sexta-feira, janeiro 02, 2015

O presidente

2015 será o último ano de Cavaco Silva como presidente da República. Não julgo que venhamos a ter quaisquer surpresas no tocante ao seu comportamento institucional, nestes meses que dele nos restam em Belém. A sua mensagem de ano novo assim o indica.

Todos os presidentes da República inaugurada com a Constituição de 1976 encaminharam os seus segundos mandatos na tentativa de deixarem uma marca própria. Independentemente das suas agendas políticas pessoais, do esquiço de auto-retrato para a História que todos procuraram deixar pendurado nas paredes de Belém, cada um, a seu modo, contribuiu claramente para a estabilização do regime e para o reforço da matriz funcional do cargo, deste semi-presidencialismo atípico que os nossos constituintes desenharam, com uma ambiguidade muito à portuguesa.

Cavaco Silva terminará a sua década de uma forma muito diferente. O seu segundo mandato foi uma incrível sucessão de "trapalhadas" - e estou a ser diplomaticamente eufemista ao escrever isto. Poder-se-á dizer que não foi ajudado pela crise financeira, mas o que o país já reteve, para sempre, é que o chefe de Estado teoricamente mais bem preparado para transmitir segurança a uma sociedade em quebra de confiança económica demonstrou, muito simplesmente, uma flagrante incapacidade para ser útil a Portugal. 

Quero com isto dizer uma coisa muito clara: a meu ver, Aníbal Cavaco Silva, pelo modo como geriu a função presidencial, pela maneira como se deixou enlear no que, agora iniludivelmente, se evidencia como uma subserviência à maioria que governa o país, deu sólidos argumentos a quantos entendem, como há semanas Pedro Bacelar de Vasconcelos defendeu, que, de futuro, deverá ser revista a Constituição por forma a ser o parlamento a escolher o chefe de Estado, como hoje acontece na Grécia, em Itália ou mesmo na Alemanha. Com efeito, Cavaco Silva, com o seu comportamento enquanto Presidente, mostrou que pode não fazer sentido continuar a eleger alguém por sufrágio direto, quando essa personalidade, em lugar de utilizar essa forte legitimidade para se colocar acima das forças políticas e representar o sentimento profundo do país, se torna num instrumento dócil das maiorias de turno, preocupado apenas em garantir uma saída airosa para o seu pé-de-página na História pátria. Embora defensor do sistema atual, creio que haveria vantagem em que o assunto fosse abertamente discutido, quanto mais não seja para evitar que o exemplo do atual presidente venha a contaminar a imagem futura da função presidencial.

Um dia, ao tempo em que era primeiro-ministro, Cavaco Silva teve a deselegância institucional de dizer que era preciso "ajudar o dr. Mário Soares a acabar o seu mandato (presidencial) com dignidade". Com sincera pena, como cidadão que acredita que o prestígio das instituições e dos seus titulares é um bem público precioso, temo que Cavaco Silva tenha arruinado já as hipóteses de ver aplicada a frase a si próprio.

quinta-feira, janeiro 01, 2015

"Dois, três, muitos Vietnam"


David Dinis, diretor do "Observador" desafiou onze pessoas para escreverem a propósito de eventos sobre os quais, em 2015, passarão algumas décadas. Coube-me lembrar o início da guerra do Vietnam, sobre o qual transcorrem 60 anos. Nesse curto texto, fiz um paralelo connosco nesse tempo:

"Em 1955, há precisamente 60 anos, no auge da Guerra Fria, começava o conflito do Vietnam. Portugal entrava nesse mesmo ano para a ONU, onde, de imediato, mergulhou no crescente calvário da defesa da sua política colonial. A guerra do Vietnam terminaria 20 anos depois, em 1975, com o Viet Cong a entrar em Saigão e a ridicularizar a América. Nesse mesmo ano, já com a Revolução de abril a todo o vapor, todas as colónias portuguesas se tornavam independentes.Voltemos a 1955.

