segunda-feira, agosto 22, 2011

Pousadas

Uma das poucas coisas que fragiliza a minha animosidade irredutível face ao Estado Novo são as nossas pousadas*. Foram criadas em 1942, por essa figura muito interessante da cultura portuguesa que se chamou António Ferro e representaram uma tentativa de dar realce às diferentes regiões do país, à diversidade da sua gastronomia e dos seus costumes, incentivando o turismo estrangeiro e um turismo interno mais exigente. Em 1945, tinham já sido estabelecidas oito pousadas. Vale a pena dizer que os "paradores" espanhóis, instituídos nos anos 20, foram os inspiradores das nossas pousadas, mas a expansão destas foi mais rápida e sustentada que o do (excelente, aliás) modelo vizinho, que só viria verdadeiramente a desenvolver-se a partir dos anos 70.

Ferro deixou bem claro o que pretendia das pousadas, ao afirmar, na inauguração da primeira daquelas unidades, em Elvas: "o luxo e a ostentação, muitas vezes sem conforto nem bom gosto, não constituem, obrigatoriamente, a matéria-prima do turismo", pelo que as pousadas deveriam ser "pequenos hotéis que não se parecessem com hotéis". Embora isto possa chocar os espíritos de hoje, nada melhor para qualificar o seu objetivo do que esta sua frase: "se o hóspede, ao entrar numa destas Pousadas, tiver a impressão de que não entrou num estabelecimento hoteleiro onde passará a ser conhecido pelo número do seu quarto, mas na sua própria casa de campo, onde o aguardam os criados da sua lavoura, teremos obtido o desejávamos". E também: "o conforto rústico, bom-gosto fácil no arranjo das coisas e também no paladar, simplicidade amável, eis as grandes linhas do programa das nossas Pousadas", que se pretendiam "pequenos conservatórios da cozinha portuguesa". Os tempos mudaram muito e as pousadas também.

Inicialmente, as pousadas eram relativamente baratas e - imagine-se! - tinham um limite imperativo de três dias de ocupação por utilizador. A forma da sua gestão teve um percurso que partiu da plena dependência estatal até ao modelo atual, em que o grupo hoteleiro Pestana detém uma posição maioritária, numa forma de semi-privatização, que não deixou de ter consequências sensíveis na oferta atual de serviço e qualidade das Pousadas, sujeitas a um padrão de exploração onde praticamente desapareceram as preocupações originárias de serviço público. Algumas unidades vivem num regime de "franchising" que, igualmente, afeta fortemente a identidade do conceito.

Atualmente (2011) estão em funcionamento 40 pousadas **. Verifico que já dormi em 33 destas unidades hoteleiras mas, na realidade, já estive alojado em 48 pousadas... Como é isto possível? Porque, ao longo das últimas décadas, pelas minhas contas pessoais, desapareceram 17 pousadas (de que conheci 15). Recordo unidades que encerraram como pousadas, como as de Miranda do Douro (ia-se jantar à Balbina), de Póvoa das Quartas (ia-se ao Camelo, em Seia, ou ao Júlio, em Gouveia), de Castelo do Bode (ia-se, claro!, ao Chico Elias), de Serpa (jantava-se na Pousada mas, antes, ia-se beber a melhor imperial "do mundo" ao Lebrinha), de S. Brás de Alportel ou de Sousel, todas com panoramas magníficos. Mas, devo dizer, não verto lágrimas por pousadas desaparecidas como as de Monsanto, de Almeida, de Proença-a-Nova, da Quinta da Ortiga ou da Batalha. Apesar de tudo, confesso que tenho pena de já não existirem as unidades tão históricas como as de Santo António de Serém, de Santiago de Cacém, do Torrão ou de Vila Nova de Cerveira (onde se comia muito bem). Houve ainda uma pousada, em S. Martinho do Porto e uma unidade na Madeira, a pousada dos Vinháticos, não tendo conhecido ambas.

Durante alguns anos da minha vida, por razões diversas, tinha obrigatoriamente de trabalhar todos fins-de-semana. As pousadas eram o meu "pouso" preferido para isso. Nesse tempo, quando os preços eram outros, cheguei mesmo a passar férias em pousadas. Por isso, tenho sobre elas muitas e diversas experiências, que vão desde grandes exemplos de profissionalismo a monumentais descasos. Mas, apesar de algumas razões que possa ter em contrário, ainda hoje sou "addicted" das nossas pousadas e, sempre que posso, frequento-as.

* Uma nota curiosa. O conceito de "pousada", no Brasil, qualifica, em regra, estabelecimentos hoteleiros com um nível abaixo do das nossas pousadas. Assim, quando o grupo Pestana recuperou, em Salvador da Baía, o Hotel Convento do Carmo, que era, à  época, a mais bela unidade das "Pousadas de Portugal", não lhe essa designação.  

** Anoto aqui as primeiras Pousadas: Santa Luzia, Elvas (1942), São Gonçalo, Marão (1942), Santo António, Serém (1942), São Martinho, Alfeizerão (1943), São Braz, S. Braz de Alportel (1944), Santiago, Santiago do Cacém (1945), São Lourenço, Serra da Estrela (1948)

domingo, agosto 21, 2011

"Santirso"

Ontem, ao ver as peixeiras da ribeira de Viana do Castelo imitarem uma discussão, durante a "festa do traje" das festas da senhora da Agonia, lembrei-me do "Santirso".

O "Santirso" era o nome de um barco espanhol de transporte que, na minha infância, aportava com alguma regularidade à doca de Viana do Castelo, em frente à casa da minha avó. Isso nada teria de especial, num porto que, à época, era bastante movimentado, se não se desse o caso da presença desse barco estar associada, no imaginário das pessoas da pesca vianense, à chegada de mau tempo. Por isso, e porque a coincidência se repetia com demasiada frequência, era voz corrente que as mulheres da ribeira apupavam os marinheiros do "Santirso", que olhavam como responsáveis pelas condições climatéricas que não permitiam a saída da barra dos pescadores.

Nestas festas da senhora da Agonia, o "Santirso" não chegou e o tempo acabou por mostrar-se clemente, salvo na derradeira noite. Mas uma coisa é certa: há chegadas que dão azar e estragam o clima.

Em tempo: apanhei isto na internet sobre a "lenda" do "Santirso" 

sexta-feira, agosto 19, 2011

Feiras

Num debate na Assembleia da República, o líder do CDS/PP tinha feito uma crítica a alguns aspetos da presidência portuguesa da União Europeia que então decorria, nesse início do ano de 2000, em que eu tinha alguma responsabilidade na matéria. Não era nada de muito radical, mas apenas o tom habitual dos partidos de oposição, que sempre procuram certos "nichos" de divergência pontual, mesmo quando subscrevem, por razões de Estado, o essencial da ação do governo na área externa. Como era o caso.

Nesse seu discurso, a que o primeiro-ministro estava a dar resposta aos temas substantivos, o líder oposicionista tocara, em moldes que recordo críticos, a questão da distribuição geográfica das reuniões europeias que a presidência portuguesa estava a realizar pelo país, como era habitual nesses longínquos tempos em que os Estados membros ainda pesavam alguma coisa no exercício das presidências semestrais. Já não recordo bem, mas talvez porque Aveiro não estivesse nesse mapa...

Da bancada do governo, fiz então chegar, discretamente, àquele lider partidário uma pequena nota manuscrita, que dizia basicamente o seguinte: "Achei muito injusta a sua crítica ao mapa de reuniões comunitárias no território português. Com efeito, deve ter notado que a cimeira final da presidência portuguesa está marcada para uma determinada cidade, num gesto que pretende ir ao encontro daquilo que se sabe ser objeto de um carinho especial da sua parte. Não foi por acaso que escolhemos Santa Maria da ... Feira!".

Não deixarei de perguntar ao meu atual ministro se se lembra da gargalhada sonora que deu ao ler a minha nota, para imensa perplexidade de deputados de várias bancadas e dos meus colegas de governo.

quinta-feira, agosto 18, 2011

Prestígio

A pequena história que anteontem contei, sobre um percalço familiar de um meu conterrâneo, suscitou algumas indignações femininas. Nada de que se não estivesse à espera!

Isto acicatou, devo dizer, o meu pendor para, neste tempo "light" estival, provocar o "politicamente correto" e trazer à memória uma outra historieta, de que há muito ouvi falar.

Tratava-se de um cavalheiro, bem apessoado, figura de elevado nível na administração pública de Vila Real, o qual, por razões funcionais, era obrigado a deslocar-se "lá baixo", a Lisboa, com alguma regularidade. Nesses tempos dos anos 60, essas viagens eram longas, obrigando a estadas de mais do que uma noite.

