Londres tem das lojas mais interessantes do mundo no que toca a globos. Quando por aqui vivi, recordo uma dessas casas, perto de Crystal Palace, que era tão snobe que tinha um letreiro a avisar que não admitia visitantes que quisessem entrar "just to take a look". Só "serious business".
Ontem, ao olhar, também em Londres, para uma outra montra com globos, recordei a importância que para mim teve um pequeno globo metálico, com os países identificados a cores, que havia na casa onde vivi a minha infância, com os meus pais e os meus avós. O globo rodava num suporte de que eu muitas vezes o tirava, para o que tinha de achatar os polos, para constante irritação das pessoas mais velhas. O meu tio Fernando, que vivia lá em casa em férias, foi o grande responsável pela minha educação na geografia política e étnica, ensinando-me onde havia índios e cowboys, onde viviam os pretos (deixemo-nos de eufemismos, era assim que se falava nos anos 50), qual era a terra dos "chineses de olhos em bico" e outras caricaturas do género, que me foram ajudando a imaginar o que ia por esse mundo fora.
Desde muito miúdo que eu apontava para o Egito quando me perguntavam "onde é que há as pirâmides", mostrava os desertos no Sahel (na altura, só se falava no Saara), a terra dos esquimós, a bota que era a Itália e o canal do Panamá. Também por via dessas descrições, criei uma ideia menos simpática do cabo das Tormentas que o meu pai me ensinou a identificar, com histórias do Adamastor, no desenho da viagem das caravelas para a Índia e mais além. A linha do Equador foi, para mim, um traço mítico que separava dois mundos (aliás, o próprio globo lá de casa era desmontável em duas calotas hemiesféricas, que se encaixavam, precisamente no equador), mas nunca ninguém, à época, me conseguiu explicar convenientemente o interesse dos trópicos de Câncer e de Capricórnio (e a verdade é que eu só leria Henry Miller bem mais tarde...). Mas cedo soube de cor onde estavam situadas todas as "províncias ultramarinas" e, recordo bem, o facto de me terem dito que a Nova Zelândia se situava "do outro lado" do mundo levou-me a inquirir por que razão se não fazia um túnel para lá... Os pólos, a norte e a sul, pintados a branco, nunca me seduziam por aí além, talvez porque Trás-os-Montes já era demasiado frio para o meu gosto.
Desde muito miúdo que eu apontava para o Egito quando me perguntavam "onde é que há as pirâmides", mostrava os desertos no Sahel (na altura, só se falava no Saara), a terra dos esquimós, a bota que era a Itália e o canal do Panamá. Também por via dessas descrições, criei uma ideia menos simpática do cabo das Tormentas que o meu pai me ensinou a identificar, com histórias do Adamastor, no desenho da viagem das caravelas para a Índia e mais além. A linha do Equador foi, para mim, um traço mítico que separava dois mundos (aliás, o próprio globo lá de casa era desmontável em duas calotas hemiesféricas, que se encaixavam, precisamente no equador), mas nunca ninguém, à época, me conseguiu explicar convenientemente o interesse dos trópicos de Câncer e de Capricórnio (e a verdade é que eu só leria Henry Miller bem mais tarde...). Mas cedo soube de cor onde estavam situadas todas as "províncias ultramarinas" e, recordo bem, o facto de me terem dito que a Nova Zelândia se situava "do outro lado" do mundo levou-me a inquirir por que razão se não fazia um túnel para lá... Os pólos, a norte e a sul, pintados a branco, nunca me seduziam por aí além, talvez porque Trás-os-Montes já era demasiado frio para o meu gosto.
As lições de geografia que, com o globo, eu recebia foram, com o tempo, complementadas com um mapa da Europa em que alguns países eram simbolizados por animais e outras figuras. Nele, a Rússia, lembro-me bem, era identificada por um imenso urso. Já não tenho na memória, mas imagino que o Reino Unido (a Inglaterra, como então se simplificava) devesse ter um John Bull a representá-la e a Holanda (país que me habituei a respeitar muito, por me terem dito que vivia abaixo da linha do mar o que sempre me impressionou) pelo inevitável moínho, rodeado de tulipas. A perceção do resto do mundo era então também ajudada pela coleção das "Raças Humanas", com fotografias coloridas de caras bizarras, que cedo comecei a colecionar. E os desenhos do "Cavaleiro Andante" faziam o resto do trabalho. Vieram, por fim, os selos, que me ajudaram a perceber ainda melhor o mundo, com as subtilezas políticas de cidades como Tânger, Trieste ou Dantzig (hoje designada por Gdansk). O "meu" mundo foi assim criado e, com ele, foi-se gerando em mim alguma vontade em conhecê-lo. Mal eu sabia, à época, que a vida me iria dar o ensejo de o frequentar com alguma extensão e assiduidade.