A esquerda portuguesa, incluindo o PCP, estava então longe de ter um discurso anti-colonialista. Ele só surgiria depois da maturação das consequências da Conferência de Bandung e da formação da Tricontinental. Recorde-se que Norton de Matos e Cunha Leal, próceres da oposição a Salazar, foram orgulhosos “colonialistas”.

O início da experiência cubana, o aproveitamento hábil por Moscovo do movimento dos “não-alinhados” e a revolta angolana em 1961 conduziram à evolução do discurso da oposição à ditadura quanto às colónias. Entre nós, a simpatia pela luta do povo vietnamita viria a crescer em simultâneo com o espalhar da consciência anti-colonial. Marcou algumas universidades e meios intelectuais, tendo o anti-americanismo como forte sub-ideologia federadora. Os ventos do maio francês de 1968 fizeram o resto.

Pouco antes, Guevara defendera que eclodissem pelo mundo “dois, três, muitos Vietnam”. A História tirou-lhe entretanto a vida e viria mais tarde a trocar-lhe as voltas. O então Terceiro Mundo não se tornou comunista e até o “farol” soviético deixou de brilhar. A estupidez americana e a teimosia de Fidel suspenderam Cuba no tempo. O Vietnam vive unificado pelo capitalismo mais desenfreado. E as nossas antigas colónias são o que são."

Bom Ano !


quarta-feira, dezembro 31, 2014

A outra cidade

Estas épocas do ano levam-nos muitas vezes aos cemitérios. É uma forma de lembrar os que já foram e alimentar o sonho, impossível e virtual, de os termos connosco neste tempo ritualmente festivo. Nessas romagens, tenho sempre o cuidado de procurar não cultivar a tristeza, tentando avivar apenas os tempos alegres passados com as pessoas próximas que tenho espalhadas por aqueles espaços. Curiosamente, e no que me toca, não costumo sair deprimido dos cemitérios, depois dessas visitas ao passado. "Tu não te deixas apanhar muito pela nostalgia", disse-me uma pessoa, convencida que o faço por defesa. E, se calhar, tem razão.

Há dias, em Vila Real, dei um volta pelo cemitério de Santa Iria, o cemitério "novo", há muito criado para complementar o "velho" de S. Dinis, cujos limites de crescimento já nem recordo quando foram atingidos. Nunca tinha feito esta visita com muita atenção: em regra, dos cemitérios sai-se rapidamente e o frio da época estimula a isso. Com um belo sol de inverno, decidi passear pelo cemitério "novo". Foi então muito curioso reencontrar por ali imensas figuras da minha infância e juventude, comerciantes de cujas caras me lembrava à porta de lojas, caras que cruzei, por décadas, pelas ruas, cavalheiros e senhoras cujo nome muitas vezes desconhecia mas que, por dever de educação, sempre cumprimentava, quando, em pequeno, passeava com os meus pais. E quantos outros, menos "notáveis", estarão perdidos por tantas campas rasas sem nome! É a vantagem de se "ser" de uma cidade que já foi pequena, onde todos nos conhecíamos, quando de lá saí há 50 anos. O cemitério "novo" tem quase a idade da minha memória de Vila Real. Assim, por lá cruzei agora amigos que partiram cedo, descobri pessoas de cuja existência já nem me lembrava (e de cuja morte me não tinha sequer apercebido), pude relacionar parentescos e ligações familiares. Ah! e também apreciei a forma estética como os que por cá ficaram quiseram que os seus familiares ficassem consagrados nas pedras - uns sóbrios, outros agigantados face à imagem em vida. Foi um passeio muito interessante, por essa que é outra minha cidade.

terça-feira, dezembro 30, 2014

Fundação Mário Soares

Um jornal traz hoje, com ares de "escândalo", que o BES era um dos financiadores, através de mecenato, da Fundação Mário Soares. 