Um dia, uma amiga da mulher desse oficioso viajante perguntou-lhe:

- Ouve lá! Tu não achas que o teu marido, com todas essas viagens a Lisboa, não pode ser tentado a ter por lá algum "caso"?

A senhora, pessoa serena e muito educada, respondeu-lhe:

- Sabes?, se calhar tens razão. Mas se há coisa que eu não posso controlar é isso. Ele fica lá por Lisboa no Suíço-Atlântico e tudo pode acontecer. Mas, olha!, se alguma coisa ocorrer, ao menos tenho a esperança de que ele não faça "fracas figuras"...

Estou certo que mesmo as mais empedernidas feministas do meu "quadro" de comentadores não deixarão de achar tocante esta preocupação com o prestígio familiar.

"Las dos Españas"

Não, não me estou a referir àquelas que ontem se defrontaram e que foram tituladas por dois estrangeiros geniais: Messi e Cristiano Ronaldo.

As "duas Espanhas" de que quero aqui falar são as do poema de António Machado e que dão mostras de se manterem na profundidade da alma espanhola: a Espanha tradicionalista, católica, absolutizadora dos valores da ordem e a Espanha progressista, laica e disposta a forçar roturas de modernidade.

Os confrontos religiosos que ontem tiveram lugar em Madrid são um sinal pouco agradável de que sobrevivem, na sociedade vizinha, tensões radicais que, não obstante enquadradas por uma sólida democracia, testada por duras provas nas últimas décadas, se situam agora já fora do terreno das ideologias políticas e começam a ancorar no reino menos racional e muito mais emotivo das crenças. Esperemos que o bom senso prevaleça e que esta polarização, somada à crise económica e ao tempo eleitoral que aí virá, se resolva sem grandes feridas no tecido desse grande país que é a Espanha, cuja estabilidade faz mais parte da nossa do que alguns inocentes inúteis pensam.

quarta-feira, agosto 17, 2011

Porto

A França continua liderar as compras mundiais de vinho do Porto, de acordo com as estatísticas mais recentes. 

Um dos "mitos" que ainda subsiste, ligado ao consumo de Porto, diz respeito ao Reino Unido, que, por muito tempo, foi o destino preferencial daquele produto. Ainda hoje, se perguntarmos à maioria dos portugueses qual o maior consumidor do vinho do Porto, a maioria indicará, seguramente, o mercado britânico. Ora países como a Holanda, ou o próprio mercado interno português, já hoje ultrapassam, em muito, o Reino Unido.

Em 2011/2012, em articulação com a AICEP e o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto vamos tentar reforçar a promoção do vinho do Porto no mercado francês. Também no próximo ano, a Embaixada portuguesa em Paris vai acolher a atribuição do prémio ao melhor "sommelier" francês especializado em vinho do Porto.

O vinho do Porto, um produto de altíssima qualidade e prestígio, cuja comercialização sofre de alguns problemas, continua a ser uma das grandes imagens de marca de Portugal. E temos muito poucas.

Tecnologias

Aqui deixo uma breve historieta da minha terra, verídica, para elevar a boa disposição ao nível dos "spreads".

O homem tinha partido de regresso a casa, pela tardinha. A certa altura, foi seduzido por alguma "fruta" (o termo é de raiz futebolística nortenha, para quem não saiba) humana que se oferecia à beira da estrada. Parou, negociou e, antes do resto, telefonou à mulher, informando-a de que um compromisso de última hora o impedia de ir jantar. 

E lá foi, acompanhado, para a mata próxima. Horas depois, chegado a casa, foi recebido pela cara metade de caçadeira na mão. A tragédia foi evitada, a custo, por familiares. O que acontecera? O nosso homem esquecera-se de desligar o telemóvel, depois da chamada para a esposa, que assim teve o "privilégio" de ouvir o "relato" ao vivo do recreio do cônjuge.

Vi-o hoje, feliz da vida.   

terça-feira, agosto 16, 2011

"Eurobonds"

Leio hoje no título do "Público": "Eurobonds fora da agenda da cimeira entre Merkel e Sarkozy".

E recordo-me disto:

"O recurso ao endividamento comunitário, através de obrigações europeias (eurobonds), constituiria um sinal de empenhamento da União com soluções de natureza comunitária, num momento em que se verificam restrições de natureza orçamental para prosseguir, a nível nacional, acréscimos nos investimentos públicos, nomeadamente aqueles que eventuais choques assimétricos provocados pelos impactes diferenciados do euro no tecido económico e social da União vierem a justificar."

(in "Diplomacia Europeia - instituições, alargamento e o futuro da União", ed. Dom Quixote, Lisboa, 2002, pag 177)

Aqui deixo este extrato de um texto ("Uma Europa Solidária?") que escrevi, há mais de 12 anos, republicado em livro, em 2002.

segunda-feira, agosto 15, 2011

Cosmopolitismo

Não é a primeira vez que, em alguns comentários a este blogue, recebo remoques pelo facto de utilizar palavras ou expressões estrangeiras, que vulgarmente identifico entre aspas. Devo dizer, desde já, que eu próprio me não sinto muito confortável com o recurso regular a esses termos. A realidade, porém, é que há determinados conceitos que me parecem tão bem sintetizados e tipificados em algumas línguas estrangeiras que reconheço que me dou frequentemente ao luxo de não ter de procurar, para eles, um equivalente em português. Aceito ser esta uma óbvia fragilidade, mas é também o preço de ter de optar por uma escrita rápida, imediata, que permite um ritmo diário de posts, sem grande burilamento ou beleza estilística.

Na vida diplomática, o recurso a expressões estrangeiras - principalmente inglesas, mas também francesas - faz parte do nosso dia-a-dia, o que, naturalmente, marca o discurso corrente e acaba por aparecer, de forma quase abusiva, em todas as apresentações que fazemos. Acredito que este meu "defeito" venha daí.

A este respeito, recordo-me de uma história, de que hoje não me orgulho muito, não tanto pelo facto em si, que até foi divertido, mas principalmente pela circunstância do meu interlocutor ter já, infelizmente, desaparecido.

A cena passou-se na comissão de Assuntos Europeus da Assembleia da República, creio que logo no final de 1995. Como responsável governamental pelo setor, eu estava a ser interpelado sobre dossiês que estavam em discussão em Bruxelas. Tinha feito uma intervenção inicial de, creio, cerca de meia-hora e ouvia as questões que, de seguida, me estavam a ser colocadas pelos deputados.

O deputado do PCP, Lino de Carvalho, para além das normais críticas oposicionistas à política do governo que eu ali simbolizava, disse algo parecido com isto: "O senhor secretário de Estado, nesta sua intervenção, mostrou alguns desagradáveis vícios de cosmopolitismo, recorrendo, com frequência, a expressões estrangeiras. Em poucos minutos, contei uma boa dezena delas, como "phasing-out", "leftovers", "acquis", "leverage" e outras do género. Eu sei que a profissão de V. Exa. conduz a um convívio intenso com o estrangeiro, mas devo dizer-lhe que acho lamentável estes excessos de cosmopolitismo. A meu ver, um representante governamental português tem a obrigação de vir para aqui falar exclusivamente a sua língua aos seus deputados".

Eu era um novato nas lides parlamentares e achei que, no contexto de um debate em "petit comité" (lá estou eu a usar expressões estrangeiras...), que decorria de forma solta e descontraída, me poderia permitir uma graçola política. Só que, como irão ver, o tiro saiu-me pela culatra.

Assim, interrompi o deputado, cuja intervenção ainda não tinha terminado e, pedindo autorização ao presidente da comissão, que creio que era o José Medeiros Ferreira, disse: "Eu quero pedir perdão ao senhor deputado pelo uso excessivo que fiz de expressões estrangeiras. Com efeito, reconheço que incorri num condenável vício de cosmopolitismo. E sei que isso toca fundo no património de memória do partido que V. Exa. aqui representa, o PCP. Com efeito, todos recordamos bem que, nos "processos de Moscovo", Estaline fez condenar à morte, por crimes de cosmopolitismo, muitas pessoas. Vou, assim, tentar conter-me, futuramente, na utilização de expressões estrangeiras".

