sábado, outubro 26, 2013

Congos

Ontem, na página do Facebook de um amigo, troquei algumas notas sobre Kinshasa e Brazzaville, as capitais dos dois Congos, separadas pelo majestoso rio com o mesmo nome. E veio-me à lembrança uma história dos anos 80 ligada a uma travessia desse rio.

Eu e um colega acompanhávamos aquela que era a primeira deslocação a África de um jovem político português, com um futuro já então promissor. Acabados os dias de trabalho no então Zaire (hoje República Democrática do Congo), os três tomámos o barco, um "ferry" manhoso e apinhado de gente, que atravessava o rio do mesmo nome, para chegar a Brazzaville, a cidade em frente, na República do Congo, onde teríamos outras reuniões. Contrariamente a Kinshasa, onde havia uma embaixada na qual tínhamos pernoitado nos dois dias da visita oficial, em Brazzaville ficaríamos num hotel, reservado por um cônsul honorário de cujo desembaraço nos diziam maravilhas. Segundo fôramos informados, podíamos ir descansados quanto ao nosso acolhimento e instalação em Brazza, como os locais lhe chamam. Estava tudo tratado.

A viagem foi normal, através de um rio imponente, histórico para Portugal. Quando o barco amarou à margem de Brazzaville, cada um de nós pegou nas suas malas e saiu para o cais. O ambiente era movimentadíssimo, cheio de apitos e gritos, com gente a correr para o barco e outros a formarem filas para controlo dos passaportes. Um pequeno pormenor começou a intrigar-nos: não aparecia ninguém com ar de que estivesse à nossa espera...

O nosso político, de fato escuro e Church brilhantes, olhava ansioso para todo o lado mas, muito especial e insistentemente, para o meu colega e para mim, responsáveis naturais por uma logística que, pelos vistos, começava a falhar. Mirando em volta, ambos nos interrogávamos, em silêncio, sobre o que fazer. O meu colega decidiu ir até à entrada do porto, a fim de ver se acaso não estaria lá alguém. O jovem político ficou então "encarregado" de tomar conta das malas - e guardarei para sempre essa imagem, um tanto ridícula, de uma figura com uma gravidade inquieta, algo intimidado pela coreografia incontrolável de uma África em que quase acabara de aterrar, encastelado com malas em volta. Por mim, dediquei-me a preencher os formulários dos passaportes, umas imensas folhas, em duplicado, onde o que eu ia escrevendo se misturava com gotas de suor que caíam sobre o papel, tipo almaço, onde se alastravam em manchas, num braseiro de mais de 40 graus, sob um sol tórrido.

À distância, o político continuava a olhar-nos, já pálido, num silêncio de raiva, com a nossa imagem profissional a cair a pique. O meu colega regressou, entretanto, da sua expedição com um "carão" preocupado: não estava ninguém no portão do porto a aguardar-nos. Disse que tinha visto táxis no alto de uma rampa, até onde as nossas bagagens teriam de ser transportadas. E ir para onde? Em voz baixa, com o meu colega, fizemos mais duas constatações "dramáticas": não fazíamos a menor ideia de qual era o hotel onde ficaríamos alojados e, o que era mais grave, não tínhamos nenhum dinheiro local. É que tudo estava nas mãos do agora "maldito" cônsul honorário, que, por essa altura do campeonato, já estaria demitido, num despacho virtual gizado na cabeça do jovem político.

Foi então que o meu colega "inventou" uma solução genial. Subi a rampa, falei dois motoristas de táxi, perguntei-lhes se sabiam onde era o "Hotel Hilton" (nome comum que me veio à ideia, mas não havia nenhum Hilton por lá, perguntaram se não seria o Méridien, disse que sim, para nós qualquer solução servia), contratou-se com eles um preço e foi-lhes dito para arranjarem carregadores para trazerem as malas desde o porto, para pagarem a esses carregadores (ficaram perplexos, mas aceitaram), que depois faríamos contas no hotel (lá chegados, logo veríamos se era esse hotel, mas, pelo menos, estaríamos instalados num "lobby" e aí trocaríamos dinheiro). Alugaram-se dois taxis, um para nós e outro para as malas.

O nosso político descrispou um pouco e abancou no táxi que, embora imundo, era a única hipótese que se desenhava. Quando eu, instalado à frente, levantei um pouco a voz ao motorista, que, percebendo o nosso embaraço, estava a querer renegociar o preço, saiu-se com um "não fale assim com os locais!". Eu ia-me passando! O meu colega, homem já com muitas Áfricas, acalmou-o, acalmando-me: "Deixe-o lá! Ele sabe lidar com isto. Não se esqueça que o último posto dele foi em África..."

