sábado, outubro 15, 2016

À conversa

Ontem na Antena 2, tive uma excelente hora de conversa, moderada por Luis Caetano, no programa "Um certo olhar", com Gabriela Canavilhas e Luisa Schmidt, duas mulheres muito inteligentes (e muito bonitas). Falámos (claro!) da eleição de Guterres e do que ele pode vir a fazer, mas também de Trump e das declarações a seu respeito do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, bem como do Nobel atribuído a Bob Dylan e de bibliotecas e livros. (Quem estiver interessado no programa, pode ouvi-lo aqui.)

(Para ilustrar, envergonhadamente, o caos da minha arrumação de livros, contei uma história, incrível mas verdadeira: há dias, precisei de um texto que escrevi há anos num livro da minha autoria; corri várias estantes... e não consegui encontrar um único exemplar desse livro!)

Na conversa, falei dos livros "a mais" que tenho, em estantes e em caixotes, da falta de tempo para os ler e, mesmo assim, da pulsão incontrolável para comprar, a cada dia, ainda mais livros, na velha lógica de que melhor do que ler um livro só é comprá-lo! Mal eu sabia que, ao final da tarde de hoje, regressaria a casa com mais 9 livros! Alguns policiais, talvez para comemorar o novo imposto sobre munições...

José Lello


Conheci pessoalmente José Lello num encontro que Jaime Gama organizou no seu gabinete da Assembleia da República, juntamente com José Lamego, ainda antes da nossa tomada de posse no primeiro governo de António Guterres, em finais de outubro de 1995. Já nos havíamos cruzado algumas vezes, curiosamente sempre no estrangeiro, mas apenas em ocasiões sociais e circunstanciais. 

Talvez porque algumas memórias comuns do Porto tivessem sido evocadas, entre o Zé e eu perpassou de imediato uma corrente de simpatia, que o tempo veio a converter em sólida amizade. Uma amizade de duas décadas, que nunca teve uma sombra, uma reticência, sempre sublinhada com um imenso e caloroso abraço, como aquele que, há meses, demos na Versailles, aqui em Lisboa, da última vez que nos vimos.

Correndo o assumido risco de entrar no terreno da polémica, mas julgando ter alguma autoridade profissional no terreno para afirmar o que penso, não tenho dúvidas em qualificar José Lello, a par de Manuela Aguiar, dos melhores secretários de Estado das Comunidades Portuguesas que a governação democrática produziu. Durante mais de cinco anos, tive o ensejo de acompanhar de perto o trabalho de Lello e pude testemunhar o entusiasmo com que se dedicou à tarefa e os excelentes resultados que na sua execução obteve. 

José Lello era um personalidade frontal e com imensa coragem. Tinha alguns ódios de estimação e estes retribuiam-lhe no registo público com que ele os enfrentava e, não raramente, os afrontava. Tinha a palavra fácil, o coração ao pé da boca, mas uma grande lealdade aos amigos, típica da gente do norte. O sorriso, a alegria e a simpatia eram a sua imagem de marca. Caloroso, agradável e belo contador de histórias, ficou célebre a sua definição do "núcleo duro" do chamado "gamismo", isto é, dos apoiantes de Jaime Gama nos anos 80 e 90: "No gamismo, éramos quatro: o Jaime Gama, o Miranda Calha, o Eduardo Pereira e eu. Agora só somos três: o Gama saiu..."

José Lello morreu ontem. Deixo aqui um abraço sentido à sua família.

sexta-feira, outubro 14, 2016

Imposições


"Leiam os meus lábios: não vai haver novos impostos". E houve. A frase de 1988 do presidente americano Bush (pai) ficou célebre pelo seu tom enfático e foi erigida como mais uma das mentiras históricas que vão ajudando à erosão da credibilidade dos políticos, perante os eleitores com alguma memória.

Dizer uma coisa e fazer outra em matéria de impostos passou mesmo a ser uma banalidade na atitude dos Estados, que hoje já só surpreende os mais ingénuos.

Entre nós, o debate público sobre a fiscalidade tem vindo a aumentar de tom. Fala-se hoje muito mais de impostos do que era habitual no passado, talvez pelo facto dos cidadãos, face aos escândalos bancários e às notícias sobre corrupção envolvendo bens do erário público, se terem tornado mais atentos e informados. Daí que a preocupação com o uso que se faz daquilo que o Estado lhes tira dos bolsos tenha crescido. E ainda bem, porque isso obriga os agentes políticos a serem mais transparentes. Infelizmente, isso não os inibe de manterem taxas de fiscalidade verdadeiramente escandalosas.

Mas porque é que isso acontece? Porque a máquina do Estado tem a dimensão e o peso financeiro que tem - e que nem sequer é muito exagerada, em termos comparativos europeus, por muito que se diga o contrário. Parte substancial da despesa pública corrente tem uma grande rigidez, dado que dela dependem áreas vitais do Estado, como ficou patente no fracasso de muitas das medidas para atacar as supostas e míticas "gorduras" estatais, que nem mesmo a troika foi capaz de eliminar. Acresce que o serviço da dívida é um encargo incontornável e o ataque às pensões de reforma tem limites que só a indecência política do anterior Governo austeritário teve o desplante de considerar como legítimo ultrapassar.

A verdade é que, no quadro europeu atual, a certos Estados restam muito poucos meios para conseguirem fazer a "quadratura do círculo". A pressão externa, feita por essa "ASAE do euro" que dá pelo nome de Comissão Europeia, obriga a constrangimentos quantitativos em matéria de redução de défice e percurso de redução da dívida, num modelo "one fits all", que praticamente trata da mesma forma economias desafogadas e com excedentes e países com défices endémicos de competitividade e situações conjunturais graves.

Enquanto as coisas se processarem desta forma, enquanto o peso das dívidas públicas não for revisto, enquanto cada economia não puder ter objetivos de convergência, quantitativos e temporais, realistas e adaptados à sua real capacidade, os governos nacionais só têm um instrumento para poderem mostrar-se "cumpridores" no retrato anual apresentado a Bruxelas: jogar com os impostos nacionais, por muito que isso retraia o consumo (e o crescimento) e abafe a atividade dos agentes económicos.

quinta-feira, outubro 13, 2016

Dylan


Com a idade, fico mais inseguro. Estava hoje numa reunião, a tratar da construção de estradas e de pontes noutras partes do mundo, quando alguém me sussurrou: "o prémio Nobel da Literatura é para Bob Dylan". Fiquei com aquele ar que o general Pedro Cardoso, nos meus tempos das "secretas" militares, me aconselhou a ter sempre perante novidades: impávido e não surpreendido. 

É que eu não tive a imediata certeza de que estivéssemos a falar "do" Bob Dylan mais óbvio, do cantautor que eu ouvira em Oslo, em Londres e em Viena - em três espetáculos que (aqui entre nós) não me entusiasmaram por aí além. De quem tenho um monte de CDs.

Sou um assumido ignorante (relativo, claro) em matéria de literatura. Nunca li algumas obras tidas por "incontornáveis", não sigo as novidades que se publicam e, mais importante do que tudo, tenho ano após ano sido confrontado com vencedores do Nobel da literatura de quem nunca tinha ouvido falar. E já perdi a vergonha de o confessar.

Por isso, quem me podia assegurar que esse tal de Bob Dylan não era um poeta qualquer do Burkina Faso ou um romancista do Sudão do Sul?  Desde que por essa África antes chamada de "negra" (com o politicamente correto atual já não sei como dizer) surgiram líderes políticos com nomes de estrelas de rock, como John Garang ou Jerry Rawlings, tudo é possível! 

Mas não! Era mesmo o Bob Dylan. Agora, vai ser por aí uma polémica desatada. Eu acho que se devia começar por entrevistar o Godinho, o Palma e o Fausto - afinal, pares lusos da mesma bela literatura em que Dylan se distinguiu.

quarta-feira, outubro 12, 2016

Não vale tudo!


Zeid Ha'ad Al Hussein, Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos do Homem*, é um diplomata (e príncipe) que foi representante permanente da Jordânia junto das Nações Unidas durante vários anos. 

O seu escritório era por cima do nosso e, também por essa razão, foi o primeiro colega que visitei quando, em 2001, cheguei a Nova Iorque, como embaixador junto da ONU. Mas não só por essa razão: foi também porque me foi dito que era um grande amigo de Portugal. E era. Pouco tempo depois ajudou-me imenso a promover a candidatura de Paula Escarameia na eleição para a Comissão  de Direito Internacional - a primeira mulher que viria a integrar esse órgão, infelizmente já desaparecida.

Hoje, vi que Zeid, nas suas novas funções, fez o que não podia fazer: avisou, em conferência de imprensa, que uma eventual eleição de Donald Trump nos EUA configuria um risco sério para os Direitos humanos no mundo. Mesmo sendo Trump o que é, um funcionário das Nações Unidas não tem o direito de se referir assim, por mais razões de fundo que tenha, a um participante legítimo num ato eleitoral livre num país democrático. 