O que eu fui dizer! Lino de Carvalho, com o ar grave que a sua barbicha leninista lhe conferia, sentiu-se ofendido com a minha intervenção, considerou-a "provocatória", "arrogante" e "insultuosa". E o agravamento do ambiente que o incidente projetou sobre a sessão, que até aí decorrera morna e sem polémicas, fez com que os sorrisos que a minha graçola inicialmente provocara se transformassem numa sólida, se bem que silenciosa, solidariedade parlamentar, em apoio à honra ofendida do colega deputado, como era patente na expressão facial coletiva à volta da mesa. Mesmo nos deputados que apoiavam o governo que eu ali representava denotei um visível incómodo com o insólito da situação criada.

Não me recordo como tudo acabou, mas tenho claro que falei, mais tarde, com Lino de Carvalho, junto de quem procurei justificar-me. A partir de então, e com o tempo, as nossas relações acabaram por normalizar-se e, nos anos que se seguiram, tive-o por um interlocutor muito sério e sabedor sobre questões de agricultura europeia. A sua morte deixou saudades no nosso parlamento e o nosso bate-boca fez-me aprender uma bela lição. 

domingo, agosto 14, 2011

Figuras

Sou dum tempo em que se "emigrava", cedo na vida, da província para Lisboa ou para o Porto, às vezes para estudar, muitas outras simplesmente para aproveitar a macrocefalia económica das grandes cidades.

Porque tínhamos saído adolescentes da terra de origem, era-nos necessário, nos tempos das visitas em férias, começar a adquirir localmente um estatuto de adultos, em cidades ou vilas que, à partida, nos não reconheciam como tal, porque, no imaginário local, não passávamos do "filho de" fulano.

Foi assim comigo em Vila Real e, anos mais tarde, estou certo que o mesmo aconteceu, por exemplo, ao dr. Pedro Passos Coelho, que, embora bastante mais novo, teve um circuito de vida comum a muitos vilarealenses.

Mais no caso da minha geração, durante esses regressos episódicos à cidade, pelas festas ou pelas férias, um dos ritos iniciáticos de reconhecimento desse "upgrading" passava pela partilha das mesas nos cafés mais tradicionais, com pessoas mais velhas - sempre homens, claro! Levavam-nos amigos que nos ajudavam a fazer essa transição e, a pouco e pouco, íamos tendo direito de assento nesses grupos de pessoas.

Alguns eram homens de personalidade marcante, verdadeiros "opinion-makers", quase sempre com ideias bem definidas, respeitados, por vezes temidos, acolitados por amigos que se apagavam sob o seu brilho e davam deixas para as suas "saídas". Muitos eram incontestáveis chefes de tertúlias, que contavam histórias deliciosas sobre gente local desaparecida.

(Não resisto a contar uma das mais clássicas, a imorredoura frase do Dr. Sampaio e Melo, o qual, do alto da sua bigodaça e voz forte, uma tarde dos anos 50 anunciou, perante um dúzia de amigos: "Tenho a comunicar-vos que acabo de dormir com a mulher de um dos presentes!". O embaraçoso silêncio que se abateu sobre o grupo, por penosos segundos, só se diluiu com o esclarecimento subsequente: "Com a minha, claro!")

Nesses encontros de gerações, que, com o decorrer dos anos, atenuam décadas de diferenças de idade e colocam todos numa espécie de camaradagem atemporal, os mais novos iam criando lentamente o seu estatuto, sendo-lhes dada uma atenção progressiva, à medida da própria maturidade que iam demonstrando. Mas o papel das grandes figuras, desses marcos humanos que fazem a identidade das pequenas cidades, esse mantinha-se intocado e intocável. Eram advogados, médicos, engenheiros ou empresários que, com o prestígio e os cabedais ganhos, a que muitas vezes se somava um tecido familiar conhecido e reconhecido, se haviam alcandorado ao pequeno grupo de "grandes senhores" locais - e uso a expressão com todo o sincero respeito que o conceito me merece.

Uma tarde, no final dos anos 60, numa dessas mesas a que eu tivera acesso numas férias da universidade, a discussão derivou para a caça e para a pesca. Como estes eram temas que nada me diziam, fiquei calado, a ouvir os "experts". A certo passo, vieram à baila as imperativas alvoradas a que aquelas atividades obrigam. Nesse particular, o meu silêncio já traduzia algo de embaraçado: nessas férias escolares, os meus pequenos almoços raramente tinham lugar antes do meio-dia, na obediência ao sacrossanto princípio de que "se esta vida são dois dias, há que aproveitar bem as noites...".

Liderava tal conversa o dr. Manuel Vaz de Carvalho.

Tratava-se de um advogado literato, poeta de mérito, muito culto, de qualidade intelectual reconhecida desde os tempos de Coimbra, figura prestigiada da barra da Justiça, cujo verbo argumentatório se dizia ser temido por magistrados e colegas, muito para além dos limites da comarca. Vivia numa moradia na Timpeira, então um arrabalde da cidade, com um rancho de filhos, educados com rigor, onde a minha e as subsequentes gerações ancoraram sólidas amizades. Com uns cabelos revoltos, tinha voz forte e um fácies grave, que escondia uma finíssima ironia e uma imensa capacidade de ser amigo do seu amigo.

O dr. Vaz de Carvalho, num dos momentos da conversa, sentenciou, para a mesa: "Eu nunca percebi como pode haver por aí uns maduros que não sabem apreciar um nascer-do-sol, a clareza de uma manhã de primavera na saída para uma pescaria, o fresco desafiante das primeiras horas de um dia de outono, para partir por esses montes à caça! Há por aí uma malta que se levanta sempre tarde, que perde as noites e que não sabe apreciar o sol das manhãs". E a diatribe prosseguiu, com o fuzilamento verbal desses madraços.

Embora a tirada me não fosse dirigida, eu sentia-me potencialmente esmagado, porque a "carapuça" servia-me à medida. Em busca de apoio solidário, olhava para dois ou três camaradas de noitada sentados em volta, que miravam os espelhos da "Pompeia", disfarçando, brincando com as colheres do café, num tempo em que não havia ainda telemóveis para fingir ocupação. E, sei lá!, para dar-me ares de à-vontade, devo ter pedido ao Neves mais um "fino"... 

E lembro-me de ter tido a tentação de dizer: que também eu gostava imenso do nascer-do-sol e do fresco do início da manhã. Só que, imediatamente a seguir, costumava ir deitar-me... A prudência aconselhou-me, e bem, a não lançar essa graçola para a mesa, pela impertinência que o meu estatuto ainda não permitia. Nem quero imaginar o que o dr. Vaz de Carvalho me responderia!

Poucas vezes havia contado esta historieta. Na semana passada, ri-me, com ela, com o Paulo, o genial guitarrista e professor universitário, filho do dr. Vaz de Carvalho, num simpático almoço a dois, no sossego do Lameirão.

Ao princípio desta tarde, soube que o dr. Manuel Vaz de Carvalho tinha falecido, precisamente ontem. Ainda fui a tempo de dar um abraço sentido à sua família. E de aqui deixar esta despretenciosa historieta, em memória de uma das grandes figuras que marcou a Vila Real do meu tempo.   

sábado, agosto 13, 2011

Brincar com o fogo

Os "jongleurs" com fogo, para efeitos lúdicos, são excelentes fautores de espetáculos. Divertem-nos, correm riscos limitados e têm uma técnica que produz efeitos, como esta bela imagem de José Miguel retrata, numa das noites mágicas do cruzeiro da "Douro Azul" que hoje acabou.

Estes são também momentos que têm a virtualidade de nos ajudar a refletir. Um amigo, habituado a aplicar a inteligência à vida, deixou-me cair, no decurso do "show": "Ora aqui está quem pode e sabe lidar profissionalmente com as chamas. Pena é que outros, que não sabem, brinquem tantas vezes com o fogo". 

Grande verdade! Cada vez mais... e mais não digo.

sexta-feira, agosto 12, 2011

Águas passadas no DOC

Ontem, no rio Douro, ao passar em frente ao restaurante DOC (como registo na foto), na Folgosa, entre a Régua e o Pinhão, recordei-me de ter escrito, já há quase três anos, um texto num blogue ("paralelo") que não tenho alimentado muito e que se chama Ponto Come. Tratou-se de uma "estranha" experiência ocorrida nesse mesmo DOC. Nestes tempos de assumida preguiça, e com uma ainda mais assumida publicidade a essa bela mesa gastronómica, aqui fica o texto (ainda antes do AO, para os saudosos):

O entusiasmo com que partira a caminho do DOC foi de tal forma afectado pelo choque da informação recebida que abrandei a velocidade e quase parei o carro. Um jantar no DOC, sem vinho?!

