Os franceses chamam-lhe os "pique-assiettes", os brasileiros qualificam-nos de "arroz de festa". Em Portugal julgo que não há um nome específico para designar aquelas figuras que fazem parte do panorama habitual das embaixadas, os frequentadores constantes dos cocktails e dos "dias nacionais".
Não me refiro àqueles que, por uma razão funcional ou outra, "têm" de estar nesses eventos: políticos, figuras da administração pública, embaixadores, empresários, académicos, etc, muitas vezes com ligações específicas ao país em causa. Para alguns destes, assistir a esse tipo de receções é por vezes um "frete", desempenhado por razões protocolares, outras vezes pela genuína simpatia que o anfitrião ou o país que os convida lhes merece. Mas, entre estes, há também quem adore andar por esses eventos, ser convidado, sentir-se parte desse mundo. Gostos.
Falo de quantos, sem motivo substantivo aparente, rodam com regularidade, comendo e bebendo, pelos salões diplomáticos. Raramente os vemos sem um copo na mão, conhecem os criados que já lhes conhecem os gostos, mantêm imbatíveis técnicas de abordar as mesas onde ficam pousadas as vitualhas, cuja geografia referenciam desde a chegada aos salões. Têm sempre um olho alerta para topar as figuras públicas conhecidas presentes, de quem se aproximam subtilmente, por sucessivas entradas de ombro, das quais se fazem lembrados e a quem logo apresentam os seus respeitos. Saltitam de grupo em grupo, sempre com um sorriso quase esgar, fazem imensa questão de apresentar uns a outros, cumulam de adjetivos elogiosos os conhecidos, dizem-nos que estamos mais magros e com bom aspeto, às senhoras galanteiam ao ponto de as fazerem acreditar em milagres. São, quase sempre, pessoas amáveis, faladoras, mas, há que dizer, há casos em que são uns imensos "chatos de galocha", que nos agarram o braço ou colam a cara à nossa, para revelar a "última". Alguns, contudo, são utilíssimos: "Não beba o tinto! É uma zurrapa!" ou "O salmão só lá vai com uma serra..."
A maioria acedeu aos círculos das embaixadas por uma função desempenhada no passado, há muito desaparecida. No caso delas, foi frequentemente por um casamento que já lá vai, às vezes por viuvez, às vezes por divórcio. Andam sempre com cartões pessoais, de letra deitada, a armar ao clássico, que apontam ao mais ínfimo diplomata estrangeiro que surja no seu horizonte, na certeza de que isso pode contribuir para continuar a ser lembrado na respetiva embaixada. A sua histórica "target" estratégica são as secretárias dos embaixadores, cuja memória adoçam pelos natais. Porquê? Para estarem sempre nas boas graças da "lista social", para terem a certeza de que, saído que seja um embaixador do posto, através delas garantem a sossegante "recondução" nos convites feitos pelo seu sucessor.
Nem todos têm a mesma capacidade de acesso. Há os que conseguem ir ao "14 juillet", à festa americana ou ao dia da raínha britânica. Em Lisboa, as festas nacionais da Espanha e do Brasil completam esta lista "top" de destinos sociais de eleição. Na sua hierarquia específica, a Itália e a Alemanha estão logo de seguida. Esta é a "aristocracia" destes "habitués", que nunca se referem ao "embaixador X" ou à "embaixatriz X", mas sempre ao "Philippe" ou à "Margot", íntimos, claro. Depois, há os mais modestos, os que só acedem às embaixadas da "Bordúria" ou da "Sildávia", onde vagueiam como aves de pequena rapina por salas desertas, às vezes por uma sandwich, às vezes por
uma empada, deglutida com um vinho de segunda. Tenho um particular carinho por estes últimos, confesso. Chegam a ambicionar comendas, dessas capitais longínquas. E alguns conseguem-nas.
uma empada, deglutida com um vinho de segunda. Tenho um particular carinho por estes últimos, confesso. Chegam a ambicionar comendas, dessas capitais longínquas. E alguns conseguem-nas.
Conheci centenas destas figuras, ao longo de quase quatro décadas de vida diplomática. De alguns, fiquei mesmo amigo, para além de indefectível admirador da técnica, da sua capacidade de garantirem uma espécie de "oxigénio social" que lhes é vital para o quotidiano. De onde, diga-se, não vem nenhum mal ao mundo. Bem pelo contrário: sempre ajuda a compor receções desertas, onde a sua presença, quase sempre histriónica, é mais notada e desejada. E, então quando chove e os convidados rareiam, os anfitriões ficam ainda muito mais gratos.