Não tudo vale, na vida internacional.

(*Escrevo "Direitos do Homem" porque é essa a expressão que figura na Convenção de 1948. Compreendo, contudo, que alguns sigam o mais "faishionable" "Direitos humanos", na condição de que me deem a mim o direito de poder usar a fórmula original).

terça-feira, outubro 11, 2016

... e lá veio a chuva!


Já recebi três telefonemas, neste fim de tarde, a "culpar-me" por ter surgido a chuva. 

"Foste tu que a chamaste com o texto de há dias, a dizer que só havia sol e que tinhas saudade da chuva!" - foi este, basicamente, o tom médio das chamadas.

Pronto, eu assumo as minhas responsabilidades, embora, confesso, não soubesse que este espaço, por muito popular que fosse, chegasse tão "alto". E, também, desconhecia que, "por lá", tivessem um espírito de contradição tão apurado. Que flores de estufa, já não se pode dizer nada!

segunda-feira, outubro 10, 2016

RTP 2


Na tarde de hoje, no programa "Sociedade Civil", sob a moderação do jornalista Luís de Castro, o professor universitário Carlos Gaspar e eu discutimos a história e o destino da Organização das Nações Unidas, tendo como óbvio pretexto a eleição de António Guterres.

É muito agradável participar em programas com uma agenda de puro serviço público, sem constrangimentos de tempo, com espaço para aprofundar os temas, sem polémicas e tendo a vontade de informar como objetivo.

Não me canso de chamar a atenção para o excelente trabalho desenvolvido pela RTP 2, magistralmente dirigido por Teresa Paixão. Encontrei-a à saída e felicitei-a por ter conseguido preservar o "seu" canal da infernal praga para-futebolística (isto é, programas, reportagens e entrevistas sobre futebol, mas sem futebol).

O candidato dos taxistas


O dia é capaz de não ser muito favorável para sondagens democráticas, mas algo me diz que, se chamados a votar sobre qual o candidato presidencial americano que prefeririam, uma esmagadora maioria dos taxistas lisboetas não hesitaria um segundo em favorecer aquele cuja linguagem lhes está mais próxima.

domingo, outubro 09, 2016

Às vezes, chovia!


As novas gerações, que nos dias de hoje vivem aqui em Lisboa, podem não saber, mas, no passado, às vezes, chovia. É verdade! Pequenas gotas de água, aos milhões, frequentemente sob pressão de um ar em movimento a que se chamava vento, desabavam do alto sobre a cidade e molhavam-nos a todos. Para nos protegermos, usávamos uma daquelas sombrinhas com que as senhoras se abrigam dos raios do sol, mas impermeabilizada, chamada guarda-chuva, e vestíamos uns balandraus longos, às vezes impermeáveis, que designávamos por gabardines. Os limpa-párabrisas que se vêm nos carros não existiam então apenas para limpar os vidros, eram utilizados também para afastar as gotas de água com que essa tal chuva enchia a cidade e nos dificultava a visibilidade. É que, nesse tempo, havia inundações que caiam do céu, não apenas as que agora se produzem quando se rompem os canos. Datam, aliás, também desse tempo os telhados inclinados que as casas ainda hoje têm, por onde descia a água provinda da chuva. Ah! E nos dias em que chovia, o sol, que agora brilha em permanência até ser noite, não se via, ficando tapado por um céu cinzento, coberto pelas nuvens, que eram umas espessas formações escurecidas de onde caía a chuva. Era giro!

Vale a pena ter memória, e até alguma nostalgia, desses tempos a que chamávamos "dias de chuva", que às vezes entristeciam as pessoas, mas a que felizmente se deve tanta poesia. Por vezes, confesso que já tenho saudades desses tempos bem longínquos, em que acordávamos e vivíamos, por horas e dias, com a tal chuva a cair sobre nós. Deixo-lhes aqui uma imagem antiga, de arquivo, desses tempos e o link de uma canção que, no Brasil, fizeram mesmo para comemorar tais dias.

sábado, outubro 08, 2016

Fiscais

Não conheço Rocha Andrade, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Mas conheço gente muito diversa e fiável que me diz que se trata de uma figura de muito elevada competência técnica na sua área e de um homem de uma probidade a toda prova. E, no entanto, o lapso da viagem ao euro e o embaraço de agora ser responsável por uma medida legislativa que favorece uma empresa de que é (ainda que ínfimo) acionista fragiliza-o claramente. 

Não sei se Rocha Andrade deve ou não permanecer no governo, mas o seu caso demonstra bem que, nos dias que correm, ser governante impõe regras tão draconianas, obriga a cuidados tais, para não se correr o menor risco de poder vir a ser acusado de qualquer coisa, que deve haver muita gente que deixa de ter paciência para se sujeitar a este escrutínio. Vive-se um tempo triste em que estar em lugares de Estado é, de imediato, fonte de suspeição, de presunção de potencial culpabilidade.

O prefácio

Comprei o livro há minutos. Conhecia as autoras, a sua escrita e o que delas esperava. Gente profissional, competente, rigorosa. Porém, ao ler o prefácio, fiquei, confesso, um tanto surpreendido. O texto era soberbo, culto, informado, muito para além do que eu, legitimamente, esperava do teor do próprio livro. Afinal, concluí, as autoras tinham evoluído muito, muito além do que eu delas esperava - e esperava bastante. Ainda bem! E continuei a ler o prefácio. Quando cheguei ao final, magnífico!, olhei a assinatura. O nome que assinava o prefácio era outro, alguém muito qualificado, um dos melhores analistas do nosso quotidiano político. E agora isto aumenta as minhas expetativas, a minha exigência, quanto ao livro. Espero que as 317 páginas que aí vêm me não desiludam. Há alguma injustiça nisto, não acham?

sexta-feira, outubro 07, 2016

Ainda!



Em Angola, quando se recebe como resposta a palavra “Ainda!” isso significa que a pessoa pretende dizer “Ainda não!”.
Na passada semana, o título desta coluna era “Já combinaram com os russos?”, na dúvida sobre se os alemães, antes de darem ordem de marcha à senhora Kristalina Georgieva para tentar ganhar a secretaria-geral da ONU quase ao bater do gongue, tinham articulado previamente alguma coisa com Moscovo. Afinal, a resposta era “Ainda!”
Não sendo a União Europeia um país, tendo uma ação externa incipiente e coordenada apenas nos mínimos, sendo que dois dos seus membros (daqui a uns tempos será só um) fazem parte inamovível do Conselho de Segurança da ONU e não estão abertos a pôr isso em causa em favor da União, a regra geral, na vida da organização, é que cada Estado europeu “trate da sua vida”, nos vários processos eleitorais. Quando representei Portugal na ONU, alguns dos adversários mais firmes que tivemos de defrontar em processos de candidatura foram, precisamente, os chamados parceiros europeus.
A haver algo de patético neste processo de escolha do novo Secretário-geral não será, assim, a circunstância de haver vários candidatos europeus na corrida, tanto mais que uma certa doutrina destinava ao continente (ou a parte dele) o lugar em disputa. Nem sequer o facto de Angela Merkel se ter mobilizado para promover a mudança da candidata búlgara deve surpreender-nos: Berlim, que não votava em Nova Iorque, estava no seu direito de escolher quem lhe apetecesse, embora fosse um tanto bizarro ver a Alemanha a estimular outro Estado-membro a que mudasse a candidata que vinha a apoiar.
O que me pareceu inaceitável foi ver uma instituição europeia instrumentalizada em favor de uma candidatura improvisada à última hora, com o presidente da Comissão Europeia, a quem compete zelar neutralmente pelos interesses comuns dos Estados-membros, numa desbragada promoção da sua vice-presidente, facultando-lhe uma licença sem vencimento (!) de um mês para ir contrariar as pretensões de outros países europeus, tendo antes promovido abertamente a futura candidata perante Moscovo, deixando que o seu chefe de gabinete utilizasse a sua rede social oficial para apelar ao voto na senhora. A qual, diga-se, regressa agora a Bruxelas algo humilhada e fragilizada, desde logo na sua interlocução futura com o Estados-membros cuja ação pretendeu obstaculizar.
Dir-se-á que tudo está bem quando acaba bem. Talvez, mas se a racionalidade histórica aconselha sempre a que o futuro não assente em ressentimentos passados, tenhamos ao menos a esperança de que Bruxelas tenha aprendido alguma coisa com esta insólita aventura. Tenho uma única certeza: conhecendo-o, António Guterres terá a dignidade de nada fazer, ao longo do seu próximo mandato, que minimamente reflita este momento infeliz da sua Europa.

quinta-feira, outubro 06, 2016

Os vencedores


Há dois vencedores no dia de hoje: António Guterres e as Nações Unidas. 