Pois era essa a proposta, nem mais nem menos: uma refeição de degustação, só com águas e total ausência de alcoóis. Confesso que a hipótese de desistir chegou a passar-me pela cabeça e que só o facto de haver um compromisso fixado com antecedência, e não querendo ofender o autor do alvitre – um arquitecto de “primeira água” –, fez com que a minha relutância fosse atenuada.

A imagem que eu mantinha do DOC era muito positiva, pela boa memória de uma visita passada. Críticas lidas ao longo do ano haviam-me alimentado o desejo de regressar e rever a cozinha de Rui Paula, que me diziam estar cada vez mais imaginativa, com uma rara sustentação de qualidade. Mas, tenho de confessar, desse desejo também fazia parte integrante a possibilidade de acompanhar a comida com algum ou alguns dos excelentes Douros que integram a magnífica lista de vinhos que o restaurante sempre apresenta.

O DOC tem uma situação privilegiada, na margem esquerda do Rio Douro, a meio desse percurso mágico que é a sinuosa estrada entre a Régua e o Pinhão, bordejada de vinhas e nomes de quintas, algumas a fazerem-nos recordar rótulos de belas produções vinícolas. O local é magnífico, em dia ameno pode-se utilizar o deck exterior. Dentro, telas de plasma na sala permitem seguir os trabalhos na cozinha, um exercício de transparência que nos aumenta a confiança. Uma área para amenizar a espera foi entretanto criada, com um piano a sugerir interessantes potencialidades e a assegurar que nunca o espaço virá a ser perturbado por uma qualquer “musak” ambiental. E, sobre tudo isso, a certeza de podermos beneficiar de um cenário deslumbrante, no centro de uma paisagem de uma serenidade única.

Tudo bem, tudo isso era verdade, mas a minha perplexidade mantinha-se. A ideia continuava a ser verdadeiramente bizarra: um jantar degustação, sem vinhos, só com águas?! Não sou fundamentalista, não sou um ansioso de vinho, passo imensos dias sem provar uma gota de álcool. Mas no DOC, no coração do Douro, um jantar sem vinho soava-me como que ofensivo a esses “montes pintados” que Araújo Correia nos descreveu.

Foi num misto de perplexidade e curiosidade, com a primeira a superar em muito a segunda, que entrei no restaurante. Ainda lancei, sem sucesso, a ideia de, pelo menos, “abrir” com um gin tónico, como que a criar lastro etílico para sustentar o que aí viria. Fui logo desiludido por vozes suavemente reprovadoras, que me alertaram para os riscos de afectação da pureza gustativa, a qual deveria ser mantida numa espécie de virgindade profiláctica, indispensável ao acolhimento dos gozos que se seguiriam.

E, pronto, lá fomos para a mesa, uma dúzia de convivas, a maioria desconhecidos, uns aparentemente mais convictos das virtualidades do exercício que outros – comigo, francamente, bem ancorado no campo dos últimos.

Tudo começou por um período inicial de carência psicológica, em que um ou outro lá ia recordando a falta do vinho à mesa. A sólida constatação de que o único líquido permitido seria a água provocou então graçolas nervosas, com os mais imaginativos a aventarem o recurso limite a uma “aguardente” ou a uma “água-pé”.

É que, de facto, eram as águas as rainhas da noite. Águas diferentes, umas lisas outras gasosas, umas mais “planas” outras mais “profundas”, algumas algo “agressivas”. Tivemos até o privilégio de provar umas nórdicas de belo design, mais frescas umas que outras. Sempre águas, claro! Apenas uma água era portuguesa e, para mim, totalmente desconhecida.

Durante o repasto, as águas sucediam-se, em copos diferentes, cada uma a acompanhar as (creio!) oito propostas gastronómicas, que não estavam sequer listadas à partida. Um simpático “expert” – reputado conhecedor de vinhos, imaginem! – procurava ajudar-nos a identificar, não apenas a singularidade de cada uma das águas experimentadas (sobre cujas qualidades comparadas alguns dos convivas já ousavam, a medo, “mandar bitaites”), mas igualmente a razão pela qual essa mesma água fora seleccionada para acompanhar tal prato, em função do seu potencial para combinar, por contraste ou complemento, o produto cozinhado.

E foi então que se foi passando essa coisa extraordinária que foi o facto de, sem disso termos real consciência, a ausência do vinho ter deixado praticamente de constituir tema da conversa, muito menos de qualquer angústia. A refeição, regada a águas, ia-se impondo naturalmente, perante o deslumbre dos sentidos, a variedade das escolhas propostas, a riqueza das combinações que nos eram oferecidas.

Duas evidências ficaram claras, na minha perspectiva.

A primeira foi o facto da ausência do vinho nos ter tornado, a todos, muito mais atentos aos sabores do que nos ia sendo apresentado, não nos “distraindo” da essência dos paladares, obrigando a que nos concentrássemos, de forma mais profunda, em cada componente do que nos era sugerido. Por mim, pude constatar que o vinho, em toda a sua imorredoura glória de factor criativo e de qualificador global do gosto, pode ter o “defeito” colateral de nos afastar do esforço de procura de construção/desconstrução do que estamos a saborear, da especificidade de um molho, da ténue diferença gustativa de um vegetal, da “nuance”, quase imperceptível, de um produto sujeito a um tratamento muito sofisticado. Digo isto porque, talvez pela primeira vez desde há muito, consegui descortinar e isolar, combinando-os depois muito melhor, os componentes que o Chefe ia indicando como constituintes das propostas gastronómicas que surgiam.

Quererei dizer, com isto, bem no coração deste nosso Douro, que o vinho passou a ser algo dispensável? Longe disso: o vinho é, cada vez mais, o grande “sublinhador” criativo dos paladares, o provocador de efeitos que se acrescentam aos alimentos e deles consegue extrair novos e decisivos matizes. E tem, além disso, uma importante carga eufórica, que excita as almas e alegra os tempos, particularmente se for de qualidade e se tomado com conta, peso e medida – e, claro, se as garrafas forem abertas com antecedência adequada e se servido à temperatura requerida.

Mas esta interessante experiência teve a virtualidade de nos mostrar que, numa refeição, há mais vida para além do vinho, se bem que a vida e a refeição sejam sempre muito boas com ele à frente.

Uma segunda constatação também se impõe: a virtualidade desta prova, sem o recurso ao complemento do vinho, só teve o sucesso que teve pelo facto de ter sido apoiada na qualidade excepcional de todos os pratos apresentados, que a ausência do álcool permitiu que ganhassem autonomia própria, deixando-os “brilhar” por si mesmos. E foi a circunstância dessa qualidade nunca ter decaído ao longo do jantar, de prato para prato, que conseguiu garantir um apego contínuo e sustentado do nosso paladar àquilo que íamos degustando, sem fazer ressaltar a “saudade” do travo adjectivo do vinho. Com uma refeição banal, por melhores que fossem as águas, tudo não teria passado de uma grande “seca”… E eu, tenho de admitir, fui menos capaz do que outros companheiros desta agradável jornada de ser sensível a algumas características específicas que eram atribuídas e identificadas em cada uma das águas provadas.

Dito isto, vamos ao principal: Rui Paula provou-me definitivamente, nesta memorável noite, que é hoje um dos chefes portugueses com maior criatividade, que consegue aliar a sofisticação de uma cozinha contemporânea de grande nível e excelente apresentação com algumas notas de rodapé gustativo, em que faz orgulhosa questão de trazer-nos à lembrança sabores regionais, na maioria dos casos tipicamente nortenhos, umas vezes de forma subliminar, outras de modo plenamente assumido. Rui Paula consegue assim demonstrar-nos – e entendo que outros deveriam aprender com isso – que o cosmopolitismo sofisticado de uma cozinha não é incompatível com o recurso a citações sensoriais ligadas às raízes geográficas de onde se opera. Pelo contrário, a originalidade do que nos propõe no DOC só ganha com a chamada à mesa desses mesmos elementos.

Num circo, trabalhar sem rede é um risco que enobrece a arte. Num restaurante, ousar um menu sem o recurso ao complemento de vinhos será talvez a prova mais provada de que a grande gastronomia também se constrói na autoconfiança e na certeza de que a qualidade se imporá sempre por si própria. Quando exista no trabalho de um grande Chefe, como é o caso de Rui Paula.