Porque falo disto hoje? Porque, ontem à tarde, numa embaixada, encontrei um deles, um grande "profissional" deste "métier", que me disse: "Vou "raspar-me" porque tenho ainda duas "funções" a atender. Sabe como é!" Sei, sei. E lá o vi sair, discreto, leve, sempre muito leve...
Em tempo: como é óbvio, não poderei aceitar qualquer "name-dropping" nos comentários...
14 comentários:
Há gostos...
são "penetras" que por algum motivo falharam a carreira diplomática ou gajos com fome que iam a passar e cheirou-lhes "morfes" à borliú.
É isso, há gostos para tudo.
O que o Sr. Embaixador conhece!
A corte…
Cá por cima não faltam as imitações da corte… à correspondente escala…
antonio pa
os penduras que entram sempre sem convite mas que já pertencem à função por costume e hábito velhos são bem divertidos, sobretudo se são casais,enfim, tipos sociológicos, afinal tambem há os convidados que nunca vão...
Il faut mettre ses principes dans les grandes choses, aux petites la miséricorde suffit.
Camus (Albert)
Especial para o Sr. Embaixador : Quando li o termo "pique-assiette" pensei que nos ia falar de "L'assiette du roi Cochon (Filet mignon sauce Saint-Marcellin, andouillette sauce moutarde à l’ancienne, pieds de cochon pané, saucisson meurette, garnie frites maison), especialidades que me levam, cada vez que vou a Lyon, ao restaurante "Pique-Assette" ! no Vieux Lyon. Com um bom Julienas da região, vale a pena !
Caro Alexandre: não comungo as suas fobias, pelo que não abro aqui espaço para elas, desculpe lá!
brigada do croquete? é esse o nome pelo qual tenho classificado tal grupo. há uma brigada do croquete especializada em embaixadas e dias nacionais ou saídas e apresentações de embaixadores: mas há outra especializada em eventos sociais na área do luxo; outra, na área do espectáculo. E há, claro, os "generalistas". Conheço alguns há décadas. Não se pode dizer que não sejam simpáticos. Deve ser essa a sua "formação profissional".
Um conheci que era mais dado às "causas" da cultura, mormente do lançamento de livros. Como algumas vezes o vi, sempre só, mas sempre muito bem ubicado, comentei o facto com um grande amigo meu, a quem o descrevi. Esclareceu-me este: "é meu tio, não precisa disto, mas gosta disto". E, para saber onde eram os eventos, consultava o JL no quiosque da sua zona de residência.Poupava duplamente. Dava um personagem de romance.E era bem discreto e simpático. Infelizmente, já partiu.
Para, se precisarmos, termos gente em casa, dizia uma familiar de minha mulher, basta pôr um croquete à janela.
A brigada do croquette é que anima o numbro...
Virgem santa que a fome era tanta...
Guilhetme.
A descrição está perfeita! E vale tanto para os que sabem insinuar-se e fazer-se convidados como para aqueles, mais audaciosos, que prescindem do convite, como sendo uma mera formalidade a não ter em conta.
Mas como em tudo na vida, a profissão de "penetra" tem os seus riscos. Foi o caso de um conhecido "voluntário" frequentador das Embaixadas em Bogotá que quando no final dos anos 70 a Embaixada da República Dominicana foi tomada por um grupo de atacantes que ali manteve sequestradas durante semanas muitas pessoas presentes na recepção do Dia Nacional, lá ficou retido alguns dias até os sequestradores se convencerem da total inutilidade daquele refém como moeda de troca.
E não me esquecerei nunca do "profissional" que em Brasília, nos anos 80, comparecia em todas as Embaixadas, fosse no Dia Nacional, fosse para uma exposição ou uma conferência sobre qualquer assunto e em qualquer língua, na mira do "vinho de honra" que invariavelmente se seguia.
Soube um dia que se tratava de um modesto funcionário da biblioteca da Universidade de Brasília, onde dispunha de um cacifo em que guardava sempre um fato cor de beringela, uma camisa e uma gravata.
Ao chegar ao trabalho pela manhã, de jeans e t-shirt, o nosso homem consultava de imediato a coluna diplomática do "Correio Braziliense", onde ser inteirava dos acontecimentos do dia, ao meio-dia, às seis da tarde ou à noite.E, depois de trocar de roupa, lá comparecia invariavelmente, sendo em geral dos primeiros a chegar e dos últimos a partir, já com "um grãozinho na asa".
Quando consegui saber de quem se tratava, incluí-o na lista dos nossos convidados. Pelo menos na Embaixada de Portugal ele estava por direito próprio!
Mário Quartin Graça
'À tarde', Senhor Embaixador. Não 'há tarde'. Perdoe a esta penetra o atrevimento da correcção pública.
Maria João
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