Guterres venceu esta eleição por mérito próprio, pela sua qualidade como figura política à escala internacional. Assisti de perto ao “crescimento" de António Guterres no plano europeu, ao modo extraordinário como conseguiu projetar Portugal e defender os interesses portugueses numa União Europeia sob a tensão do alargamento e o desafio do euro. E, de forma determinante, à sua magistral gestão da delicada questão de Timor. E o mundo olhou a sua prestação como Alto Comissário das NU para os Refugiados, dando corpo ao slogan que o levara ao poder em Portugal: razão e coração. Mais recentemente, o modo como conseguiu evidenciar as suas qualidades, nas audições nas NU, não me surpreendeu minimamente. Se disso dependesse apenas a sua escolha, tinha a certeza de que dificilmente alguém o derrotaria.

E é aqui que entra também a vitória das NU. O modo como o processo de seleção do novo secretário-geral foi lançado, num modelo que favorecia a visibilidade dos candidatos e permitia fazer uma sua avaliação comparativa, era quase conflitual com o formato opaco, feito de compromissos e "toma-lá-dá-cá", que no passado vigorara. Uma decisão que, na prática, se "cozinhava" no seio dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Ao abrir este ano a um escrutínio alargado o processo de escolha, as NU prestigiaram-se. E, nestas coisas, já não se volta atrás. As NU são também vencedoras neste dia.

(Depoimento que me foi solicitado pelo "Jornal de Notícias")

O sorriso de Samantha


Olhando para ela, para o perfil esguio, algo Modigliani, um "look" procuradamente sereno, aquele esgar um pouco complacente similar ao que a burguesia endinheirada usa afivelar para o comum dos mundos, dir-se-ia uma Kennedy, mesmo que do ramo Peter Lawford, dos que passam férias em Martha Vineyards ou na parte boa dos Hamptons. Se olharmos bem, para as sardas e para a ruivez, também há por ali muito da origem irlandesa (a mesma dos Kennedy, aliás), esses latinos do Norte, pelo que talvez seja isso que justifica a coragem que um dia teve ao chamar "monster" a Hillary Clinton, o que a levou a uma demissão. Ao mesmo tempo, aquela senhora, que só conheço pelas imagens televisivas, foi jornalista e escreveu um livro sobre o genocídio e por ele recebeu o prestigiado prémio Pulitzer.

Chama-se Samantha Power e é a representante diplomática americana junto das Nações Unidas. Quando, na tarde de ontem, ouvi dizer que o Conselho de Segurança se inclinava para indigitar António Guterres como novo SG da ONU, o meu instinto foi "esperar por ela", e olhá-la. E quando o efusivo russo deu por adquirido que era o candidato português que o Conselho ia escolher, descobri-a, finalmente, ao seu lado. E ao vê-la sorrir e anuir com a cabeça, tive então, em definitivo e pela primeira vez, a certeza de que Guterres tinha ganho. É que o apelido da senhora, goste-se ou não, faz toda a diferença nas Nações Unidas.

quarta-feira, outubro 05, 2016

Mind your business?

Foi num almoço, algures no primeiro semestre de 1992, oferecido pelo embaixador português em Londres, António Vaz Pereira, ao ministro dos Assuntos Europeus britânico, Tristan Garel-Jones. Portugal detinha presidência das instituições comunitárias e era de regra juntar os embaixadores europeus com o responsável governamental britânico do setor.

Garel-Jones, que hoje ascendeu à Câmara dos Lordes, era um homem muito simpático, dialogante e inteligente, com forte pendor eurocético. Ficara na pequena história britânica por ter organizado na sua casa, em St. Catherine's Place, dois anos antes, uma célebre reunião conspiratória que seria o início da revolta conservadora que viria a derrubar Margareth Thatcher. Uns anos mais tarde, em 1997, a convite de João Carlos Espada, eu viria a debater com ele a Europa, num ciclo organizado em Serralves, no Porto.

Um dos temas desse almoço, a que eu assistia como então ministro-conselheiro da embaixada, era Schengen e a recusa britânica de integrar aquele espaço de livre circulação europeia. Garel-Jones explicava-nos que era precisamente o desejo de preservar em plenitude a liberdade individual de que se usufruia no Reino Unido que levava à recusa de um acesso incontrolado da travessia das respetivas fronteiras. No seu país (aliás, tal como nos Estados Unidos), não existiam bilhetes de identidade e um qualquer cidadão britânico só era obrigado a identificar-se perante uma autoridade policial (por exemplo, através da carta de condução - que nos EUA não tinham fotografia...) em caso de flagrante delito. Mesmo um estrangeiro que trabalhasse no país não era forçado a revelar a sua nacionalidade, a menos que estivesse sob fundada e juridicamente apoiada suspeita. Ficou-me para sempre a resposta que disse que devia ser dada a um polícia britânico que inquirisse alguém sem razão: "Mind your business!" (Meta-se na sua vida).

Com o tempo e o agravamento das questões migratórias e de segurança, imagino que não seja hoje muito prudente responder "Mind you business!" a um "bobby" londrino...

Lembrei-me desse mítico Reino, agora um pouco menos Unido, essa pátria de liberdades e de proteção de direitos individuais, ao ver hoje o título da capa do "Times", que dá conta da intenção oficial de obrigar as empresas a listar os trabalhadores estrangeiros nas suas fileiras, com vista a avaliar se não haverá postos de trabalho que britânicos poderiam ocupar em seu lugar.

Não era esse exatamente o tema que Garel-Jones referia naquele almoço, mas tem algo a ver com a mudança drástica de mentalidades que hoje atravessa o Reino Unido em matéria de direitos. Uma medida como esta seguramente que agradaria muito a uma figura sinistra como Oswald Mosley, o líder fascista britânico, mas posso imaginar que bastante menos a Winston Churchill. E se Marine Le Pen nela se inspirar?

O mundo está perigoso.

Dora Fonte


Há meses, publiquei aqui isto:

Creio que foi em 1983. Era um casal muito jovem. Ainda estou a vê-los a entrar, pela primeira vez, no meu gabinete, na embaixada em Luanda, onde tinha a meu cargo as questões relativas aos professores cooperantes.

(Como um dia já aqui expliquei, Portugal assegurou, por muito tempo, o envio de cooperantes para as antigas colónias, em especial professores, pagando-lhes uma parte do salário e preservando-lhes o lugar de base. Coube-me, no início da carreira, pré-selecionar os primeiros professores para S. Tomé e Príncipe e a segunda "leva" para a Guiné-Bissau. Em Angola, voltaria a ter os professores cooperantes sob a minha responsabilidade. À distância, acho curioso constatar que, sendo esse tempo um dos mais complicados nas relações bilaterais entre Lisboa e Luanda, a cooperação no ensino se mantivesse intocada).

A Dora e o seu companheiro haviam chegado há pouco de Lisboa. Estavam cansados, algo aturdidos com Luanda, uma cidade difícil, incómoda para deslocações, com imensas limitações em matéria de abastecimentos. A proposta das entidades angolanas era que fossem para Sumbe, antiga Novo Redondo, cidade marítima situada umas centenas de quilómetros a sul de Luanda. Recordo-me que se passaram alguns dias antes que isso acontecesse. Havia uma certa preocupação com essa deslocação. Ao que julgo, seriam os únicos professores cooperantes nessa zona que a guerrilha da Unita de há muito rondava.

Os meses passaram. Um dia, fomos informados que a Dora e o companheiro, bem como cooperantes de outras nacionalidades, haviam sido raptados pela UNITA. Durante semanas, foram conduzidos a pé através de Angola, numa viagem de muitos e muitos quilómetros, da costa até à Jamba, no extremo sudeste do país. Lembro-me da nossa constante preocupação com a possibilidade da coluna poder ser atacada, nesse percurso, pelas forças governamentais angolanas, nomeadamente por via aérea, colocando em risco a vida dos cooperantes. Em especial, tenho presente - e um "antigo vizinho" leitor deste blogue recordará bem isto - um jantar em minha casa, com a presença de um oficial das FAPLA, em que esta questão foi discutida em termos que chegaram a ser muito tensos.

Tudo acabaria em bem. A Dora Fonte e o seu companheiro viriam a ser entregues pela UNITA a instituições internacionais. Depois do seu regresso a Portugal, trocámos mensagens e, como é da lei da vida, acabámos por nunca mais nos ver. Há dias, a Dora contactou-me (vantagens do Facebook). Lançou um livro sobre essa sua fantástica aventura de juventude em Angola.

Depois de publicado este post e da sua reprodução no Facebook, troquei mais mensagens com a Dora, em que precisámos melhor os acontecimentos desse tempo. Acabo agora de saber que a Dora morreu. Tenho imensa pena.

terça-feira, outubro 04, 2016

A minha amiga búlgara



Eu também tenho uma amiga búlgara. Chama-se Irina Bokova e é concorrente ao lugar que António Guterres pretende obter nas Nações Unidas.

