domingo, novembro 27, 2016

"Não lhes perdoo"!


Hesitei republicar este texto, que tem precisamente um ano, o tempo que decorreu desde a saída do poder da fórmula governativa que dirigiu o país desde 2011. Alguns amigos, próximos da antiga maioria, acharam que nele fui longe demais, na minha muito explícita rejeição desse tempo. Relendo-o, em perspetiva, verifico que fui apenas tão longe quanto a minha indignação pessoal então reclamava. E não lhe retiro uma linha. Ele aqui fica, para que esse passado recente se não esqueça nunca: 

Acaba hoje aquela que constitui a mais penosa experiência política a que me foi dado assistir na minha vida adulta em democracia. Salvaguardadas as exceções que sempre existem, quero dizer que nunca me senti tão distante de uma governação como daquela que este país sofreu desde 2011.

Não duvido que alguns dos governantes que hoje transitam para o passado tentaram fazer o seu melhor ao longo destes cerca de quatro anos e meio. Em alguns deles detetei mesmo competência técnica e profissional, fidelidade a uma linha de orientação que consideraram ser a melhor para o país que lhes calhou governarem. Mas há coisas que, na globalidade do governo a que pertenceram, nunca lhes perdoarei.

Desde logo, a mentira, a descarada mentira com que conquistaram os votos crédulos dos portugueses em 2011, para, poucas semanas depois, virem a pôr em prática uma governação em que viriam a fazer precisamente o contrário daquilo que haviam prometido. As palavras fortes existem para serem usadas e a isso chama-se desonestidade política.

Depois, a insensibilidade social. Assistimos no governo que agora se vai, sempre com cobertura ao nível mais elevado, a uma obscena política de agravamento das clivagens sociais, destruidora do tecido de solidariedade que faz parte da nossa matriz como país, como que insultando e tratando com desprezo as pessoas idosas e mais frágeis, desenvolvendo uma doutrina que teve o seu expoente na frase de um anormal que jocosamente falou, sem reação de ninguém com responsabilidade, de "peste grisalha". Vimos surgir, escudado na cumplicidade objetiva do primeiro-ministro, um discurso "jeuniste" que chegou mesmo a procurar filosofar sobre a legitimidade da quebra da solidariedade inter-geracional.

Um dia, ouvi da boca de um dos "golden boys" desta governação, a enormidade de assumir que considerava "legítimo que os reformados e pensionistas fossem os mais sacrificados nos cortes, pela fatia que isso representava nas despesas do Estado mas, igualmente, pela circunstância da sua capacidade reivindicativa de reação ser muito menor dos que os trabalhadores no ativo", o que suscitava menos problemas políticos na execução das medidas. Essa personagem foi ao ponto de sugerir a necessidade de medidas que estimulassem, presumo que de forma não constrangente, o regresso dos velhos reformados e pensionistas, residentes nas grandes cidades, "à provincia de onde tinham saído", onde uma vida mais barata poderia ser mais compatível com a redução dos seus meios de subsistência.

Fui testemunha de atos de desprezo por interesses económicos geoestratégicos do país, pela assunção, por mera opção ideológica, por sectarismo político nunca antes visto, de um desmantelar do papel do Estado na economia, que chegou a limites quase criminosos. Assisti a um governante, que hoje sai do poder feito ministro, dizer um dia, com ar orgulhosamente convicto, perante investidores estrangeiros, que "depois deste processo de privatizações, o Estado não ficará na sua posse com nada que dê lucro".

Ouvi da boca de outro alto responsável, a propósito do processo de privatizações, que "o encaixe de capital está longe de ser a nossa principal preocupação. O que queremos mostrar com a aceleração desse processo, bem como com o fim das "golden shares" e pela anulação de todos os mecanismos de intervenção e controlo do Estado na economia, é que Portugal passa a ser a sociedade mais liberal da Europa, onde o investimento encontra um terreno sem o menor obstáculo, com a menor regulação possível, ao nível dos países mais "business-friendly" do mundo".

