A propósito da condecoração hoje atribuída pelo presidente da República a Durão Barroso, veio à baila o facto de Cavaco Silva não ter ainda condecorado José Sócrates, num gesto idêntico àquele que foi tido para com todos os chefes de governo, durante o regime democrático.
A observância dos ritos da liturgia civil é essencial às instituições, à sua preservação e à sua marca na História. As condecorações são uma forma de reconhecimento público a pessoas ou entidades que exerceram certas funções ou se distinguiram em determinada atividade, tida como relevante para a sociedade. Raramente a atribuição de uma condecoração é um gesto neutro, automático, oficioso. Normalmente, há nele uma certa dose de subjetividade, o que, não raramente, o torna pasto de polémica. Mas, por vezes, o arbítrio do gesto é atenuado pelo facto dele se colar a práticas que, de certo modo, se tornaram consuetudinárias.
Condecorar um cidadão português que, durante uma década, exerceu um dos mais altos cargos internacionais parece-me um ato da mais flagrante obviedade. Não está em causa um juízo de valor sobre o trabalho executado por Durão Barroso à frente da Comissão europeia. Esse é outro julgamento - e, no meu caso, já aqui o deixei expresso Trata-se de o país de onde é originário o titular de um cargo dessa importância querer sublinhar, com uma comenda pública, que não é indiferente a essa circunstância. Seria estranho para a Europa, que escolheu uma determinada pessoa para chefiar a sua mais importante instituição, ver o país da nacionalidade desse cidadão alhear-se do facto.
Posso presumir o que diriam os agora críticos da decisão de Cavaco Silva se acaso, no momento oportuno, António Guterres, ao sair de Alto Comissário das NU para os Refugiados, não viesse a merecer uma distinção pelo Estado Português. Ou se Vitor Constâncio, quando abandonar as elevadas funções de vice-presidente do Banco Central Europeu, não tiver um gesto de reconhecimento das autoridades do seu país. Infelizmente, Portugal não dispõe de muitos nomes que hajam merecido uma consagração internacional. Um país tem de ter sempre a grandeza de se afastar das avaliações conjunturais neste tipo de questões. E aos seus dirigentes é exigível sentido de Estado na sua ponderação.
Resta o tema José Sócrates. É um caso claramente diferente do de Durão Barroso. A prática consagrou que a todos os primeiros-ministros da era democrática é concedida a mais alta condecoração que pode ser entregue a alguém por serviços prestados ao país - a grã-cruz da Ordem de Cristo. Não estabelece quando é que esse gesto, que a lei não impõe mas que a tradição consagrou, deve ser assumido.
Curiosamente, Eanes foi quem condecorou Pinto Balsemão, mesmo depois de anos de tensa convivência. Mas devo dizer que percebi quando Jorge Sampaio, no seu tempo de presidente, decidiu não ser ele a distinguir Santana Lopes, com quem tinha tido um conflito político muito sério. Acabou por ser Cavaco Silva a fazê-lo. Agora, Cavaco Silva não parece inclinado a assumir o gesto de condecorar José Sócrates, com quem a conflitualidade foi ainda mais grave. Posso admitir que o não faça, até porque presumo que seria algo contrangedor para o próprio José Sócrates receber a comenda das mãos de Cavaco Silva. O sucessor deste o fará. A mim, a quem foi atribuída, há mais de uma década, precisamente essa mesma condecoração, não me é confortável a ideia de que um antigo primeiro-ministro do meu país a não possua.