Tornei-me amigo de Irina há quase vinte anos, quando ambos éramos secretários de Estado dos Assuntos europeus, nos nossos respetivos governos. Estive em Sófia a seu convite, tive o gosto de a receber em Lisboa por esse tempo.

Um dia, o partido de Irina perdeu as eleições na Bulgária e ela abandonou o governo. Quando mais tarde voltei a Sófia, tendo já outra contraparte búlgara, pedi ao nosso embaixador para, num jantar na sua residência, convidar Irina Bokova. Recordo a nota comovida que então deixou, por eu ter querido permanecer fiel à amizade criada. E ficámos em contacto, a partir de então.

Tempos mais tarde, um amigo comum, Georgios Papandreou, que viria a ser primeiro ministro grego, convidou-nos a ambos para integrar o círculo de reflexão política que anualmente organizava na Grécia, durante uma semana, o Symi Symposium. E assim, durante cinco anos, com as nossas famílias, encontrámo-nos nesses interessantes debates. E vimo-nos, entretanto, com as nossas famílias, em Nova Iorque, num divertido jantar.

Quando ainda estava no Brasil, já de partida para Paris, recebi um recado de Irina. Ela tinha desempenhado as funções de ministra dos Negócios Estrangeiros do seu país e concorria ao lugar de diretora-geral da Unesco. Gostava de ter o apoio português para essa sua pretensão e, com naturalidade, recorria ao seu amigo português. Fiz as minhas sondagens em Lisboa, tendo verificado não ser ela o candidato que Portugal iria apoiar. Disse-lho já em Paris, num jantar que lhe ofereci. Nada mudou entre nós.

Mesmo sem o voto inicial português, Irina Bokova foi eleita diretora-geral da Unesco. Vimo-nos bastante em Paris por esse tempo, mesmo antes de, por uma suprema ironia, eu próprio ter sido entretanto nomeado, em acumulação com o cargo que já desempenhava em França, como delegado português junto da Unesco. A última vez que encontrei pessoalmente Irina Bokova foi na visita de despedida que lhe fiz, em inícios de 2013, em que lhe ofereci uma peça fotográfica de Jorge Molder, enviada por Portugal para a coleção artística da organização, numa decisão sob minha insistência que teve a assinatura do então secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas.

Irina Bokova surgiu entretanto como candidata a secretário-geral da ONU. Portugal tinha o seu próprio candidato, António Guterres. Que, naturalmente, foi o meu candidato. Mas, nem por isso, vou perder essa querida amiga búlgara, de há muitos anos.

Kristalina

Não sei como se dirá, em búlgaro, "meter os pés pelas mãos". Mas foi isso mesmo que Kristalina Georgieva fez ontem, quando perguntada pelo embaixador ucraniano sobre o que pensava do conflito no seu país. Essa hesitação e a cara desencantada do diplomata podem dizer tudo. Procurar não antagonizar Moscovo, no dia em que a Rússia repetiu formalmente, para quem quisesse ouvi-la, que deseja para secretário-geral da ONU uma mulher do Leste europeu, é a cartada evidente de Georgieva. Kristalina.

segunda-feira, outubro 03, 2016

Jornalismos


Tenho vários amigos e conhecidos na classe dos jornalistas e orgulho-me muito dessas relações. Contudo, e não raramente, no passado, insurgi-me junto de alguns deles pelo facto de demonstrarem uma grande complacência para com pecadilhos evidentes dos seus colegas de profissão. Até há pouco tempo, era muito raro ver-se um jornalista a criticar outro, no próprio espaço mediático, dando ideia de que prevalecia entre eles uma espécie de corporativismo inibidor. Ou alguém se lembra de ouvir vozes escandalizadas da classe quando o "Independente" adotou práticas miseráveis?

Mais recentemente, algum aventureirismo travestido de jornalismo, assente em comportamentos à margem de um mínimo de deontologia, terá levado certos profissionais a achar que "o que é demais é erro" e que seria importante, para a própria salvaguarda do prestígio da classe, separarem as águas e darem pública nota de que não se sentiam bem acompanhados por alguns daqueles alegados colegas. E as coisas não se ficaram por ali, ajudadas também pelo mal-estar criado por alguma partidarização de setores da profissão, tendo os blogues como plataforma mais evidente dessa deriva e os gabinetes e outros empregos como recorrente porto de abrigo.

A grande prova de que as "comadres" se tinham zangado, em definitivo, surgiu na questão que opôs o "Público" ao "Diário de Notícias", por ocasião das desconfianças entre Belém e S. Bento, que o livro de Fernando Lima agora desenvolve. Em especial a partir de então, a conflitualidade entre os grupos de "media" parece ter potenciado essa clivagem e, em várias outras ocasiões, que os "leaks" judiciais seletivos no caso Sócrates agravaram, "o caldo entornou-se" entre os nossos jornalistas. O último episódio desta saga terá sido o livro de José António Saraiva e as repercussões escandalosas que ele teve.

Como consumidor mediático, confesso que me sinto muito mais confortado agora, ao ver os jornalistas sérios erguerem a sua voz para isolarem aqueles que mancham a dignidade da sua profissão. Pode ser que, com isso, se tenha quebrado a "paz dos cemitérios" em que se vivia, mas a frontalidade que hoje se adopta no seio da classe parece prenunciar que caminharmos tempos bem mais dignos. E transparentes, que é o que a mim mais me importa.

domingo, outubro 02, 2016

Memórias

Com alguma frequência, conto por aqui episódios ocorridos em circunstâncias em que estive presente a título profissional, as mais das vezes como figurante ou testemunha, dado o caráter de simples "ator secundário" que um diplomata ou um "junior minister" geralmente têm. Procuro ser tão rigoroso quanto possível quanto à fidelidade à verdade, tanto mais que estas coisas ficam escritas e são passíveis, agora ou no futuro, de aberta contestação ou correção.

Há dias, relatei um determinado diálogo, ocorrido há já alguns anos. Alguém que também esteve presente à cena, lembrando-se apenas vagamente daquilo que eu escrevera, trouxe à colação um outro - e bem mais interessante - momento então ocorrido no curso dessa conversa. Do qual, confesso, eu não me lembrava de todo.

É muito curiosa esta seleção individual de memórias que todos temos. "À la limite", quase se poderia dizer que não há factos: só restam os nossos olhares sobre eles...

Éticas


Há uns anos, perguntei a uma conhecida personalidade política, que havia sido pessoalmente responsável por determinado tipo de ações que tinham vindo a revelar-se deletérias para o interesse público, se não se arrependia das decisões que tomara. Fiquei, confesso!, siderado com a sua resposta: "Não sinto a menor culpabilidade. Eu agi exclusivamente na base das informações que à época tinha, dadas e colhidas por quem me rodeava e em quem eu confiava, na profunda convição de que o que fazia era o melhor para o interesse coletivo. A circunstância dos factos terem vindo a demonstrar que a ação que empreendi não correspondia àquilo que eventualmente teria sido mais adequado fazer é algo que me ultrapassa e pelo qual não sinto hoje, à distância, a menor responsabilidade. Por isso, não me arrependo de nada do que fiz. Aliás, alguém arrepender-se é errar duas vezes."

Na altura, não fiquei muito convencido com a lógica subjacente a este raciocínio. E dei comigo a pensar que havia algo que "respondia" a essa lógica, mas de que eu me não lembrava. Só hoje, ao ler no "The Economist" um texto sobre a "ética de convicção" e a "ética de responsabilidade", suscitadas por Max Weber há quase um século, é que realizei verdadeiramente a razão das minhas dúvidas. Leia-se o texto aqui.

sábado, outubro 01, 2016

Prefácio



Prefácio

No auge da guerra na Jugoslávia, um jornal britânico trouxe uma entrevista com um casal. Ele era sérvio e ela era croata, ou vice-versa, porque isso é o que menos importa. Os dois tinham-se conhecido ainda no país que lhes fora comum e que então estava em curso de implosão. Com alguma naturalidade, ambos se sentiram polarizados por pertenças nacionais opostas, com familiares e amigos a morrerem por essas causas contrastantes. De uma forma que deveria ser então pouco comum, decidiram fazer uma introspeção, à vista um do outro, procurandoultrapassar, pela racionalidade possível, os ódios que atravessavam os dois campos. Em particular, tentaram“desconstruir” os respetivos argumentários históricos, que marcavam as suas diferentes memórias afetivas. E, nesse esforço, fizeram o inventário mútuo de agravos, de conflitos e de razões alegadas para eles, com consequências nos preconceitos e estereótipos. Aparentemente, estavam a ter êxito nessa tarefa, que não devia ter sido nada fácil. O artigo tinha um título que nunca esquecerei: “A guerra dos avós”. Porque era disso mesmo que se tratava.

