Era um jovem engenheiro, originário do Porto, que a vida levou um dia para Vila Real, nos anos 50 do século passado. Rapidamente chegou a presidente do município e, mais tarde, a Diretor de Estradas e deputado pelo distrito. Chamava-se Humberto Cardoso de Carvalho e era meu tio.
A serra do Marão era o “muro” que ele se tinha habituado a atravessar, entre as duas cidades a que, para sempre, ficou ligado afetivamente. Um dia, ouvi-o falar pela primeira vez no “túnel do Marão”. Foi, seguramente, há mais de meio século.
Recordo as análises que fazia sobre as “cotas” dos dois lados dos montes, com as alternativas possíveis. Sei que abordara a ideia “lá em baixo”, em Lisboa, mas pode imaginar-se que nem a melhor boa vontade do seu amigo Arantes e Oliveira permitiria dar sequência ao sonho. Mas nunca deixou de falar nele, até ao final da vida.
À época, para mim, que era uma criança, a imagem de um túnel era apenas a de uma realidade ferroviária, muito pouco sossegante, que conhecia à saída da Régua e à chegada ao Porto. Ou no Tamel. Ouvir dizer que os automóveis também se podiam enfiar por aqueles buracos negros soava-me a coisa muito estranha. Mas ele mostrava fotografias de obras idênticas, na França e na Suíça, com um entusiasmo que ajudava a tornar a ideia, não apenas plausível, como desejável.
Para quem, como eu, nasceu em Vila Real, atravessar o Marão, nesses tempos de infância e adolescência, era uma programada aventura. A serra impunha-se como uma imensa barreira entre o nosso mundo e o mundo, com as suas centenas de curvas que davam direito a enjoos e uma longa viagem. Era o tempo em que se ia ao Porto aos “especialistas” ou para uma estada em casa de familiares. Ou para estudar na faculdade. Eram horas de caminho, de cansaço, de distância.
Foi a construção do IP4 que começou a mudar o Marão. Mas, também, a espalhar muitos mortos por aquela via perigosa, até que um “ovo de colombo” veio reduzir a carnificina regular. O desejo de uma autoestrada, que pudesse quebrar o isolamento de Trás-os-Montes, não era um dispêndio inútil em « betão » e défice. Era um gesto mínimo de solidariedade nacional para com uma das regiões mais sacrificadas do país, vítima de uma interioridade que, por muitos e maus anos, Lisboa desprezou. E, sem o túnel, nunca haveria autoestrada.
Amanhã, com a abertura oficial do túnel do Marão, a geografia vai mudar no norte do país, a coesão nacional reforça-se e a justiça faz-se. Neste dia, vou lembrar o meu tio Humberto Cardoso de Carvalho, um cidadão de vontade e coração, a primeira pessoa que me fez ver que, ao fundo daquele túnel com que persistentemente sonhava, estava um país para o qual Trás-os-Montes tinha um indiscutível direito a ter fácil acesso.
(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")