Esta informação, ao contrário do efeito pretendido, só atenua a má imagem que a gestão do BES havia deixado em mim e no país. Com efeito, utilizar a lei do mecenato para apoiar uma instituição com uma obra notável como aquela que a FMS tem levado a cabo, na promoção de importantes valores culturais e histórico-políticos, só contribui para relevar o sentido de responsabilidade social que terá orientado a política de mecenato do banco.

segunda-feira, dezembro 29, 2014

Suspeições

Não faço parte dos meus muitos iluminados compatriotas que dão por verdades definitivas as suspeitas sobre figuras públicas e por óbvios culpados os mais badalados investigados. "À la limite", para essa gente, o processo e o julgamento mais não são do um mero pro forma, destinado a quantificar a pena, uma tarefa que apenas tem como objetivo confirmar aquilo que o seu "bom senso" ou a vox populi já condenou.

Vem isto a propósito do caso dos submarinos. Um artigo de Manuel Carvalho no "Público" de ontem, recomenda ao Dr. Paulo Portas que saia da cena política, por virtude das suspeitas que se lhe terão colado à pele naquele processo. O jornalista em causa é extremamente qualificado, mas aquilo que hoje escreve situa-se, a meu ver, nesse limiar muito perigoso entre o "toda a gente sabe!" e a condenação no pelourinho populista. Não é um artigo digno, nem de Manuel Carvalho nem do "Público".

O caso dos submarinos é uma vergonha para a Justiça portuguesa, prova a sua imensa incompetência e expõe o país e as suas instituições ao ridículo internacional. Um processo que, na Alemanha, levou à relativamente rápida condenação de várias pessoas por provada corrupção, de que terão beneficiado incertos em Portugal, morre aqui na praia, por atrasos e prescrição, que acabam por ser um afrontoso insulto aos contribuintes, que desembolsaram as verbas que pagaram os submarinos, as luvas corruptas e todas as comissões a que tudo deu direito - parte das quais aterrou, equitativamente, nos bolsos de cada um dos ramos da família Espírito Santo, como ninguém hoje contesta.

Porém, o facto de nada ter sido provado, com o relator do despacho de arquivamento a deleitar-se com subtilezas estilísticas que fazem a delícia dos exegetas dessas pérolas de Pilatos, não autoriza ninguém a converter um suspeito público (ou mediático) em culpado. Pode haver - e eu julgo que há - muito boas razões para que o Dr. Paulo Portas seja afastado da titularidade do exercício das funções político-institucionais que exerce. Mas isso faz-se com um papelinho em que se coloca uma cruz, se dobra em quatro e se deita numa caixa. Até lá, dar por culpado o então ministro da Defesa ou quem quer que seja, só porque a Justiça se revelou incapaz e a voz pública o reclama é um ato impróprio da uma imprensa que se quer livre. A dignidade e o bom nome das pessoas não pode estar à mercê das insinuações e do diz-que-disse. A Justiça não funcionou? Regenere-se a Justiça!

Pergaminhos

Há dias, procurando na internet dados sobre uma determinada pessoa, fui conduzido, num cruzamento de dados, a uma estranha autobiografia de um antigo colega da carreira diplomática, com quem aliás julgo que nunca me cruzei. Essa figura viria a ter um final de carreira algo atribulado, a contas com a Justiça, que não lhe terá perdoado o facto de ter colocado no mercado alguns passaportes que tinha a seu cargo e que acabaram por surgir nas mãos de cidadãos estrangeiros, que lhos terão comprado por avultadas quantias. O diplomata em questão foi devidamente condenado e passou algum tempo na prisão. Foi uma das escassas manchas de uma profissão honrada que, em geral, é constituída por pessoas de bem, com elevado sentido de serviço público. Por isso, o seu nome é, simultaneamente, para lembrar tristemente entre nós e para esquecer em público, como farei aqui.

Falo disso hoje apenas para notar uma das perversidades da internet: quem ler o texto auto-elogioso assinado por aquele meu ex-colega, e não conhecer o vergonhoso final profissional que teve, é levado a pensar estar perante um funcionário qualificado, com uma carreira merecedora de encómios, tanto mais que ele recheia o texto de prosápias em que ninguém da profissão o reconhece. E, naturalmente, essa tal figura, que nem sequer sei se ainda é viva, não diz uma linha sobre o período negro da sua vida, embora gaste laudas a alindar o seu estatuto nobiliárquico. 