De alguns países se diz que têm “demasiada História”, querendo-se com isso significar que o peso obsessivo de memória atrapalha o presente e condiciona demasiado o futuro. Juntamente com o Médio Oriente, os Balcãs são, muito provavelmente, das regiões do mundo onde esse fardo excede toda a razoabilidade, carreando para os dias de hoje expressões identitárias em conflito, que estão muito longe de se esbaterem e virem a facilitar amanhã quaisquer compromissos. São terrenos onde às etnias se cumulam as ideologias e as religiões, com nacionalismos doentios a adubarem as emoções, onde as lideranças políticas se reforçam pela execução zelosa da agenda primária dos populismos, ou do revanchismo, sem a menor propensão para pedagogias apaziguadoras dessas mesmas tentações radicais.

Nos tempos em que andei pelas lides europeias, uma das linhas voluntaristas de raciocínio para promover o alargamento da União a vários países assentava na ideia de que a sua inclusão na “casa comum” apagaria, pelo choque de progresso e de bem-estar, todas as tensões interétnicas, os conflitos de identidade intranacional, o problema das minorias. Seria uma espécie de “fim da História” nacionalista europeia, graças a esse redentor bálsamo bruxelense. Ora não seria preciso ir mais longe do que a própria cidade de Bruxelas para se perceber a ilusão ridícula que essa ideia encerrava. E o terrorismo de Molenbeek deu ali um toque trágico àquilo que, até então, era apenas melodramático.

Feito este preâmbulo enquadrador, falemos do livro que o leitor tem diante de si.

Não se estranhe se eu começar por dizer que o autor, o general Carlos Branco, é um homem desencantado, porque acho que é isso o que o seu texto evidencia. E esse facto não é mau, diga-se desde já.

Carlos Branco faz parte de umas Forças Armadas portuguesas que, tendo tido responsabilidades operacionais em três teatros simultâneos de operações, sob ditadura, sentiram o orgulho de ver essa mesma instituição ser o sujeito ativo da libertação interior do seu próprio país. Além disso, já em democracia, e numa sequência a que muitos atribuímos alguma naturalidade, ele viu Portugal empenhado em colaborar na promoção da paz e segurança em vários cenários internacionais. O general Carlos Branco, que tem uma experiência profissional muito valiosa nesse domínio, percebeu, e bem, que do destino de Portugal como entidade responsável à escala global fazia parte integrante a promoção da imagem de um país “honest broker”, capaz de fazer pontes e estimular diálogos, reputação que deveria, com vantagem, ser utilizada para reforçar o seu papel na ordem externa, muito embora, aqui ou ali, também torne claro que entende que o modo como o país se organiza para tal deixa ainda muito a desejar. E, do mesmo modo, lamenta, como eu lamento, que nos dias que correm se esteja a perder um precioso “tempo” de intervenção, com efeitos negativos a prazo na preservação da massa crítica indispensável para tal.

Mas volto ao desencanto. O livro que o leitor tem perante si é, visivelmente, fruto de um trauma e dos estados de alma dele resultante. E isso torna-o num livro muito autêntico, nada “tático” com a revelação da realidade dos factos, tal como o autor os observou ou pressentiu. Se me é permitida uma simplificação,diria que este texto é a expressão do choque de alguém que partiucom imensa boa-vontade e entusiasmo para uma tarefa, a que se entregou com sinceridade e abertura, e que se deparou, para além das insuficiências do próprio país que o enviava, com um mundo concreto feito de agendas diferenciadas, algumas conflituais entre si, construídas de cinismo e de “realpolitik”, se é que um termo não é necessariamente sinónimo de outro. Não que isso não fosse em absoluto expectável, mas o grau e a natureza dessa realidade induziram claramente no autor algumas surpresas, na maioria dos casos menos agradáveis. Este trabalho é a imersão nesse mundo de sombras, de sinais cruzados e deliberadamente equívocos, de cumplicidades e conluios, onde a miséria da guerra vem sempre ao de cima, tudo sobredetermina, com uma crueldade que às vezes a redondeza do discurso político procura iludir.

Não se espere deste livro um retrato linear da Guerra dos Balcãs. Ele é o relato de um conjunto de experiências, diversas entre si, muito bem descritas por quem ousou sempre assumir um registo humano, por onde perpassam sentimento e avaliação ética, de quem não se deixou envolver pelo cinismo frio do “isto é mesmo assim”, com que, muitas vezes, os observadores-participantesabsolvem a neutralidade das suas atitudes.

A escrita é densa, culta, elaborada e informada. Às vezes, é cinematográfica, nos ritmos que impõe, nos cenários que descreve, nas figuras que recorta, com graça e ironia. Tem a leveza de quem agarrou as situações pelo lado humano, às vezes pitoresco, frequentemente trágico. Mas tem o rigor de quem não quis transformar uma experiência profissional forte num arrolamento de “fait divers”. É verdadeiramente a guerra e o mundo à sua volta, às vezes nos seus intervalos, sempre rica empormenores que nos ajudam a entender melhor o espírito, mas também os vícios, das intervenções multilaterais, feitas de compromissos, alguns mais degradantes do que outros.

Tendo como fundo um cenário de forças e de fraquezas, há no texto elementos que nos ajudam a entender melhor o papel dos grandes poderes fáticos, os jogos dos atores principais, a sua cultura funcional, as necessidades de sobrevivência de quantos são obrigados a ter no processo um papel forçadamente secundário. Há ali preciosos “flashs” comportamentais de representantes de países relevantes na ordem global, que nos ajudam melhor a compreender o que se passou, o efeito dos “timings” sobre a evolução dos factos. E tudo isso, no final de contas, conduz-nos a desenhar um juízo muito relativa sobre a bondade objetiva de certas intervenções.

Há neste livro descrições muito fortes, retratos de uma tragédia que espero que conduza o leitor a interrogar-se sobre como foi possível, a escassos quilómetros de países que gozavam de imenso bem-estar e segurança, deixar emergir – e, em alguns casos, impulsionar - em escasso tempo, uma Europa “negra”, feita de ódios extremos, de ausência total de piedade, de inominável barbárie, dirigida por figuras que parecem procurar, por detrás dasvestes retrógradas no nacionalismo e do desprezo étnico, apenas um lugar de apreço na memória mesquinha dos seus, nessa “guerra dos avós” em que apenas foram soldados de mais um episódio.

Há coisas novas e interessantes que Carlos Branco nos revela neste texto, em especial no seu “flashback”, que a História veio a tornar mais do que oportuno, sobre a passagem do islamismo radical por aquela área, num registo que, à época, se bem me recordo, pouco mais passava do que uma curiosidade. Mas também não deixará de ser interessante a leitura, à revelia de outras versões, que o autor faz dos acontecimentos em Srebrenica.E várias outras “novidades”, algumas pouco meigas para certos agentes conjunturais da História.

Embora o recurso a uma narrativa bastante marcada por siglas eacrónimos, essenciais para identificar a multiplicidade de entidades que se cruzam no terreno, possa indiciar, às vezes, um relato demasiado técnico, essa momentânea impressão dilui-se logo na esquina seguinte do texto: o “defeito” que é a grande qualidade deste livro é a firme assunção de uma perspetiva própria, a coragem de tomar posição, valorando aquilo que o autor entende dever merecer um juízo crítico de valor, sem complexos nem peias de qualquer ordem. Este é, também, um livro muito corajoso.

Sem que isso possa ter sido o seu objetivo deliberado, algumas coisas que este livro nos traz relembram que a paz é um valor imensamente frágil na nossa vida coletiva, apenas sustentado pela preservação da força das instituições, dependendo estas da legitimidade que tenham ganho no seio dos povos. Por isso, sendo o mundo multilateral o eixo condutor deste texto, que evidencia muitos dos seus vícios e defeitos, ele continuará a ser, no entanto, a única reserva de esperança para podermos vir a ter um mundo mais seguro e pacífico. E, de caminho, mais justo.

Francisco Seixas da Costa

Outubro de 2016









Balcãs

Estou a escrever um prefácio para um livro sobre a guerra nos Balcãs e, num instante, veio-me à memória um episódio passado em Londres, em 16 de janeiro de 1992.

Creio que foi na Walton Street, não muito longe do Harrods. Era uma bela moradia privada, pertencente a um cavalheiro britânico, de ascendência croata, que a disponibilizara para uma receção comemorativa e que nos recebia à porta. Tratava-se da celebração do reconhecimento pelas Comunidades Europeias (na altura, a União Europeia ainda não existia) da independência da Croácia, que entrara em vigor na véspera.

A Jugoslávia estava então em pleno curso de implosão. No seio das Comunidades Europeias, e sob forte pressão política alemã, a independência unilateral da Croácia (e da Eslovénia) acabara por ser reconhecida. O caso da Eslovénia provocara menos ondas, pelo facto da sua homogeneidade étnica não estar marcada pela existência de minorias sérvias.