Assisti a isto e a muito mais. Fui testemunha do desprezo profundo com que a nossa Administração Pública foi tratada, pela fabricação artificial da clivagem público-privado, fruto da acaparação da máquina do Estado por um grupo organizado que verdadeiramente o odiava, que o tentou destruir, que arruinou serviços públicos, procurando que o cidadão-utente, ao corporizar o seu mal-estar na entidade Estado, acabasse por se sentir solidário com as próprias políticas que aviltavam a máquina pública.

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, fui testemunha de uma operação de desmantelamento criterioso das estruturas que serviam os cidadãos expatriados e garantiam a capacidade mínima para dar a Portugal meios para sustentar a sua projeção e a possibilidade da máquina diplomática e consular defender os interesses nacionais na ordem externa. Assisti ao encerramento cego de estruturas consulares e diplomáticas (e à alegre reversão de algumas destas medidas, quando conveio), à retirada de meios financeiros e humanos um pouco por todo o lado, à delapidação de património adquirido com esforço pelo país durante décadas, cuja alienação se fez com uma irresponsável leveza de decisão.

Nunca lhes perdoarei o que fizeram a este país ao longo dos últimos anos. E, muito em especial, não esquecerei que a atuação dessas pessoas, à frente de um Estado que tinham por jurado inimigo e no seio do qual foram uma assumida "quinta coluna", conseguiu criar em mim, pela primeira vez em mais de quatro décadas de dedicação ao serviço público - em que cultivei um orgulho de ser servidor do Estado, que aprendi com os exemplos do meu avô e do meu pai -, um sentimento de desgostosa dessolidarização com o Estado que lhes coube titular durante este triste quadriénio.

Por essa razão, neste dia em que, com imensa alegria, os vejo partir, não podia calar este meu sentimento profundo. Há dúvidas quanto ao futuro que aí vem? Pode haver, mas todas as dúvidas serão sempre mais promissoras que este passado recente que nos fizeram atravessar. Fosse eu católico e dir-lhes-ia: vão com deus. Como não sou, deixo-lhes apenas o meu silêncio."

16 comentários:

Ibmartins disse...

Subscrevo na íntegra. E hoje ao ler o seu texto volto a sentir a mistura de revolta, impotência e vergonha que me acompanhou ao longo desses negros 4 anos.
Não têm perdão.
E é bom não esquecer porque não podemos deixar que gente dessa volte a ter poder no nosso país, por mais voltas que a vida venha a dar.

Anónimo disse...

Por mim, nunca me irei esquecer do que fizeram e nunca lhes irei perdoar. Mas como há pessoas que têm a memória curta, convêm publicar este texto de vez em quando!

Anónimo disse...

O sentido democrático, o apreço pela liberdade de expressão dos desse Governo está bem identificado na perseguição judicial a um dos ofendidos pela peste grisalha ou a um cidadão que disse o que tinha a dizer da inconcebível, mesquinha e rancorosa figura que com a sua presença poluiu o palácio de Belém antes de Marcelo ter sido eleito Presidente da República.

Liberdade, sim, mas para eles; falar, sim, mas para eles. Empregos, sim, mas para eles; saúde, sim, mas para eles; educação, sim, mas para eles; casas sim, mas para eles

Anónimo disse...

Excelente texto. Devo dizer que, quanto mais vamos conhecendo do período compreendido entre 2008 e 2015, através da publicação de relatórios de organizações internacionais, trabalhos académicos, desabafos de responsáveis políticos da altura, ds contratação de responsáveis europeus pelo grande responsável pela crise de 2008, que a história será pouco meiga para os aprendizes de feiticeiros e respetivas clientelas que nos desgovernaram durante quase 5 anos.

Anónimo disse...

Deve publicar este texto todos os anos, apesar da memória dos portugueses parecer agora menos curta do que era.

Um abraço

JPGarcia

A JOGATANA disse...

Durante 4 anos quantos bandos de pássaros, quero dizer vacas, poderemos ver esvoaçando sobre as nossas cabeças?