Ainda se oferecem globos às crianças? Se não, é pena!
23 comentários:
Que boa ideia me deu. Já nem me lembrava dos globos. Acho que o meu pimentinha mais crescido vai adorar. A ver é se não se põem, ele e o irmão mais novo, a rodá-lo à maluca.
Boa dica.
Obrigada.
Oferecem, oferecem, uma priminha minha com 30 e tal anos teve como prenda de casamento de um amigo... um globo.
Ainda nao estamos todos "brainwashed".
Saudades de Londres
F. Crabtree
Globo - um objeto inquietante. Sensação quase voluptuosa de ter o Mundo nas mãos. E como ele (o Mundo) nada mais é que pedaços de uma bola que alguém recortou, ao acaso, e depois tentou remediar cerzindo-os uns aos outros num cuidadoso rendilhado patchwork.
"(...)deixemo-nos de eufemismos, era assim que se falava nos anos 50(...)
Era... e é! Só se preocupa com esses pormenores quem não tem mais nada com que se entreter ou não lida com os ditos pretos.
Que prazer de ler a língua portuguesa quando é bem escrita! Cada palavra , exacta, no seu lugar, tudo se compreende e se identifica tão facilmente!
Tinha, uns anos mais cedo que o Senhor Embaixador, a mesma percepção do Mundo graças ao globo da ...escola! Porque lá em casa, era a luta pelo pão de todos os dias e não se investia na cultura! Pas encore!
Mas anos mais tarde, a imagem mais forte do Globo Terrestre apareceu-me através duma imagem do cinema. No filme "O Dictador", Charlie Chaplin denuncia a ideologia nazi e ridiculiza Hitler. Uma das cenas mais célebres é quando ele faz girar o Globo e o abraça como para o possuir completamente.
Nesse mesmo filme, os nazis tinham-se apropriado a musica de Wagner que assimilavam à ideologia nazi. A música do célebre filme é o preludio de Lohengrin (opera de Wagner), na qual ele conta as aventuras do Cavaleiro do Graal.
Anos mais tarde, também passei o Equador, a bordo do paquete Pátria, a caminho de Moçambique. Nunca a façanha dos Portugueses me pareceu tão extraordinária que nesse mês e meio de navegação até Lourenço Marques. E depois mais tarde até à Índia e Macau. Os Portugueses foram entre os primeiros a tocar de perto a imensidade desse globo . Fica-nos ao menos isso, hoje, para nos orgulhar dum passado longínquo.
Ainda se oferecem e ainda se pedem como prenda.
O meu filho, de 11 anos, pediu à madrinha, como prenda de Natal, um globo.
Recebeu um daqueles que vêem com uma luz no interior.
Acende-o no escuro da noite, no quarto, abrindo a porta de todos e sonhos e viagens, com certeza enquadrados pelas conversas do pai sobre o sentido que o mundo leva e a crueza dos sons e imagens que o retratam.
David Caldeira
V.Exª. levou-nos aos bancos da Primária.Não direi saudades, mas,bons tempos.
Há 10 anos, numa Escola, brigavam 2 rapazes Africanos e um dizia para o outro; " ó preto,ó preto, parto-te os cornos" e repetia a frase.
Aparteio-os e eu que me senti meio envergonhado,perguntei-lhe; porque chama preto ao seu colega?
Ó professor, ele é preto ou não é preto!?
Foi o primeiro objecto a captar a minha atenção na escola primária. Reluzente, inacessível num armário de vidro, fez-me cercá-lo com o pasmo dos seis anos e o deslumbre da ignorância: “ - O que é isto? O que é?...” A escola ficava num primeiro andar de um prédio velhíssimo, numa sala toda tons de sépia e olores a mofo, madeiras ruças, soalho enegrecido, rangente. Escassas janelas cobertas por cortinas pardacentas coavam a parca luminosidade. Apenas o globo brilhava com uma espécie de luz própria, fruto dos oceanos e dos continentes sortidos.
Um dia o meu pai levou-me para comprarmos um, de latão, que contemplo todos os dias.
Foi na Rua de Santo Ildefonso, ente a Praça da Batalha e a dos Poveiros. Numa loja que há muito já não existe.
Esse mapa a que se refere não será este?
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3e/World_around_1900.jpg
Senhor Embaixador
Relativamente ao Cabo Bojador, falava-se efetivamente de monstros e do fim do mundo, mas salvo erro creio que era relativamente ao Cabo das Tormentas, depois da Boa Esperança, que se referia o Adamastor.