No caso croata, a mobilização alemã junto dos seus parceiros, titulada pelo MNE Hans-Dietrich Genscher, fazia regressar (creio que um pouco injustamente) o peso de memória da História: o colaboracionismo dos ustashis croatas com Hitler era um ferrete difícil de apagar, em especial tendo Zagreb um presidente com o perfil de Tudjman. (Um dia, José Cutileiro, enviado especial europeu para a região, referiria à sua frente que o que os croatas haviam feito à minoria sérvia na Krajina podia ser qualificada de "limpeza étnica". Tudjman ter-lhe-á retorquido: "Sempre é melhor do que genocídio, não acha?")

Eu era Encarregado de Negócios de Portugal em Londres, na ausência do embaixador. Drago Stambuk convidou-me a estar presente naquela celebração. Portugal tinha acordado no reconhecimento da Croácia mas, porque o assunto estava longe de ser totalmente pacífico na imprensa e em alguns meios políticos, contactei telefonicamente Lisboa para pedir orientação. Recordo ter recebido a instrução de Pilatos: "Veja como reagem os outros Estados membros e depois faça como entender melhor". Ao longo da minha carreira, assisti muitas vezes a gestos similares que, como se imaginará, eram uma grande "ajuda".

Mas quem era Drago Stambuk? Era um médico croata, com nacionalidade britânica, que ao longo dos anos anteriores fora uma espécie de "embaixador" informal da Croácia. Conheceramo-nos numa visita dele à nossa embaixada e tínhamos mantido a partir de então uma simpática relação pessoal. Drago procurava promover os interesses do seu país de origem e imagino que aquele dia, para ele, fosse a consagração de um sonho: a Croácia era, finalmente, um Estado com independência reconhecida por um conjunto significativo de países europeus. Drago Stambuk, que é um dos grandes poetas do seu país, é hoje embaixador da Croácia e por pouco que nos não cruzámos em posto em Brasília.

Na alegria que lhe estava subjacente, a receção em Walton Street foi bastante deprimente. À parte meia dúzia de pessoas da comunidade croata em Londres, os diplomatas estrangeiros contavam-se pelos dedos de uma só mão e o "Foreign Office" primou pela ausência, não obstante Londres se ter juntado ao consenso comunitário (diz-se que graças à promessa de Genscher a Douglas Hurd de que Bona não se oporia aos "opt out" britânicos na negociação de Maastricht). Não fomos mais de uma quinzena de pessoas naquela sala da bela residência de Walton Street. Já estive em muitas receções "falhadas", mas aquela bateu-as a todas.

Depois, foi o que se sabe: a guerra continuou. Em agosto desse mesmo ano, teria lugar, também em Londres, uma conferência internacional para tentar a paz para a ex-Jugoslávia, a que estive presente, integrado na delegação portuguesa. Tive então o ensejo de olhar, cara a cara, para a quase totalidade dos presidentes-atores daquela tragédia em curso: o sérvio Milosevic, o croata Tudjman, o muçulmano bósnio Itzetbegovic, etc, com os vários "artistas" secundários pelos corredores, entre os quais recordo bem o branco cabelo desalinhado do sérvio bósnio Karadzic. Posso ser sincero? Era tudo um grupo de "lindos meninos do coro", cada um melhor do que o outro, no conjunto responsáveis, cada um a seu modo e no seu grau, por um dos mais sangrentos períodos da história balcânica.

Ontem, num jantar em Lisboa, fiquei ao lado de uma senhora croata. Falámos um pouco de tudo isto, tanto mais que ela esteve politicamente envolvida numa certa fase do processo político do seu país. Confirmei, na conversa, algo que fui aprendendo na vida internacional: por muito que nos esforcemos, nunca conseguimos entender por completo a profundidade do sentimento nacional de um estrangeiro. Ele é produto de uma decantação da sua história, da complexidade única das relações com vizinhos ou outros, do que ficou das lições do passado, tudo isto envolvido numa pulsão emocional onde só muito remotamente espreita a racionalidade.

E agora, se me permitem, regresso ao prefácio que estou a escrever.

(A imagem mostra a belíssima ponte de Mostar, destruída durante a guerra na Bósnia, depois reconstruída)

sexta-feira, setembro 30, 2016

Já combinaram com os russos?


A escolha do secretário-geral da ONU foi sempre um processo de alguma complexidade. Encontrar alguém em quem, simultaneamente, se revejam Estados com interesses contraditórios é uma verdadeira quadratura do círculo. No passado, esse compromisso chegou a ser obtido através de cedências em outras áreas do funcionamento da ONU, atribuindo discretamente a alguns dos principais países envolvidos, isto é, aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, cargos importantes, em jeito de compensação.

Este ano, o novo processo de audições públicas prometia trazer alguma transparência e uma maior objetividade. O método evidenciaria, em princípio, os mais qualificados, o que, no entanto, poderia não garantir os objetivos de quantos entendiam que, desta vez, o lugar deveria ser ocupado por uma mulher, oriunda da zona centro-oriental da Europa, que nunca tinha produzido um SG.

À luz da leitura que faço do modo de funcionamento da ONU e dos seus equilíbrios geopolíticos, sempre achei que seria muito difícil António Guterres vir a ser eleito. Porém, Portugal, nunca tivera alguém tão qualificado e prestigiado para ocupar aquele cargo. Valia a pena tentar! Por isso, fui e continuo a ser um convicto apoiante dessa candidatura, embora, tal como o próprio Guterres, moderadamente otimista quanto ao êxito do empreendimento. 

O modo como as audições ocorreram, e as fantásticas «performances» de Guterres, tornaram-me mais confiante, sentimento que se reforçou com as sucessivas votações indicativas, em que o candidato português se destacou dos demais. Mas algo me dizia, intimamente, que as coisas estavam a correr «bem demais»... Por isso, o surgimento de uma nova candidatura, já numa fase adiantada do processo de seleção, não me surpreendeu. 

Quem segue estas coisas sabia que germinava em setores da direita europeia, em especial no «pangermanismo»,  a vontade de encontrar uma forma de contrariar, com um golpe de bastidores, o sentido do novo modelo de avaliação, cuja resultante final não produzira o resultado «esperado». Com o argumento, simplório e oportunista, de que assim se quer ultrapassar o «impasse» criado, Kristalina Georgieva avança do «banco», a poucos minutos do fim do jogo. 

Agora, a palavra decisiva vai competir a Moscovo: um SG da ONU é sempre alguém que o mundo ocidental propõe e a quem o Kremlin não diz que não.

Ora qualquer brasileiro conhece o significado da frase que serve de título a este artigo. É uma expressão famosa de Mané Garrincha quando, tendo-lhe sido explicado o que deveria fazer para ultrapassar a defesa russa, e achando a tática do treinador simples demais, terá perguntado : «E já combinaram com os russos?». Acho que seria prudente Georgieva inquirir o mesmo de Merkel.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")


Falando de ditaduras

(«Não te metas nisso! Cai-te o Carmo e a Trindade em cima!» A conversa foi ontem no largo do Carmo, no fim de um almoço de amigos. Era a reação à minha ideia de escrever um artigo sobre a relação com regimes que estavam muito longe de ser «apresentáveis», em especial em matéria de Direitos humanos e de respeito pelos princípios essenciais do Estado de direito.)

Há dias, num programa de televisão, a propósito do 11 de setembro, decidi interrogar-me sobre um «segredo de Polichinelo» : depois daquilo a que assistimos no Iraque e na Líbia, com setores da comunidade internacional mobilizados no sentido de processos de «regime change», que acabaram por redundar numa disrupção gravíssima da estabilidade regional, com efeitos comprovadamente deletérios sobre a ordem internacional, será legítimo ter como política a reversão automática de ditadores, arriscando cair em situações potencialmente mais graves do que aquelas que pré-existiam?

No caso do Iraque, uma intervenção americana sem a menor legitimidade internacional, com o apoio seguidista de alguns poderes ocidentais (entre os quais o Portugal do dr. Durão Barroso), resultou num novo regime iraquiano que se consagrou desde o início como um «failed state», abrindo caminho para um grave desequilíbro regional, desencadeando uma dinâmica que acabou no Estado Islâmico. Como dizem os empregados de restaurantes: espero que gostem!

No caso da Líbia, a obscena ultrapassagem do mandato  negociado no Conselho de Segurança da ONU, que tinha como limite a proteção da Cirenaica, acabou por ser aproveitado para derrubar Kadafi, sossegando pelo caminho a consciência de alguns inimputáveis europeus e, simultaneamente, abrindo espaço aos traficantes da morte no Mediterrâneo. Estão contentes?

(Um parêntesis para lembrar, a quem se tiver esquecido, que Hillary Clinton esteve ao lado de George W. Bush na invasão ilegal do Iraque e teve o essencial das responsabilidades na patética dissolução do Estado líbio. O facto de Clinton ser hoje a «nossa» candidata não deve obnubilar a nossa memória.)

