Estávamos numa janela larga, a olhar uma rua de Lisboa a que, no passado, tinha estado associada alguma História política e, a propósito já não sei bem de quê, alguém se lembrou de dizer: “Vocês já pensaram o que esta rua poderia contar, do que aqui já ocorreu, de quem por aqui passou, das tragédias e alegrias que aqui tiveram lugar?” Ninguém ficou muito impressionado com esta banalidade, aplicável a milhões de ruas do mundo.
A mim, contudo, trouxe-me à memória uma conversa que há muito tinha gravado, para sempre. Em Luanda, em inícios dos anos 80.
António Pinto da França, nosso embaixador em Angola, tinha convidado para jantar Victor Sá Machado, então administrador da Fundação Gulbenkian (da qual, mais tarde, viria a ser presidente) e que também já passara pelo MNE, como breve ministro no governo PS-CDS.
Era um homem agradável, bom contador de histórias, com um toque algo snobe que, no entanto, não diminuia uma cordialidade elegante. Nascido em Angola, sentia-se que tinha a África nos genes e na sua hierarquia de interesses, cabendo-lhe, aliás, na Fundação, esse pelouro de cooperação, de que falava com genuíno empenho.
A certo passo, fez- nos uma descrição de uma conversa a dois que tinha tido, em Maputo, com Samora Machel, semanas antes.
O presidente moçambicano era uma figura mercurial, no que tocava à sua maneira de se pronunciar sobre Portugal: tanto era capaz de gestos tocantes, que recuperavam emocionalmente a ligação histórica entre os povos dos dois países, como se podia sair com diatribes que relevavam da leitura mais ácida dos ressentimentos coloniais. Era um grande chefe africano, com a complexidade que esse conceito encerra, como Sá Machado reconhecia e nos descrevia, numa linguagem rica e interessante, durante esse dos muitos jantares que António Pinto da França transformava em belos e inesquecíveis momentos, na Angola em guerra civil nesses tempos.
Na conversa com Samora, terá vindo à baila a aventura da expansão, a viagem de circum-navegação da África, a ida à Índia, depois os caminhos até à Taprobana à China e ao Japão. Sá Machado teria habilmente respondido com a aventura única dessas viagens a alguns remoques ácidos de Machel sobre o nosso passado colonial. E, como nos contou, começou, a certa altura, a vê-lo fragilizar a deriva para a acrimónia histórico-política, ao ser enleado pelo relato da gesta do Gama. A figura do navegador parecia interessá-lo, mesmo fasciná-lo. Fez perguntas e comentários.
Sá Machado contou-nos que, a certa altura, se levantou da cadeira onde estava sentado e, aproximando-se de uma janela do gabinete de Machel, no Palácio da Ponta Vermelha, apontou para a vista do Oceano Índico que dali se vislumbrava e comentou:
“O Presidente já pensou, quando olha desta janela, que, um dia, ali em frente, por aquele mar, há uns séculos, passaram as naus do Vasco da Gama, uns barquitos frágeis, de madeira, a caminho da Índia?”
Machel terá ficado então muito sério, aproximou-se da janela, colocou as mãos no parapeito e ficou uns segundos a olhar o mar. Depois, voltou-se para Sá Machado, deu-lhe uma palmada num ombro e disse: “Tens razão! Fico a pensar nisso: o Vasco da Gama passou por ali! Nunca mais vou olhar o mar, daquela janela, da mesma maneira!”