A boa disposição com que saí deste exercício – que, a bem dizer, deveria ter o “mecenato” da Brigada de Trânsito da GNR – leva-me a ecoar a já célebre frase de um velho oficial de Marinha, pouco navegado nas especificidades da gramática, que a nossa História acolheu como uma patética anedota política, quando um dia quis qualificar uma sua qualquer alegria pública: “só tenho um ‘adjectivo’ para expressar o que hoje aqui senti: gostei!”.

quinta-feira, agosto 11, 2011

terça-feira, agosto 09, 2011

Copianço

O país anda numa maré de copianço.

Há semanas, foram os aspirantes a magistrados a darem mostras dos seus princípios de ética, que lhes prenunciam um futuro profissional de sucesso, a serem apanhados a falsificar as suas provas. O meu amigo Marinho Pinto, bastonário das Ordem dos Advogados, publicitou então a sua legítima indignação. Semanas depois, foram os candidatos a advogados, no seu exame para entrada no estágio, a revelarem especiais "qualificações", ao serem apanhados em fraude idêntica.

Na página 7 do "Diário de Notícias" de ontem, um jornalista insurgia-se, com imensa razão, com o facto de uma televisão ter pirateado, de modo flagrante, uma notícia do seu jornal, a propósito de alegadas nomeações políticas. Entretanto, na sua página 18, o mesmo jornal ilustrava uma notícia sobre uma agressão doméstica com uma imagem retirada de um ecrã de televisão, fotografado durante um telejornal.

Conclusão: estão todos bem uns para os outros. Esta é também uma parte do nosso "outro" défice.

segunda-feira, agosto 08, 2011

Paulo Castilho

Paulo Castilho não é um escritor regular. Passam-se anos sem que apareça um romance seu. Contudo, nunca desilude. Esse é o caso de "Domínio Público", recentemente editado.

Trata-se de uma trama lisboeta, muito bem escrita, com uma linguagem que revela uma cuidada atenção ao discurso quotidiano contemporâneo. Tal como em anteriores obras, Castilho mostra que, em especial, lê muito bem o pensamento das personagens femininas, sem, no entanto, se deixar subordinar à tentação fácil da mera transcrição da oralidade "modernaça", como acontece em certas escritas de uma sub-literatura urbana que por aí anda, à procura desesperada de um novo realismo pintado de tons chocantes.  

Paulo Castilho é diplomata. Há hoje muito poucos diplomatas que se dedicam à escrita de ficção. Além dele, apenas Marcello Mathias e Luis Filipe Castro Mendes publicam obras com alguma regularidade. Mas todos, sem exceção, com elevada qualidade, como a crítica sempre reconhece. O que é, "corporativamente", uma constatação muito agradável. 

domingo, agosto 07, 2011

Falta de imaginação



Vá lá! Acho que tenho direito, depois de dois anos e meio de posts (algumas vezes, mais do que um) diários, a confessar que, no dia de hoje, não tenho a mais leve ideia para um texto. Não me ocorre nada que possa mobilizar o mais disponível dos leitores, mesmo os reformados que se dedicam, com nome emprestado e zelo telefónico, a entrar em direto no Fórum TSF ou nas tardes da SIC, comentando, com evidentes crises de vesícula, a atualidade, com uma abrangência temática digna do professor Marcelo. Nada! Hoje, não me sai rigorosamente nada!

Preguiçosamente, olhei para a imprensa, a ver se me pilhava alguma ideia. Ainda pensei abordar a questão da permissão excecional que, logo este ano, foi dada para a caça aos melros*. Seria uma exigência da "troika"? Mas não me recordo que o MoU tenha algo que permita disparar sobre as amáveis aves de bico laranja. E dei por mim a reler o poema que o Guerra Junqueiro lhes dedica, que o meu pai recitava como ninguém.

Lembrei-me também da questão da estátua de Caramuru na praça da República, em Viana do Castelo, um mostrengo que a saloiíce municipal permitiu que se implantasse naquele que é um dos espaços urbanos mais bonitos do país. Sempre seria um motivo acrescido para lembrar Viana, onde acaba de abrir agora um novo museu do Ouro (um abraço pela tua coragem, Manel!). Parece que há um movimento cívico para deitar abaixo o mamarracho. Se for precisa mais uma assinatura... Mas não é tema!

Ontem, foi dia de subida à senhora da Graça. Para quem não saiba, esta é a segunda mais importante etapa da Volta a Portugal em bicicleta, depois da "etapa-raínha" da Torre. De Mondim até lá acima, são imensos (embora poucos) quilómetros de esforço, que sempre impediram o "foguete da Rebordosa" (quem sabe de ciclismo sabe do que estou a falar) de ganhar a competição. Para post, contudo...

Ou, finalmente, ainda pensei que poderia aqui falar do meu Sporting e do modo 100% eficaz como, neste fim de semana, conseguiu assegurar, um honroso lugar no torneio "Ramón Carranza". O último lugar, claro. Tenho a sensação de que, uma vez mais nesta época, nós, os sportinguistas, vamos ter os nossos costumeiros problemas dermatológicos. Porquê? É que os "adeptos leoninos" (adoro esta linguagem de jornal desportivo), no início de cada época futebolística, esfregam de tal forma e com tal intensidade as mãos, repetindo "este ano é que é!", que acabam por ter sérios problemas de pele.   

Mas, não: decididamente, hoje, não tenho nenhuma ideia para um post. Até amanhã!

* Leitores atentos chamaram a atençãp para o lapso: não eram canários, eram melros. Aliás, o poema de Guerra Junqueiro sobre os canários ainda está por escrever.

sábado, agosto 06, 2011

Europa

O presidente da Comissão Europeia proferiu uma declaração sobre a necessidade de reforço das medidas de apoio europeu, para acorrer à conjuntura que o euro vive. Essas palavras terão caído mal em algumas chancelarias, por poderem ser interpretadas como uma implícita desconfiança na eficácia do pacote de medidas aprovado no último Conselho Europeu.

Aparentemente, o Dr. Barroso teve toda a razão em dizer o que disse e é muito bom sinal que se sinta cada vez mais motivado para interpretar, nas declarações e nas atitudes, essa coisa básica que é o interesse comum europeu - que muitas vezes não coincide com a média aritmética dos interesses dos países que mandam na União Europeia. Quanto mais as tomadas de posição do presidente da Comissão tiverem o condão de irritar certos Estados que se mostram relutantes perante a necessidade de adoção de políticas firmes que acalmem os mercados, mais isso significa que o comissário de nacionalidade portuguesa (as pessoas tendem a esquecer que Portugal é o único Estado da União que não teve a possibilidade de escolher um comissário) se aproxima do papel de garante dos Tratados e se afasta da imagem de representante dos "powers that be" que o cooptaram. E que, como ele bem sabe, já não terão ocasião de o fazer de novo.

sexta-feira, agosto 05, 2011

Marta Neves

Durante muitos anos, aquela publicidade volumosa, com chavinhas e medalhas plásticas, que nos anunciava sermos potenciais vencedores de sorteios com imensos zeros, chegada da "Reader's Digest", vinha assinada, em letra manuscrita, por uma tal Marta Neves.

Alguém, um dia, me esclareceu que essa "Marta Neves" era, afinal, uma figura virtual, um nome escolhido para dar ares de personalização da correspondência. Uma coisa assim a modos como o "OK! Teleseguro, fala a Marta".

Porém, olhando nestes dias para os jornais, verifico que a informação que me deram estava errada. Afinal, a Marta Neves existe, está bem e recomenda-se. Fica assim provado que há mais vida para além do mundo virtual.

quinta-feira, agosto 04, 2011

"Serviço público" (2) - restaurantes de Trás-os-Montes e Alto Douro (revisto)

E, a exemplo do Minho, aqui deixo a minha lista de restaurantes de Trás-os-Montes e Alto Douro.

João Gomes Cravinho

Há em Portugal poucas pessoas com uma formação académica e uma experiência prática, em matéria de relações internacionais e de políticas de desenvolvimento, que se possam equiparar às de João Gomes Cravinho. Por isso, não me surpreende que a União Europeia tenha reconhecido essas qualificações e, por exigente concurso público, o tenha escolhido para chefe da sua delegação em Nova Deli. Só prova que estão atentos...

Com esta nomeação, há agora portugueses à frente de delegações do Serviço Europeu de Ação Externa em três dos sete países com os quais a União Europeia desenvolve "parcerias estratégicas" (EUA, Canadá, Rússia, China, Japão, Índia e Brasil).

Há quem pense que estas coisas acontecem por acaso, que é apenas pela roda da sorte que um português chefia a Comissão Europeia, que outro é Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados ou que outro ainda dirige a Aliança das Civilizações. O mérito pessoal de todas estas pessoas impôs-se, mas isso só foi possível, tal como a nossa presença no Conselho de Segurança da ONU, porque a nossa expressão diplomática, à escala europeia e global, tem qualidade e prestígio, é respeitada e reconhecida. Por isso, tal como o Porter recomendava para os "clusters" da nossa economia, devemos fazer ainda melhor o que, manifestamente, já fazemos bastante bem.