A sociedade internacional não é uma congregação de «anjos». A maioria dos países que têm assento nas Nações Unidas ou são ditaduras ou têm regimes cuja observância das mais transparentes regras democráticas é muito discutível. Se um Estado tivesse a ousadia de só se relacionar com regimes «decentes», acabaria confinado a um quadro de relações externas muito limitado. No caso português, desde logo um país com uma imensa diáspora, é um imperativo óbvio de qualquer governo manter um relacionamento funcional tão bom quanto possível com todos – repito, todos - os Estados dos quais dependa o bem-estar das nossas comunidades e onde, simultaneamente, se possa criar um ambiente positivo para a absorção das nossas exportações, uma atratividade para o nosso turismo e a mobilização de investimento direto externo.

Dir-se-á que, ao participar neste «teatro», estamos a encenar uma peça de algum cinismo, de «realpolitik» e de alguma frieza. É uma pena ter de constatar isto, mas o mundo é assim mesmo. No nosso dia-a-dia como cidadãos, todos temos a experiência de termos de nos relacionar com pessoas de quem não gostamos, por ser essa a exigência da vida coletiva. A vida internacional não é muito diferente.

Portugal, na sua atuação externa como Estado, deve contribuir para a promoção dos valores democráticos, para a valorização dos Direitos humanos, para o respeito pelos princípios do Estado de direito. Deve fazê-lo através da sua contribuição e empenhamento no seio das instituições internacionais dedicadas à promoção desses valores. Mas seria totalmente despropositado e desadequado à sua dimensão como país que isso fosse executado no plano bilateral. 

Percebo que possa ser mais cómodo não assumir algumas verdades. Mas nem pelo facto de as não assumirmos elas deixam de o ser. 

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

quinta-feira, setembro 29, 2016

Shimon Peres


Morreu Shimon Peres, uma figura histórica de Israel, de que viria a tornar-se um dos rostos mais conhecidos no mundo. Com o radicalismo a tomar conta da política governamental israelita, a moderação e o sentido de equilíbrio de Peres, bem como o seu continuado empenhamento no processo de paz com os palestinos, converteram-no numa das vozes israelitas mais escutadas no exterior. Peres desaparece sem ter visto qualquer paz implantada de forma sustentada entre Israel e a Palestina, num tempo em que a vizinhança do Médio Oriente está a ferro e fogo. Nunca chegou a primeiro ministro do seu país, mas teve sucesso como ministro dos Negócios Estrangeiros e ascendeu no fim da vida à chefia do Estado.

Nunca esqueci uma noite em Nova Iorque, em 2002, num jantar para o qual uma associação judaica de amizade EUA-Israel convidara alguns embaixadores. Recordo bem o pesado e incomodado silêncio - e os olhares reprovadores trocados entre os meus companheiros de mesa - quando Shimon Peres defendeu, com vigor, a necessidade de cedências para obtenção da paz com os palestinos. A embaraçante escassez de palmas no final do seu discurso mostrava que os falcões da diáspora eram "mais papistas do que o papa", talvez por ser cómodo defender a guerra por fronteiras impossíveis quando se vive no conforto de Manhattan.

Peres havia-me recebido no seu gabinete de ministro, em Jerusalém, em novembro de 1995. Eu era o "junior minister" dos Negócios Estrangeiros que acompanhava Mário Soares na sua última visita presidencial ao exterior. A meu pedido, o nosso embaixador, Paulo Barbosa, organizara esse encontro. Foi uma conversa muito interessante, na qual Peres me deu a sua leitura sobre o "estado da arte" dos vários "tracks" do processo negocial. Recordo-me as questões que me colocou para tentar perceber se o novo governo português, que tomara posse uma semana antes, pretendia introduzir mudanças no relacionamento de Portugal com Israel. 

O governo israelita não gostara, e fizera-o saber, que nessa visita eu tivesse decidido visitar a "Orient House", o ponto de contacto com os palestinos, em Jerusalém Oriental. Ainda tentaram dissuadir o nosso embaixador dessa iniciativa, mas eu havia recusado liminarmente cancelar a visita.

Peres foi agradável durante essa conversa comigo. Falou bastante da sua longa amizade com Mário Soares, tendo-lhe eu contado que, por coincidência, 17 anos antes, fora o primeiro diplomata português a deslocar-se em trabalho a Israel, num tempo em que Lisboa ainda cultivava grandes distâncias políticas face a Israel. Riu-se quando lhe referi que passara então duas horas no aeroporto de Ben Gurion, em Tel Aviv, a ter de explicar o carimbos de anteriores visitas à Líbia. "E deixaram-no entrar? Devia ter usado outro passaporte".

Dois dias mais tarde, estive com Peres no almoço que o primeiro-ministro Yitzhak Rabin ofereceu a Mário Soares, na sua residência em Jerusalém. Poucas horas depois, Rabin seria assassinado e seria a Peres, no funeral a que Soares e eu nos deslocáramos do Cairo, que eu iria apresentar as condolências enviadas enviadas por António Guterres.

Há dias, em Kiev, num fórum estratégico em que participei, foi feita uma homenagem a Shimon Peres, prenunciando já a sua próxima morte. Notei a genuinidade com que os participantes lhe tributaram o seu respeito. Pode parecer uma banalidade dizê-lo, mas figuras como Shimon Peres fazem falta ao mundo internacional.

quarta-feira, setembro 28, 2016

David contra Guterres

Ontem, numa SMS trocada com um jornalista, escrevi: "há qualquer coisa fácil demais neste processo que me inquieta". Referia-me à acumulação de sinais positivos em torno da candidatura de António Guterres. Estava-me a parecer que quem se lhe opõe não iria ficar de braços cruzados perante a fantástica cavalgada vencedora que o candidato português estava a fazer, no quadro das votações indicativas no Conselho de Segurança. Quem me lê por aqui e por outros locais testemunhará que fui sempre muito prudente na consideração das hipóteses de Guterres, muito embora concordasse que a expressividade do seu destaque perante os seus adversários estava a tornar cada vez mais difícil que o jogo "fosse virado". Mas foi, como a emergência, agora anunciada, de Kristalina Georgieva, bem o prova.

O jogo volta à quadra inicial? Não volta. As votações em Guterres são um "património" muito importante e vai ser difícil revertê-lo. Mas a vice-presidente da Comissão Europeia, apoiada por setores importantes do Partido Popular Europeu, não sairia a terreiro se não tivesse as "costas quentes" e se não fossem minimamente fortes as perspetivas em que a sua ambição se apoia. Angela Merkel e Jean-Claude Junker, figuras cimeiras do PPE europeu - clube político onde também está o portuguesíssimo PSD - são os grande promotores da cartada Georgieva, que se diz que se terá voluntariado a este papel sob a promessa de, em caso de derrota, vir ser a candidata da Alemanha uma eventual sucessão de Junker na Comissão Europeia.

No dia 4 de outubro, quando o P5, os membros permanentes do Conselho de Segurança, tiverem de mostrar as cartas, isto é, revelarem quem vetam, tudo ficará mais claro. Veremos se terão a "lata" de afastar o candidato cuja qualidade relativa ficou bem patente neste processo, cuja transparência acabou por prejudicar os "trade-off" que tradicionalmente eram a regra do jogo. 

Nesse dia, verificaremos se David ganhou a Guterres. Refiro-me a Mário David, o antigo secretário de Estado do PSD que se sabe ser um dos "operadores" da candidatura de Georgieva, sob o impulso do governo húngaro desse expoente da democracia que é Viktor Órban. Claro que ninguém é obrigado, por mero patriotismo, a apoiar António Guterres. Mas parece poder haver alguma esquizofrenia no seio do PSD quanto a este assunto, que ganharia em ser de imediato clarificada: a linha oficial do partido afirma defender a candidatura portuguesa e um dos seus homens de mão no seio do PPE trabalha por Georgieva. Onde ficamos?

1968


Eu tinha vinte anos, nesse final de Setembro de 1968, naquela noite em que, em casa de um familiar, de passagem por Vila Real, vi na televisão um emocionado Américo Tomaz anunciar que ia substituir Salazar por Marcelo Caetano. Não esqueço aquele instante, que pressentia ir ser uma esquina da nossa história política.

Aquele iria ser o último dia de várias semanas em que o poder político da ditadura mostrara, finalmente, que era humano, frágil e suscetível de ser abalado pela saúde do ditador. O país viu-se "voyeur" da luta pelo poder que se sabia estar a ser travada, espreitando, com a curiosidade de quem nada tem a ver com o seu próprio futuro, a coreografia dos dignitários da "situação", da antecâmara do Conselho de Estado às visitas ao hospital da Cruz Vermelha, onde Salazar estava internado. Uma novela que a televisão nos trazia todas as noites (a televisão de então "abria" ao final da tarde), no preto-e-branco da imagem do país político de então.

Um amigo de casa dos meus pais, que assinara as listas do MUD e, anos mais tarde, viria a assustar-se com o 25 de abril, mostrava-se francamente desiludido. Durante anos, tinha proclamado que "gostava que Salazar não morresse na cama" e, agora, isso não iria acontecer. 