Os globos são do melhor para ter uma perspectiva do mundo. Possuo vários e dá-me imenso prazer rodá-los e colocar o dedo numa ilha distante.
LBA
O globo da minha infância era mais colorido no sentido português da palavra, não correspondia ao termo bem conhecido que actualmente é "ensinado" nos média por "cérebros" mentalmente excepcionais.
Interessante, realmente é que também recordo o meu globo, localizado no meu quarto em África nos anos cinquenta, onde efectivamente aprendi a distinguir as aves que percorriam a mata, as que voavam e aquelas que apenas corriam.
Alexandre
Ao anonimo das 07.06:
O racismo não é uma questão de termos mais ou menos apropriados mas de representação do outro.
A escolha do termo "preto" ou "negro" depende da intenção insultante ou não. Quando Obama foi eleito, os racistas chamavam-lhe "the nigger"!
E quando se prefere dizer "preto" quando se podia dizer "negro" há algo de redutor. Mas na realidade não diminui a palavra, mas o homem que a pronuncia.
E eu que pensava que só existiam seres humanos!
Globos - "O Mundo nas sua mãos" ou "O Mundo a seus pés". Mas isso era antigamente, agora é a Internet... a partir de quando ainda são bebés...
Caro LBA: lapso meu. Era o Cabo das Tormentas, como diz. O Bojador é já ali ao virar da esquina...
hitler no grande ditador apoiava se a um globo terrestre e quase caia quando a esfera rodou e o ponto de apoio da mão deslizou e lhe faltou. mussolini estava com ele e assistiu a tudo.
ó Freitas, é como dizer "maçador" ou "chato". Você é ambos mas maçador parece mais fino...
Et pourtant .... Senhor Embaixador: Era bem o cabo Bojador que travava a expansão épica dos Portugueses por causa da legenda do Mar das Tenebras, que ninguém podia atravessar.
Segundo a crença da época, " imensas vagas, rochedos perigosos, uma bruma espessa e mesmo monstros marinhos tornavam a navegação impossível". E foi Gil Eanes que o Príncipe Henrique mandou desfazer a legenda do "Cabo do Medo", com um só barco e alguns marinheiros . Após esta expedição, o caminho para a Índia estava aberto.
Bom dia.
Os links do comentário anterior não são válidos. Os correctos são estes:
https://meocloud.pt/link/412e67ad-5c76-4f90-b263-56ac8f396c2d/mapa-caricatura%20-%20001.jpg/
https://meocloud.pt/link/cc300229-b987-46b3-b520-c1bc9217b3be/mapa-caricatura%20-%20005.jpg/
https://meocloud.pt/link/cd86fd56-c5e4-465a-ad19-f51f778983d1/mapa-caricatura%20-%20007.jpg/
https://meocloud.pt/link/04649d6b-b1fd-4554-90bb-48b4f478eeb4/mapa-caricatura%20-%20010.jpg/
Cumprimentos.
A última reminiscência que tive de globos foi na Embaixada de Portugal em Estocolmo, quando lá jantei em 1986. O Embaixador na altura tinha um globo iluminado na sala de estar. Recordei-me então do primeiro globo em latão que havia recebido dos meus pais, mais de vinte anos antes. Esta história trouxe-me outra reminiscência, desta vez do tal ano de 1986. Fui a Estocolmo como funcionário do Protocolo, na comitiva de Mário Soares, para o funeral de Olaf Palme, naquela que foi a sua primeira deslocação ao estrangeiro como PR, três dias depois de tomar posse. Éramos seis, contando com o Presidente e o MNE. JPGarcia
Senhor Francisco
Quando estudavamos também tinhamos um globo iluminado.
Mamae adorava mapas e globos e nos fez decorar os paises e capitais com muita facilidade pois fazia brincadeira com a gente.
Por ex lá no Peru tem muita LIMA
E quando ficamos maiores um dos meus sobrinhos, deu de presente pra vovo Maria Alice um globo. Ela adorou!
com carinho de sempre Monica
Hoje esqueci todas as capitais dos paises. Uma pena!
os globos... o que aquilo fazia sonhar uma pessoa... ainda tenho um, pequeno, de folha, que roda no seu eixo apoiado num pé...está na minha estante e ainda me dá gosto olhar para ele. :-D
Sou louca por globos e mapas. Também a minha infância se passou muito à volta de um globo iluminado que tinha no quarto e que hoje está no quarto da minha filha de 8 anos. Mesmo que ela não goste, já tem 3 globos diferentes no quarto e já sabe identificar muitos locais.
Obrigada pelas lembranças! É mesmo tocante começar o dia hoje com a visão do seu blog...
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