E, nesta ocasião, um forte e amigo abraço de parabéns ao João! 

quarta-feira, agosto 03, 2011

Pedras sem rugas

Ao ler que a l'Oréal tinha sido proibida de publicar fotos publicitárias de Julia Roberts, das quais, com "photoshop", haviam sido eliminadas as rugas, não pude deixar de lembrar a similitude desse caso com o que se passa no parque (dito) termal das Pedras Salgadas: uma montagem retocada, pintada nas fachadas, a fingir que está tudo a funcionar, sem "rugas"...

Está mais do que feita a triste história da intervenção da empresa Unicer nas Pedras Salgadas, onde já sobrevivem saudades dos tempos das gestões Cintra e Jerónimo Martins. Ou mesmo da "outra" Unicer, da era Ferreira de Oliveira.

Este blogue deu oportunamente a conhecer (consulte o marcador "Pedras Salgadas"), de forma incontestável, as flagrantes faltas da empresa face aos compromissos que tinha assumido, em especial no tocante à construção de uma unidade hoteleira, que historicamente sempre se revelou a única forma de viabilizar economicamente uma vila que nasceu em torno do seu parque termal.

Pergunte-se ao arquiteto Siza Vieira, de quem a Unicer anunciou, com espavento, que encomendaria o projeto para um hotel, que levaria o seu nome, "o que é feito" dessa mirífica obra. E talvez não fosse desinteressante alguém inquirir também sobre o que aconteceu aos "termos de responsabilidade" desse prestigiado arquiteto, face ao pouco que foi feito nas Pedras Salgadas e ao modo como outras coisas acabaram por ser concluídas na vizinhança. Mas essa é uma história para ser contada um dia...

Vale também a pena registar as omissões cúmplices de poderes públicos centrais, o "assobiar para o ar" e as tergiversações de alguns eleitos (a nível nacional e local) ou nomeados, os tristes silêncios da AICEP e do Turismo de Portugal. Com maior ou menor responsabilidade, fazem todos parte do elenco desta grande farsa.

A população das Pedras Salgadas, cuja economia está a ser estrangulada, já teve ocasião de, sobre o assunto, se expressar de forma muito clara e pública, por diversas ocasiões. Fê-lo com civismo, sem partidarismos, com dignidade, demonstrativos de quem não se sente não é filho de boa gente. E de que não tem medo, claro. Como o irá provar, futuramente, em novas ações, por forma a alertar poderes públicos, desmascar poderes privados e testar a coerência dos eleitos.

Hoje, o que é que se passa por lá, conforme pude observar, há dias? Na prática, e apenas para a minúscula "saison", está aberta a pequena piscina com um bar, a clássica "Casa de chá" foi concessionada a uns inexperientes profissionais, que servem uma gastronomia atroz, e, numa das nascentes, aparece, em certas horas, uma menina de bata branca que oferece "água das Pedras", em pequenos e finitos copos de plástico. E dizem-me que há por lá um spa, com frequência quase clandestina. São rebuscados artifícios para iludir quem passa e dar ares de se estarem a cumprir "mínimos", em matéria de responsabilidade social. Depois, virá o outono, o parque fechará e o "circo" será arquivado até ao ano. Na vila, com o comércio a estiolar e o desemprego a aumentar, as pessoas tenderão a sair, como já o estão a fazer. Só a "água das Pedras" é que não deixará, nesse entretanto, de humedecer os bolsos dos acionistas na Unicer. 

Este é o Parque "devolvido" às Pedras Salgadas: um cenário de fachada, um monumental "trompe-l'oeil", que não faz esquecer os compromissos não cumpridos, não obstante os lucros fabulosos que a empresa exploradora continua a apresentar, muito por obra e graça da água que extrai daquela terra.

Numa recente passagem pela localidade, senti que começam a esgotar-se o tempo e a paciência nas Pedras Salgadas, a menos que surja no horizonte alguma mostra de "uniceriedade".

A última morte de Mao

A sugestão adiantada nos últimos dias por alguns analistas económicos internacionais, no sentido da República Popular da China poder "dar uma mão" à crise que o sistema capitalista internacional atravessa, configura uma imensa ironia, histórica e ideológica.

Como se sentiria Mao perante esta salvífica hipótese?

terça-feira, agosto 02, 2011

Título

- Tu sabias que ele é um aristocrata?

- Quem, aquele tipo? Não fazia ideia.

- É. Deve ser por isso que chegou atrasado.

- Porquê?

- O homem nunca utiliza auto-estradas, vem sempre por estradas antigas.

- Mas não utiliza auto-estradas para poupar dinheiro?

- Não. É que um dia assustou-se quando viu, na entrada de uma auto-estrada, "Retire o título"...

Inquéritos

Os "inquéritos de verão" são uma epidérmica manifestação jornalística da "silly season". Há-os agora em versão culta, a puxar para o "profundo".

Hoje, num jornal "de referência", a primeira pergunta do jornalista ao intelectual inquirido é: " É fácil ser intelectual nesta terra medíocre?".

O intelectual, que modesta e sabiamente recusa o qualificativo, responde que considera "muito irritante que as pessoas achem que o país não está à altura delas".

Uma interpretação benévola tomará a pergunta por uma subtil ironia. E que a resposta do inquirido não representa uma bofetada de luva branca. Opiniões.

segunda-feira, agosto 01, 2011

O novo uruguaio

Eu presidia, nesse ano de 2001, à 2ª comissão (questões económicas e financeiras) da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. A certo passo de uma das sessões, dei-me conta que estava inscrito para falar o meu colega e amigo, o embaixador brasileiro Gelson Fonseca.

Provavelmente em inglês, dei-lhe a palavra. Qual não foi o meu espanto quando verifiquei que o diplomata brasileiro começou a falar... em espanhol!

As línguas oficiais da ONU são seis: o árabe, o chinês, o espanhol, o francês, o inglês e o russo. Os países de língua portuguesa têm como ambição colocar o português entre essas línguas oficiais, pelo que muitos de nós - mas esta é um regra não escrita, não formalizada, nem obrigatória para ninguém - optamos por não nos exprimir em espanhol, uma língua cuja similitude e aproximação com o português pode, de certo modo, enfraquecer aquele nosso objetivo.

Acabada a fala de Gelson Fonseca, saiu-me, no meu melhor espanhol: "Agradeço ao distinto delegado do Uruguai a sua intervenção e passo a palavra ao orador seguinte, ...". O Gelson saltou na cadeira e esclareceu, em inglês, para o microfone: "Perdão, senhor presidente, eu sou o representante do Brasil!". Ao que eu retorqui, também em inglês: "Sou eu quem peço perdão, mas a forma tão correta como o distinto delegado do Brasil se exprime em castelhano levou-me a confundi-lo com um falante de uma das antigas colónias espanholas". A parte do auditório que percebeu a graça deu umas discretas risadas.

O Gelson Fonseca "não se ficou", deu a volta à sala, subiu discretamente à tribuna e disse-me, com um ar divertido, esta coisa deliciosa: "Ó Francisco, você não percebeu! Na realidade, eu não falei espanhol, falei um "portuñol" com tantas expressões portuguesas "espanholizadas" que, no fundo, acabei quase por consagrar uma subliminar entrada do português como língua das Nações Unidas". O Gelson era e é um grande embaixador brasileiro. 

Registe-se que, por essa época, o Brasil não tinha, em relação à promoção da língua portuguesa à escala global, o empenhamento que hoje demonstra e, segundo julgo saber, os seus diplomatas eram mesmo estimulados a usar o espanhol. Nós não.

domingo, julho 31, 2011

Lídia Jorge

Já passava das três da manhã quando, num "zapping", surgiu na SIC Notícias uma conversa de Lídia Jorge com António José Teixeira. Fiquei a ver e ouvir até às quatro. Com grande proveito.

Lídia Jorge é uma intelectual atípica. Fala sobre as coisas com uma desarmante sinceridade, sem aqueles falsos improvisos, recheados de frases feitas (e testadas), que alguns dos seus colegas escritores utilizam, para se darem ares de grande originalidade, em especial quando são chamados a pronunciarem-se sobre temas do quotidiano. Há uma candura quase provocatória naquilo que diz, na forma simples, mas ao mesmo tempo profunda, como olha à sua volta, à nossa volta.