Tal como no Totobola, que era então o casino dos pobres, o país fazia vaticínios. "Fala-se muito do Adriano Moreira", diziam uns. "Não, os ultras querem o Antunes Varela, porque o Adriano teve um conflito com o Venâncio Deslandes. Os militares não deixam". Outros interrogavam-se: "E o Caetano? Diz-se que tem as suas "tropas" bem colocadas". O ceticismo opunha-se: "Talvez, mas o episódio da crise académica de 62 pode ter-lhe sido fatal".

Acabou por não ser. Marcelo seria mesmo o escolhido. Fez um discurso de "sim, mas", onde se adivinhava o compromisso que tinha feito com Tomaz e que, no essencial, passava por um imobilismo "de facto" na questão colonial. E daí derivava a "necessidade" da continuidade da ditadura, onde a "primavera política" anunciada por Gonçalves Rapazote, na posse da nova revoada de Governadores Civis, foi uma mera flor de retórica.

Poucos meses depois, a lista associativa universitária em que eu fora eleito acabaria por ser "não homologada" pelo ministro da Educação, o divulgador da História em historietas, José Hermano Saraiva, tio do agora "infamous" José António Saraiva. A vontade democrática, no Estado Novo, estava subordinada ao arbítrio e "old habits die hard". Só o 25 de abril os "convenceu". Não tendo sido possível fazer as coisas através das "armas da crítica", não restou outra solução que não fosse a "crítica pelas armas", para usar conceitos consagrados por um economista alemão cujo nome me está a escapar.

"Eu tinha vinte anos. Não consentirei que alguém diga que é a idade mais bela da vida", afirmou um dia Paul Nizan. Tinha razão, ter vinte anos é ter uma idade como qualquer outra. Mas esse ano de 1968, em que eu tinha vinte anos, seria o ano do maio parisiense, do esmagamento da "primavera de Praga" e do massacre estudantil no México. Por essas e muitas outras razões, não seria um ano igual aos outros. Pelo menos para mim.

terça-feira, setembro 27, 2016

País abafado

Liga-se os canais da dita informação ou os noticiários generalistas e é só futebol, mais futebol e futebol! São horas de treinadores, de imagens de estádios, de camionetas a caminho dos ditos. Depois serão balanços, especialistas, o público cachecolado, jogadores a repetir como sua a linguagem da Bola, do Record ou do Jogo. Ah! E, pelo meio, há os jogos, claro, pretexto para tudo. 

Em que raio de país nos transformámos?! Saberão os portugueses que não há nenhum país no mundo onde as coisas se passem desta forma?! NENHUM!

Europa a dois tons


Estive ontem, sucessivamente, em dois exercícios "europeus".

O primeiro, de âmbito "luso-português". Coube-me coordenar um debate, à porta fechada (e sob a "Chatham House rule", isto é, podendo revelar-se o que se tratou, mas não podendo atribuir-se nominalmente as ideias expressas), com quinze especialistas nacionais, oriundos de diversas áreas. Tratava-se de preparar um documento com perspetivas portuguesas sobre o futuro da Europa, para integrarem um exercício intitulado "New Pact for Europe", organizado por várias fundações europeias.

Não obstante a heterogeneidade dos intervenientes, foi muito interessante constatar uma larga convergência de perspetivas, quer no diagonóstico da situação que atravessamos, quer nalgumas das principais perspetivas para o futuro. Não vou aqui elaborar sobre isto, a montante da síntese que outros têm a seu cargo, mas devo dizer que fiquei impressionado pela maturidade e pragmatismo do que foi dito. Sente-se a existência de um pensamento português sobre a Europa, já muito longe da agenda "paroquial" que fez escola por muito tempo.

O segundo exercício foi bastante diferente. Tratava-se de uma intervenção, num "mano-a-mano" com José Manuel Félix-Ribeiro, sobre geopolítica global, no meu caso competindo-me falar sobre a evolução do quadro dos "global players" nas últimas décadas. A audiência eram estudantes estrangeiros, na grande maioria europeus, pelo que a "questão europeia" acabou por ser o centro do debate, por quase uma hora. Foi curioso perceber as suas diferentes prioridades e preocupações, mas todos com uma agenda muito pertinente. 

A Europa mudou muito, desde os tempos em que me ocupava todos os dias. Faz-me bem "revisitá-la" nestas tarefas pontuais. Porque, qualquer que venha a ser o seu futuro, ele será sempre o nosso.

O debate


Trump perdeu? Não sei. Aos olhos dos seus potenciais votantes aquele estilo é adequado, a vacuidade do seu discurso não é punível. Clinton ganhou? Claro que teve uma melhor "performance", numa perspetiva racional e objetiva. Mas, este ano, nas eleições americanas, a racionalidade não parece ir ser o fator decisivo. Saí preocupado do debate.

segunda-feira, setembro 26, 2016

Guterres

António Guterres teve um excelente resultado na votação de hoje nas NU.

O facto dos seus imediatos "perseguidores" não se terem aproximado pode ter inviabilizado o surgimento de Kristalina Georgieva, como candidata de desempate - com a "vantagem" de ser mulher e de Leste.

Este modelo de escolha do novo SG acabou por favorecer a emergência da "qualidade", em detrimento de outros critérios. Isto parece tornar muito difícil, com risco de se tornar num escândalo, uma reversão drástica da tendência sustentada que favorece o candidato português.

Mas nunca confiar...

Embaraços socialistas


Duas semanas fora do país, olhando-o apenas através do iPad, têm a desvantagem de reduzir o quotidiano político às caricaturas dos "faits" mais ou menos "divers".

Saí de Portugal com o livro de revelações de Fernando Lima como o "escândalo" editorial, cheguei com ele esquecido e com o volume de José António Saraiva convertido no tema de debate. Este país adora revelações, é a pátria do coscuvilho.

Para o que verdadeiramente importa, isto é, para além da espuma dos dias e do diz-que-disse, este período trouxe duas novidades. Na minha opinião, ambas embaraçantes para o Partido Socialista e incómodas para António Costa. 

A primeira tem a ver com as questões fiscais. O que Mariana Mortágua disse, em termos de substância, não deveria ser notícia, não teve o menor radicalismo, contrariamente àquilo que a desonestidade intelectual de alguma oposição quis fazer crer. O relevante nesta história foi não ser Mário Centeno a dizê-lo. 

Seja verdade ou não, o PS projeta a imagem de estar, em certas temáticas, a reboque do Bloco. Mais do que se saber se isso é ou não verdade, preocupa-me que o PS não perceba que isso afeta fortemente a sua reputação internacional - e, com isso, a sua credibilidade europeia, com reflexos em termos negociais. 

Ainda neste plano, o que está a passar-se com a instabilidade fiscal em que o país continua a viver é também inquietante. Eu sei que os constrangimentos europeus transformam a variável fiscal num instrumento apetecível. Mas o governo tem, de uma vez por todas, de decidir sobre se quer dar de Portugal a imagem de um país "investment friendly" ou de um catavento fiscal. É que o nosso futuro passa por aqui.

A segunda novidade embaraçante chama-se José Sócrates.

É uma evidência que uma parte do PS nunca aceitou bem a linha imposta por António Costa, no sentido de "separação de águas", no tocante ao "caso Sócrates". Há quem seja mais sensível ao lamentável comportamento da justiça que ao país saiu em rifa e, acreditando ou não na inocência de Sócrates, considere que o PS deveria não se excluir da condenação do espetáculo vergonhoso que é o indefinido protelamento de uma decisão sobre o assunto, manchado por cirúrgicas quebras deliberadas do segredo de justiça, em conluio com uma comunicação social sem qualquer ética.

E há quem, como julgo deva ser o caso de António Costa - e qualquer que possa ser a sua íntima convicção sobre a eventual culpabilidade de Sócrates -, entenda que não teria sentido amarrar o destino do PS a este caso, poluindo indevidamente a vida política com um caso de justiça, que projetaria uma imagem de ingerência num múnus institucional específico. Eu estou de acordo com esta perspetiva.

Dito isto, percebe-se a estratégia de José Sócrates. É uma aposta na mobilização de uma parte do país - que, contudo, creio menor do que ele julga que é - que conserva uma imagem positiva da sua governação, e que está profundamente escandalizada pelo comportamento dos agentes da justiça. Ao fazê-la, para reforço da sua posição, Sócrates, optou também por atacar diretamente a direção do partido, por alegada falta de solidariedade. José Sócrates sabe bem que, entrando por aí, está a fazer correr um risco grave aos socialistas. E, porque o faz na prossecução de uma agenda que é eminentemente pessoal (embora ele entenda que é muito mais do que isso), deve estar preparado para que a direção socialista venha a reagir, a seu tempo, à altura do desafio. E mais não digo.

São estes os mais recentes embaraços para o PS e para António Costa.

Bebinca

Há já um tempo que não comia bebinca. Imagino que tenha sido por me ouvirem dizer que tinha saudades desse doce goês que tive o privilégio d...