Se de um pardal do telhado, já incomoda qualquer careca!...muito cuidadinho!

arber disse...

Muito obrigado Senhor Embaixador por esta republicação.
Lembro-me perfeitamente de o ter lido o ano passado.
Lembro-me também que, como aposentado da função pública e fazendo também parte, em fase já bem avançada, do grupo da "peste grisalha", acabei a leitura com a revolta e a raiva a apertarem-me a garganta e as lágrimas a toldarem-me os olhos.
É tão profundamente dolorosa a recordação desses tempos que sinto que nunca serei capaz de lhes perdoar, nunca!

jj.amarante disse...

Belo texto que subscrevo e parece-me uma boa ideia republicar de vez em quando.

Anónimo disse...

Texto interessante.

Foi um período complicado e difícil, mas convém não esquecer que Portugal passou por ele devido à bancarrota do Governo Sócrates.

Não esquecer que quem teve que intervir e chamar a ajuda externa foi o então Ministro das Finanças Teixeira dos Santos.

Sendo funconário público, fui daqueles que senti de forma brutal os cortes que me impuseram. Espero que tenham servido para alguma coisa, mas não sei. Basta ver o crescimento da dívida pública portuguesa nos últimos 12 meses.

Espero que daqui a algum tempo não seja necessário vir novamente um Governo PSD reparar o que agora está a ser feito e desfeito.

Francisco Tavares disse...

Faz muito bem em republicar. É um "instrumento" fundamental, a memória.
Assim como convém ter presente que não foi a bancarrota do Sócrates (que também tem as suas culpas no cartório). Foi a bancarrota das decisões tomadas sucessivamente desde o tempo dum senhor chamado Cavaco Silva (privatizações, desregulamentação do mercado financeiro, adesão ao euro), da abertura da OMC e alargamento da UE mantendo um euro amigo dos alemães (e outros) e inimigo dos portugueses, o crédito fácil com a inundação dos dinheiros vindos das poupanças da Europa do norte, e claro, a capitulação socratiana perante as políticas irresponsáveis, melhor dizendo, imperiais, de Bruxelas.

Anónimo disse...

"Basta ver o crescimento da dívida pública portuguesa nos últimos 12 meses",

Ou seja, o anónimo de 27 de novembro de 2016 às 23:38 escreve, escreve e não percebeu nada do modo, necessidades e motivos que levaram ao crescimento da dívida pública.

Não lhe serviu de nada a omnipresença dos economistas nas televisões durante quatro anos e meio. Não admira, quiseram dar a ideia de que Portugal se endividou sem necessidades de desenvolvimento e de que os juros usurários não seriam protelados e impagáveis.

Anónimo disse...

"Viva" os 43%, nem o picareta falante conseguiu ..... a caminho do remake da comédia musical de Sócrates & Durão:

"Porreiro Pá"

AV disse...

À luz da distância de um só ano, mas com um modelo tão diferente quanto as condições que temos o permitem (não há milagres aqui), sim, o texto continua a fazer completo sentido.

Anónimo disse...

Publicado por Vital Moreira
Segundo este números, a dívida pública bruta cresceu no últimos doze meses mais de 37 milhões de euros por dia, o maior aumento diário desde 2012, no pico da crise e do programa de assistência externa.
Mesmo admitindo que a dívida líquida tenha crescido a um ritmo um pouco menor (dado o aumento de depósitos, por razões de segurança), ainda assim são números pouco tranquilizadores.

Fantástico!
João Vieira

Joaquim de Freitas disse...

Fico sem saber o que o Senhor João Vieira quer dizer ao escrever "Fantástico" ! :


Fantástico, isto está mau e vai para pior... ou, Fantástico isto está bom e vai ser ainda melhor.

Só faltou o "Viva Portugal" ., que seria neutro.

Francisco Tavares disse...

Isto da referência à dívida pública só pode merecer o comentário seguinte:
E? E depois?

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...