À inteligência das questões colocadas pelo António José Teixeira, a escritora não retorquiu com circunlóquios, mesmo quando os temas eram delicados e a curiosidade do entrevistador se mostrava intrusiva, como ´no da política interna da atualidade. Respondeu sempre, serena, genuína, revelando dúvidas, interrogando-se. E ajudando a interrogarmo-nos.

Há muito que gosto de ouvir e ler Lídia Jorge falando de nós, dos portugueses, com uma postura crítica sem auto-flagelação, com uma compreensão por onde perpassa a subliminar tristeza, que também nos é comum, de que tudo "tenha de ser assim". É a atitude de alguém que percebe o país, mas que não desiste dele, que não se refugia numa espécie de desespero cívico.

Posso estar enganado, mas tenho a sensação de que muitos de quantos possam assistir a esta entrevista sentir-se-ão identificados aquilo que Lídia Jorge nela diz.   

Em tempo: Lídia Jorge passou a colaborar, aos sábados e domingos, com umaa notas algarvias no "Público". A julgar pelas primeira, vale a pena não perdê-las. 

sábado, julho 30, 2011

Passos perdidos

Café de S. Bento. Fragmentos de um discurso ocioso.

- É incrível, o tipo lá conseguiu ser eleito outra vez deputado. Na legislatura anterior, não abriu o bico. Nem nas comissões! E põem-no outra vez nas listas. É um escândalo!

- É preciso dar tempo ao tempo. Consta até que já está a preparar um projeto de lei.

- Não acredito! É um calaceiro. Não é capaz de apresentar nada. Que lei é?

- A lei do menor esforço...

"Faturinha" ?

- Vai querer faturinha?

Irrita-me esta pergunta, frequente no final das refeições em restaurantes portugueses. Claro que quero sempre "faturinha", na ilusória esperança de que, assim procedendo, estarei a contribuir para evitar a evasão fiscal (depois, deito fora o papelinho, de imediato) e para que o Estado não seja lesado. Aliás, acho que deveria ser punível, por lei, fazer a pergunta e que a fatura, como acontece em muitos países decentes (e até em alguns que o são menos), deveria suceder-se, de forma automática, ao pagamento.

- Se quer faturinha vai ter de me dar um número fiscal e um nome completo.

Esta nunca me tinha acontecido! Mas surgiu-me hoje, depois de um almoço num restaurante. Essa agora! Se assim for, só alguns bem afortunados da economia privada, que podem descontar almoços e jantares no IRC ou no IRS, por deduções fiscais alfaiatadas à sua medida, é que passarão a dar-se ao trabalho de transmitir os seus dados pessoais (ou da empresa, o que é mais certo) para a emissão da fatura. Os restantes cidadãos, nomeadamente os trabalhadores por conta de outrém (como é o meu caso), que pedem fatura apenas para terem a certeza cívica de que os proprietários dessas casas comerciais pagam os impostos devidos, tenderão a não ter esse trabalho cumulativo, que implica uma tarefa extra aos restaurantes e a perda de tempo. E é assim que se estimula a evasão fiscal, que todos dizem condenar.

Entre a sábia legião de leitores deste blogue alguém pode esclarecer (1) se é obrigatório ou não emitir sempre fatura, mesmo sem pedido expresso, e (e) se somos ou não obrigados a dar um nome e número de contribuinte para a emissão da mesma?

sexta-feira, julho 29, 2011

A revisão da Constituição

A conversa estava solta e animada. Na sala daquela família burguesa da Foz portuense, discutia-se, entre amigos, a situação política decorrente das recentes eleições. Não havia grandes diferenças ideológicas entre os presentes, todos favoráveis aos "novos ventos". A certo passo, veio à baila o tema da revisão da Constituição. Revelavam-se divergentes as opiniões sobre o interesse de, nesta fase da vida política nacional, introduzir um debate que, segundo alguns, poderia abrir clivagens indesejáveis no seio novo espetro parlamentar. Outros, mais radicais, consideravam, precisamente, que era importante aproveitar a nova relação de forças para acabar com o que consideravam ser os "anacronismos" existentes no texto fundamental, ainda muito tributário dos tempos revolucionários dos anos 70.

O David era um dos membros da família a quem estas coisas da política pouco diziam. Com quase quarenta anos, sabia-se que o seu voto havia sido sempre no lado conservador, com variações de partido, mas raramente dava uma opinião sobre esses temas. As "guerras" em que se metia, como feroz portista que era, situavam-se, maioritariamente, no futebol. A mais recente tinha a ver com a "traição" do Villas Boas, que trocara o Dragão por Stamford Bridge. Aí sim, era um radical impenitente.

Por isso, todos estranharam que, ao passar da varanda para a sala, em busca de uma cervejas, tivesse lançado, para o grupo: "Pois eu, cá por mim, sou favorável a que se façam mudanças na Constituição". E logo saíu, em direção à cozinha, sem dar mais pormenores sobre as suas opções concretas na matéria. Todos se entreolharam, estranhando esta inesperada tomada de posição, tanto mais que o David não participara em nenhuma fase da conversa, onde se tinham abordado as questões laborais e de saúde. Ninguém ligou muito.

Minutos depois, o David reapareceu, sobraçando umas cervejas e alguém perguntou: "Ó David, diz lá então o que é que gostarias que mudasse na Constituição".

O David parou junto à saída para a varanda, refletiu um instante e adiantou: "Olhem! Para já, acho que deviam fazer uma rotunda no cruzamento com a Oliveira Monteiro. Assim como está é muito perigoso".

Esta história, com poucas semanas, foi-me contada por amigos do Porto, onde se situa a rua da Constituição. E quase só tem graça para eles. Mas ela aqui fica, nestas minha férias nortenhas. 

Despedidas

Estão na moda as despedidas da escrita antiga, agora que o Acordo Ortográfico vai, contra ventos, marés e Graças Mouras, entrar definitivamente em vigor.

Ontem, chegou-me este delicioso texto:

"Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. 

Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. 

São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! 

Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos. 

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. 

Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos.

Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar."

quinta-feira, julho 28, 2011

Pélvico

Fora simpática a iniciativa daquele embaixador português, numa certa capital europeia, de oferecer um cocktail de despedida ao colega que estava acreditado junto de uma organização internacional, na mesma cidade, e que ia regressar a Lisboa. Algumas dezenas de amigos tinham sido convidados para a ocasião, que tinha muito de genuína, porque os dois diplomatas tinham, de facto, uma saudável e boa relação entre si.

Chegada a hora dos discursos, o dono da casa foi pródigo em elogios ao colega que partia, sublinhando, com ênfase, a ligação de amizade e grande simpatia que mantinham. O que ninguém estava à espera é que, no entusiasmo das palavras, lhe tivesse saído, a certo passo, a afirmação: "Nós os dois temos uma proximidade pélvica!".

A sala estacou de surpresa. Que diabo?! "Uma proximidade pélvica"? O homenageado cofiou a barba e manteve o sorriso, nesse momento já um pouco mais amarelo, evitando olhar para os circunstantes, muitos dos quais abafavam risadas e trocavam divertidos e surpreendidos olhares. Com o prosseguimento do discurso, o efeito da expressão foi-se diluindo e, fixada que fora a estranheza pela frase, a maioria dos presentes como que esqueceu o episódio.

No dia seguinte, porém, um dos diplomatas da casa, mais ousado e próximo do embaixador, não resistiu a perguntar-lhe: "O senhor embaixador desculpará, mas ontem, na receção, não percebi bem o que quis significar, ao dizer que tinha uma "proximidade pélvica" com o seu homenageado".

O embaixador olhou-o do alto dos seus óculos grossos, com a cara grave habitual, que não significava zanga mas era apenas um estilo, e esclareceu: "Não percebeste? Essa agora?! Quis dizer que nós tínhamos uma grande ligação, que sentíamos as coisas na pele da mesma forma, uma proximidade "pélvica", de pele...

Realmente, a língua portuguesa é muito traiçoeira. 

Sortido fino

Há pouco tempo, surgiu um blogue que dá pelo nome revivalista de "O destino marca a hora"* e que se carateriza, além de outras coisas, pelo uso de belas fotografias.

O mais curioso, e que justifica esta nota, é o facto de nele se recomendarem alguns blogues através de qualificações sintéticas. A nós, coube-nos "sortido fino". Citando Américo Tomaz, "só tenho para isso um adjetivo: gostei!"

