Há uns anos, fui a Madrid chefiar uma delegação portuguesa. Sentado à mesa de trabalho no palácio de Santa Cruz (equivalente ao nosso palácio das Necessidades), iniciei espontaneamente a minha intervenção em espanhol. Segundos depois, dei-me conta que o meu nível de expressão em língua espanhola, sendo mais do que suficiente para uma conversa solta, não dava para sustentar quase duas horas de trabalho técnico, recheado de expressões que não podem dar lugar a um mínimo de ambiguidade.
(Até 1979, eu nunca tinha ousado expressar-me em espanhol. Lia muito bem a língua, percebia-a falada, mas eu próprio falá-la era bem diferente. Daí que raramente ousasse pedir mais do que "un solo".... Quando fui viver para a Noruega, o meu primeiro grupo de amigos era composto por diplomatas espanhóis, brasileiros e latino-americanos. Com algum esforço, tive de começar a "aculturar-me" ao espanhol, que era a língua franca nesse meio. A curiosidade fez-me mesmo comprar uma gramática e livros de exercícios de espanhol. Mas nunca fui muito longe, confesso... Logo nas primeiras férias em Portugal, numa deslocação a Verín, na Galiza, entrei numa loja e teimei em testar o meu espanhol. O comerciante galego sorriu para mim, com um ar piedoso, e disse-me: "Por que não fala português? Percebemo-lo melhor...")
Mas voltemos a Santa Cruz. Ao constatar o esforço que a "habla" me estava a custar (no fundo, repercutindo a tirada do lojista galego..,) o meu contraparte espanhol, Ramón de Miguel, que entendia bem o português, propôs-me o seguinte:
- Eu falo espanhol e tu falas português. Se ambos falarmos devagar, as nossas delegações entendem.
Os minutos seguintes vieram a provar que isso não era verdade. Se, para o nosso lado, era relativamente fácil acompanhar o que o meu contraparte espanhol dizia, notei que, falando em português, mesmo que artificialmente mais lento, a restante delegação em frente a nós tinha dificuldade em entender-me. A constatação disso, ao final de alguns minutos, acabou por pôr-nos todos a falar... em francês!
Porque me lembro disto agora? Porque, há dias, num congresso em que participei na Turquia, sobre a América Latina, vi-me envolvido numa situação complicada, ligada ao uso do espanhol.
As línguas oficiais eram o turco, o espanhol e o inglês. Durante o voo, preparei uma intervenção para cerca de 40 minutos, que deveria pronunciar num mano-a-mano com a antiga ministra dos Negócios Estrangeiros, Trinidad-Jimenez. Cabia-nos a ambos pronunciar as "conferencias magistrales" que encerravam o primeiro dia de trabalhos. Tendo o inglês como opção, não hesitei um segundo em escolher essa língua.
Para além de dois discursos iniciais de figuras oficiais, em turco, durante o congresso toda a gente falou em espanhol, mesmo os turcos e brasileiros presentes. À medida que se aproximava o momento de intervir, comecei a angustiar-me: só eu falaria em inglês? Isso iria soar muito estranho e obrigaria à mobilização dos aparelhos de interpretação por parte do auditório, que, sem exceção, entendia e falava espanhol.
Foi então que tomei uma decisão, da qual, confesso, me viria a arrepender: decidi falar no "meu" espanhol. No passado, já tinha feito três intervenções nessa língua (uma no Chile, outra no Uruguai, uma outra em Espanha), mas todas haviam sido baseadas em textos escritos, previamente testados com cultores da língua. Desta vez, porém, iria improvisar, com base num texto... em inglês! Na prática, usei um "portuñol" que, no entanto, me deu imenso trabalho. Durante mais de meia-hora, fiz tudo para ser compreendido. Julgo que as pessoas acabaram por perceber o que eu disse, muito embora reconheça que aquela não foi a minha "finest hour". Mas foi uma das mais difíceis!
Decidi que este foi o derradeiro teste ao meu "portuñol". A partir de agora, só o usarei em conversas "ligeiras", nas "tiendas" ou para pedir um café...
Decidi que este foi o derradeiro teste ao meu "portuñol". A partir de agora, só o usarei em conversas "ligeiras", nas "tiendas" ou para pedir um café...
16 comentários:
Gostei das estórias; com um senão: Por supuesto no hay lengua española, pero que sí castellana...
Achei imensa piada ao post.
Além de ter vivenciado situações idênticas concordo que falar espanhol
é difícil.
Lido na vida profissional com muitos espanhóis que dizem "estar" a falar português...Mas também os entendo melhor a falar espanhol...
Mais uma bela página relativa à importância da nossa língua, tão defendida por alguém que até na Galiza a esquece...
(sinceramente, ir à Galiza falar Castelhano é das coisas mais culturalmente ridículas que se pode fazer).
em rigor, tese que poderia ser penso defendida por linguistas ou historiadores das linguas, não serão o português e o espanhol variantes ou dialectos duma mesma lingua iberica, tal como o galego, o catalão, o balear, falares que por razões politicas e históricas, nacionalistas,foram denominados com diferentes designações?
agora já não seria possivel voltar atrás nas identidades linguisticas, mas teoricamente poderia ser tese com algum sustento.
sempre me interroguei porque (se diz que) os portugueses percebem melhor o espanhol que os espanhois o português, se é que isso é mesmo assim. não haverá outra razão mais disfarçada, por ex. por imaginada superioridade duma das partes? (para te perceber tens de falar a minha, à tua não baixo...). ou o sentido do ridiculo, não vou falar o que não domino bem, e cometer disparates como tu que pensas que tudo é simples e tudo vale.
as 2 linguas têm de ser igualmente faceis ou dificeis para os 2 lados.
mas quem queira dominar bem uma ou outra, usá la profissionalmente, terá de ter atenção e estudá las, isso sem duvida.
enfim, historias e reflexões, incluindo memórias diplomáticas...
