágrafo sobre a "geografia de segurança"," crê realmente que Portugal teve uma influência qualquer na sua acção no Iraque ou no Afeganistão, guerras que acabam como sabemos ? O simbolismo da GNR num pais invadido não é o que há de melhor para realçar o nome de Portugal. Seria melhor ocuparem-se da segurança em Portugal mesmo.

Anónimo disse...

Senhor Embaixador,

E a nossa geografia económico-financeira?! Como mudou... hoje somos um país de pedintes!

ZEUS8441 disse...

É verdade que está bem escrita a reflexão.

Coloco sérias reservas sobre a matéria histórica do seu conteúdo.

Haveria matéria sobeja para rebater,mas....não entrarei em confrontação.

Fico-me pelas reservas até com carácter ideológico,o que não é de menosprezar.

Anónimo disse...

Tem toda a razão, mas infelizmente a realidade obriga:

"Liberdade
por João Ferreira do Amaral, em 21.04.14
"A paz, o pão, habitação, saúde, educação.
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
Quando pertencer ao povo o que o povo produzir"

Em 1974 eram justíssimas as reivindicações de Sérgio Godinho no seu excelente album "À Queima-Roupa".
É espantoso como todas estas falhas foram sendo supridas em 40 anos.
E agora?
Agora vamos ter de pagar, claro.
Quem mais haveria de pagar o muito que hoje temos além do que produzimos?"

Alexandre

Anónimo disse...

Caro Embaixador
Só pode ser de curto prazo porque somos um país que tem uma longa política externa que não se mede por décadas!
João Vieira

Fumo

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