Silêncios

Há algumas décadas, um amigo europeu, quase nórdico, fez-me notar que, em qualquer noite portuguesa, por mais campestre que ela fosse, havia sempre o risco de se ouvir, ao longe, o som irritante de uma motorizada. E que os portugueses também já davam por adquirido esse acervo antropológico consuetudinário que eram os sinos horários das igrejas ou o som difuso das festas de verão. Enfim, para esse meu amigo, os portugueses haviam já perdido o prazer do silêncio.

Nunca havia atentado muito nisso mas, a partir de então, fiquei a matutar um pouco mais no valor dos silêncios. E passei a dedicar-me à sua procura quase militante e a racionalizar o gozo que, na realidade, deles sempre retirava. Trazia-os comigo da adolescência, quando Vila Real tinha madrugadas de intensa serenidade. Arquivei, depois, na memória, algumas noites norueguesas quase perfeitas, um certo silêncio de uma madrugade no Mussulo, uma insónia na varanda de um hotel incómodo em Fergana, no Usebequistão, e, maravilha das maravilhas!, uma absoluta ausência de ruídos no deserto de Wadi Rum, no sul da Jordânia.  

Mas continua a haver na minha vida um silêncio especial, que nunca esquecerei: uma noite, no oeste da Escócia, na Isle of Skye, nos anos 90. Tinha ido por lá em busca de um "bed & breakfast" que me diziam ter um restaurante soberbo (de um antigo cozinheiro do Martins - escreve-se assim, sem apóstrofo, à portuguesa - de Edimburgo) e, também, para tentar confirmar uma teoria sobre o aumento do teor de "pit" nos whiskies de malte, de oriente para ocidente da região, o que me obrigou a uma peregrinação de estudo por destilarias escocesas, que quase doutorou o meu fígado. Nessa noite, saí para passear a digestão algumas centenas de metros fora do hotel e, foi então que, pela primeira vez desde sempre, "ouvi" um verdadeiro silêncio. Nem motorizadas à distância, nem grilos nas bermas, nem vento nas ausentes árvores, nem nada. Apenas um magnífico e profundo silêncio, seco e chocante, como nunca tinha experimentado. Para um mortal não habituado, a força dele até soava a estranho.

Confesso que sou hoje um consumidor obsessivo de silêncios, que os procuro de forma ansiosa em todos os locais onde me alojo. Mas, geralmente, e porque passei a viver em cidades, onde sempre sobrevive um "bruá" de fundo, com maior ou menor intensidade, raramente tenho a sorte de me reencontrar com os grandes silêncios. Acho, aliás, que à maioria das pessoas, cidadãos urbanos, isto já nem é uma questão que se coloque, porque foram habituadas a viver assim, com esse residual cenário auditivo nas suas vidas. Pensei nisto quando morei em Nova Iorque, que tem um dos mais belos ruídos urbanos do mundo. Ou, pelo menos, é isso que nós somos levados a pensar, na relativização da inevitabilidade das coisas.

Mas ainda não desisti, por completo, de colecionar silêncios. Por isso, nas noites campestres que posso ir tendo, descontados os sons ínfimos da natureza, continuo um seu incurável consumidor.

Ontem, numa madrugada na varanda de uma certa casa, onde há anos me entretenho, pelos verões, a procurar essa suprema paz auditiva, fui surpreendido com a persistência de um certo som de fundo, contínuo, uma espécie de "zoeira" que poderia identificar-se a um ruído distante de um avião. Fiquei à espera que o som passasse. Qual quê! Continuava. Foi então que, olhando uma luz vermelha no alto do monte fui levado a concluir que esse ruído incontornável (desculpem o adjetivo jornalístico, tão feio como o ruído) era, nem mais nem menos, o som de uma dessas pás eólicas que fazem as delícias estatísticas das nossas energias alternativas.

Depois do meu carro ter sido, há semanas, proibido de circular na Baixa lisboeta por excesso de produção de CO2, ver o sagrado silêncio das minhas noites rurais poluído pelo ruído desses moínhos de nova geração coloca-me irreversivelmente em rota de colisão com o mundo "sustentável". Desculpem lá!    

terça-feira, julho 26, 2011

Par de óculos

Nunca foi homem de abraços e gestos leves. A afetividade, naquele embaixador, homem grande e de movimentos largos, traduzia-se sempre por fortes amplexos, palmadas nas costas, acompanhados por sonoras manifestações de regozijo pelos reencontros.

Ao cruzá-lo nesse dia, naquele corredor das Necessidades, o diretor-geral, "civil servant" antigo, oriundo das Finanças ultramarinas, onde fizera carreira de mérito, figura pequena e levemente inclinada para a frente, deixou-se embrulhar pelo entusiasmado e imenso diplomata, que ia produzindo frases de sincero contentamento por vê-lo.

Mas o estalido não enganou. O choque dos peitos, no amigável encontro, teve como dano colateral os óculos do diretor-geral, colocados no bolso superior esquerdo do casaco. Recompondo-se, procurou com dois dedos a armação, logo sentindo um chocalhar de pedaços, a cair pela algibeira abaixo. Discreto como era, nada disse. O amigo embaixador nem sequer havia notado os efeitos da sua colisão frontal, seguindo o seu caminho, depois de deixar uma palmada mais nas costas do diretor-geral, com este já a planear passar pelo oculista.

Decorreram uns meses. O cenário foi outro, o restaurante de um hotel. Acordado por um berro cordial, o diretor-geral vislumbrou o coreográfico diplomata, que já o saudava à distância, com os braços levantados, a voz forte a atroar a sala.

Um novo, enérgico e "fatal" abraço adivinhava-se, para instantes depois. O diretor-geral, já "escaldado", levou a mão ao bolso superior do casaco e, prudente, retirou deles os novos óculos, bem caros, por sinal! E guardou-os na mão fechada, não fosse o diabo tecê-las!

O embaixador, previsível, avançou para um imenso amplexo. Mas, desta vez, o diretor-geral pode entregar-se-lhe com confiança. Os óculos não ficariam esmagados no bolso, como acontecera da outra vez. Estava, seguros, no seu punho.

Desfeito o abraço, que ideia teve o embaixador? Nem mais nem menos do que agarrar, com força, ambas as mãos do diretor-geral, como testemunho de solidez de uma inquebrantável amizade. Encontrou uma das mãos aberta ao gesto, a outra, porém, com o punho fechado. Como se isso fosse um problema! Agarrou esta última, pela parte de fora e, se o punho estava cerrado, mais cerrado ficou com a força da manápula do diplomata, que indejava entretanto os braços do pobre diretor-geral, para cima e para baixo.

E foi desse punho, cada vez mais fechado, de onde saíam extremidades de uns óculos que o embaixador não vira, que não tardaram em pingar uma pequenas gotas de sangue, misturadas com os vidros do uma lente, que iam sobrando para o chão.

Esta história dos anos 80 - que ficou famosa nos anais do MNE - não recolhe reações posteriores, eventuais desculpas, sólidas contrições seguramente produzidas. Também nunca se ficou a saber se o embaixador foi informado que aqueles eram já os segundos óculos que destruíra ao seu amigo diretor-geral.

Trajes

Inicio este post por uma declaração de interesses: o meu traje preferido são t-shirt, jeans e Timberland, tudo muito usado. Mas gosto muito de gravatas.

Achei curiosa a dispensa de gravata que, por conjunturais razões climatéricas, foi decidida no ministério da Agricultura, a qual, aliás, repercute a prática que tenho visto seguida, de há muito, em outros serviços públicos. A gravata, em si mesma, está longe de ser um formalizador de circunstâncias e o seu uso não confere ao portador nenhum estatuto particular. Há por aí muito javardo engravatado...

Devo lembrar, contudo, que há códigos comportamentais, internacionalmente aceites e respeitados, que aconselham a que se mantenha um certo formalismo no vestuário, em terminados espaços e momentos públicos. E que a experiência mostra que o uso de certos trajes induz a assunção de certas formas de estar, o que não é indiferente a quem acha - como é o meu caso - que servir o Estado é uma honra que tem de ser assumida.

Tenho a profunda convicção que no ministério dos Negócios Estrangeiros a gravata vai continuar a ser respeitada. Assim, e salvo ordem em contrário, e para que conste, em serviços que eu chefie ela continuará a ser de regra. Enfim, reacionarices...     

segunda-feira, julho 25, 2011

Salvadores

- Com o vento, poucos vão tomar banho, esta tarde.

- Ainda bem! Parece que um dos nadadores-salvadores que anda por aí... não sabe nadar!

Conversa (real) entre pessoas que trabalham na praia do Moledo.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...