Por uma vez, a 'velha senhora' concorda com o caro Catinga:
vem com razão o catinga
e antunes ferreira vem
espanhol não é uma língua
espanha mais línguas tem
castelhano é que convém
mas falá-lo na galiza
meu amor que mal que fez
galego gosta e precisa
do galaico-português
não nos ofenda outra vez
Creio que a opção de falar outra língua que não o espanhol, o inglês ou o francês por exemplo são as mais sensatas.
Já optei por isso e tento sempre manter a decisão, apesar de por simpatia, por vezes me sentir tentado a reverter para Portunhol.
Os espanhóis não nos compreendem a falar português, mesmo "de espacio" e por vezes isso pode dar mal entendidos com os nossos interlocutores.
Recomendo sempre a utilização do inglês ou francês para situações onde tal seja possível e noutras onde tal não seja politicamente possível, creio que se deve falar em Português, recorrendo à tradução simultânea.
(sinceramente, ir à Galiza falar Castelhano é das coisas mais culturalmente ridículas que se pode fazer).
Catinga, enfim, há coisas mais culturalmente ridiculas do que essa... os galegos não têm problema nenhum com isso.
A alguns comentadores: em 1979, falar castelhano na Galiza não era o mesmo que hoje. E, que eu saiba, o castelhano ainda é a língua oficial de toda a Espanha...
Cerca de 2 meses por ano convivo com Sevilhanos.Entendo melhor o espanhol escrito. Se falado é mais complicado, no entanto, quando as palavras não são entendidas, recorremos aos sinónimos e há de facto muitas palavras com identico significado.
Os espanhóis criticam a palavra "obrigado". Exclamam, obrigado! Nós dizemos (eles)"muitas gracias"
E têm razão.
BH
"(...) que eu saiba, o castelhano ainda é a língua oficial de toda a Espanha"
De uma assentada, demonstra desrespeito pelas identidades regionais (nacionais) existentes no estado espanhol, subserviência cultural e falta de visão no que toca à (possível) influência lusa junto do único povo que é, realmente, nosso irmão (os Galegos).
De repente lembrei-me daquela prestação da Amália Rodrigues que, num programa de TV Galego insistia em falar castelhano, em quase duelo com o apresentador galego que em Galego se expressava...
E pensar que há galegos que AINDA HOJE vão a tribunal lutar pelo direito a expressarem-se em Galego/Português nas universidades...
Uma das razões apontadas para a dificuldade dos espanhóis em falar outras línguas é o facto de dobrarem em castelhano galego ou catalão todos os programas das televisões inibindo o treino do ouvido para apreender outras línguas...
Há muita gente na Galiza que fala castelhano.
"o castelhano ainda é a língua oficial de toda a Espanha..."
de toda a espanha menos gibraltar, sr embaixador!... de toda a espanha menos gibraltar!
cumprimentos
Caro/a BH
A 'velha senhora', minha velha amiga, está muito linguistico-patrioteira…:
bê-agá, quem quer que seja,
não têm espanhóis razão:
com bem-haja lhes deseja
português, do coração,
que tenham vida em beleza;
obrigado é obrigação
que sentimos, com certeza
delicada de atenção
pra co'os outros, devotados
a que sejam o que são,
se respeitam, respeitados.
esta é a minha opinião!
Hoje a 'velha senhora' não para. Ditou-me isto, no seguimento do comentário do caro Patrício Branco, a quem, aliás, se dirige em post scriptum:
à linguista que não sou
pois pra médica estudei
viver a ler ensinou
quanto sei - mas nada sei
o que marca o português
eu diria ao bom patrício
é velhice e pequenez
uma ao fim outra ao princípio
por pequenos sempre temos
que entender outros maiores
que nos tratam de somenos
com prosápias de senhores
já por velha a língua abriu-se
tantos sons ora contém
que línguas doutras raízes
entendemos mal ou bem
isto escrevo sem saber
que eu só quero é rimalhar
sem pensar neste poder
que me faz faltar o ar
ps
que memórias diplomáticas
aqui cita com agrado?
em missões minhas erráticas
tê-lo-ei eu encontrado?
Conta-se que um Ministro dos Negócios Estrangeiros português no tempo de Salazar e Franco foi a Madrid para um encontro sendo que no fim estava prevista uma conferência de imprensa.
Os Ministros chegaram atrasadíssimos.
Coube a vez ao nosso MNE de falar primeiro que, no seu melhor “portuñol”, começou assim.
Queridos Jornalistas(?)
Me sinto mui embaraçado (?) por lhegar atrasado...
Gargalhada geral na sala.
Não sei de foi assim, mas que tem graça tem
A frequentar este ano o Master 2 d'Études Ibériques et Latino Américaines na Sorbonne (aulas leccionadas em francês, espanhol, português...e inglês) dou-me conta que os professores sao bem mais condescendentes com o "portuñol" dos meus colegas hispanos do que com o "espanholês" de alguns colegas lusofonos !
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