"To make a long story short": o hotel era mesmo o Méridien, o nosso pobre cônsul, alertado da nossa chegada e arribado pouco depois, ainda ouviu uma zarabanda das antigas antes de ter tempo para explicar que, afinal, a culpa do que tinha acontecido era toda nossa: é que tínhamo-nos precipitado, saindo no porto errado. Devíamos ter aguardado pela acostagem seguinte, um pouco adiante, onde, numa sala VIP, nos esperavam autoridades locais, bebidas frescas e carros oficiais de luxo. E o homem explicou mesmo que todos julgavam que já não viríamos...

Nunca mais esquecerei essa travessia do rio Congo (ou Zaire), por onde já tinha andado o meu conterrâneo Diogo Cão, nos idos de quinhentos, sem táxis nem hotéis nem cônsules. 

9 comentários:

Anónimo disse...

Pois eu, Senhor Embaixador, como sabe, fui mordomo do falecido Presidente Mobutu e muitas vezes servi no navio dele em viagens pelo rio Congo, o que nos nos divertíamos, o que se ria naquelas viagens! E verdade que íamos atirar carne aos crocodilos, mas e falso, uma calunia, que fossem os lideres da oposição, pois se nao havia oposição!....Bons tempos, que nao voltam! Esse e que era um patrão de verdade, nao era como o Senhor Alcipe, que... Bom, eu sei que o Senhor Embaixador e amigo dele, calo-me. Olhe, aqui a malta do Golungo anda preocupada, já adivinha com que, veja la se da ai uma palavrinha ao primo do amigo do outro que foi seu vizinho, esta a entender? Despeço-me com saudade

a) Feliciano da Mata, apaziguador de crises

patricio branco disse...

os sapatos church servem em qq lado e continente
em certos países há taxis onde de dentro e através do chassis se vê o piso da estrada por um buraco
é bom sempre negociar a tarifa antes de entrar no taxi
possivel perfil ou curriculo de jovens promissores politicos
secretário de estado, ministro, primeiro ministro, presidente da comissão europeia, presidente da republica
os meridiens são uma solução, o menor dos males, em certos sitios
os consules honorarios funcionam e são desembaraçados a maioria das vezes e sentem se honrados
o calor que há por esses sítios...
historia divertida e bem contada, à medida que lemos vemos/imaginamos a situação como se assistissemos
a áfrica que cativa e vicia, fica para sempre nas memórias de quem lá viveu, será esta ou outras?
é pena que em moçambique as coisas se compliquem, quando o país parecia ter reencontrado a paz e progredia, etc

Anónimo disse...

Mesmo assim, a regra do "desenrascanso" funcionou. O Ministro é que deve recordar aquele dia como um dos mais angustiantes da sua vida. É que quando se passa a vida toda a ser assistido... E talvez lhe tivesse valido a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, para melhor suportar aquela aventura...
José Barros

margarida disse...

Um filme! Uma delícia. Mas que falta fazem os nomes..., que falta...
Ficava tudo mais compostinho ;)

Portugalredecouvertes disse...

semelhante episódio acontece na Ria Formosa, em pleno verão presenciei que o mesmo ferry leva os turistas com partida de Olhão para a ilha da Culatra e para a ilha do Farol
acontece que a ilha da Culatra fica na primeira paragem, portanto o bilhete é um pouco mais barato

mas vi a carrada de turistas descer na ilha da Culatra quando levavam bilhete para a ilha do Farol,
é que ninguém avisa e só se vê que é a Culatra porque existe uma pequena tabuleta de madeira que facilmente passe despercebida, presa num poste do pequeno cais
Então os nossos turistas não irão à procura da receção consular, mas poderão pensar que Portugal já terá vendido o farol para pagar dívidas ou coisa do género!

ARD disse...

Imagino que o passo seguinte terá sido uma ida à piscina para uns "refrescos".
E, como a África dos Meridiens e dos Hiltons é pequena, talvez tivessem encontrado, calmas e refrescadas, algumas caras conhecidas.

Francisco Seixas da Costa disse...

O que você sabe, ARD, o que você sabe...

Anónimo disse...

Numa certa medida, é o (Seixas da) Costa de África.

Isabel Seixas disse...

Imprevistos acontecem...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...