Este é um dos graves problemas do mundo informático: poder servir de veículo fácil à mentira e às fantasias. 

domingo, dezembro 28, 2014

Padecimentos

Quatro dos seis médicos que deveriam estar nas urgências do Hospital Amadora-Sintra, na véspera de Natal, faltaram ao serviço, com baixa médica. 

Quero aqui deixar uma nota de simpatia para esses distintos profissionais, que imagino terão ficado fortemente incomodados ao saberem que a sua ausência levou a atrasos no atendimento de cerca de 20 horas, mas, principalmente, pelo facto dos seus padecimentos físicos (embora eu não exclua de todo os psíquicos) lhes terem, com toda a certeza, arruinado as merecidas Consoadas. 

Não sei se a lei permite, mas gostaria de saber os nomes dos atentos e devotados colegas que lhes passaram os atestados para as baixas. 

Ah! E já agora, faço votos que não tenham uma recaída no dia 31 de dezembro. É que um azar nunca vem só!

A pressa da vida

Um dia consegui juntá-los a uma mesa da Gomes, na ingénua crença de que, por tê-los a ambos como amigos, haveriam de se dar bem. Erro crasso. O José cedo arvorou a machista arrogância vilarrealense e sentiu-se deslocado no registo intelectual das referências em que a conversa descaía. Logo que pôde, abalou para a zona do balcão mais próxima da máquina de cortar fiambre, posto de observação onde há décadas se sentia confortável. Ao que me lembra, o Sérgio nem lhe havia passado cartão, absorvido que estava no chamamento constante de conhecidos, saltitante no seu gesticular frenético, sublinhado pela voz anasalada que enchia a sala.

Há mais de quinze anos, pelo Natal, desapareceu tragicamente o Sérgio Moutinho. Neste último Natal fomos, uns poucos, despedir-nos do José Araújo, traído pelo coração agitado. Deixámo-lo em Santa Iria, perto do Sérgio. Que mais havia de comum entre ambos, à parte a circunstância – irrelevante para o leitor – de serem ambos meus amigos ? A pressa da vida.

O Sérgio era um furacão em pessoa, a ousadia chocante no comportamento e na palavra, a incessante procura da afectividade, sem baias nem temores. Na minha memória, não consigo ter dele um retrato estático, vejo-o no movimento de um filme, a chegar ou a partir, sem tempo para paragens, sem paciência para ouvir o irrelevante e o tonto, fosse ele ideia ou pessoa. Tinha a pressa do mundo, a vertigem de viver intensamente, no fio da navalha – como a navalha que haveria de matá-lo numa noite trágica na Anatólia. 

O José Araújo parecia ser o seu oposto. Pousava pelas esquinas da vida com um fácies vincado e grave, onde às vezes aparecia um esgar equívoco, sempre apoiado na frase curta e no gesto cortante. Mas quem o conhecia sabia que naquela cabeça, com o cabelo branco a subir sobre a samarra, vivia um adolescente à procura incessante de um segundo futuro, que ele sentia cada vez mais atolado nas complicações do presente. A vida do José foi a da viagem adiada, a tentativa de fuga a uma rotina que teimava em lhe atar as mãos, a mitificação de mundos ideais onde, chegado que fosse, tudo seria fácil, tudo correria a preceito para a realização dos seus sonhos, uma espécie de Pasárgada, logo ele que nunca lera Manuel Bandeira. 

Embora muito diferentes, com ambos eu tendia a cometer o erro pateta de os tentar trazer à minha leitura da realidade, fazendo o elogio da serenidade, pregando a necessidade de ponderação e dizendo-lhes para pararem um pouco para pensar. O Sérgio achava-me, cada vez mais, um burguês acomodado. O José desconcertava-me, dando-me sempre razão de forma irónica, intimamente ciente que eu jamais o compreenderia.

A minha última discussão com o Sérgio foi sobre o seu - para mim, excessivo - empenhamento em favor da causa curda, questão que, para alguns, poderá não ter sido alheia à sua morte violenta na Turquia. Recordo-me de o ter alertado para os erros profissionais em que poderia estar a incorrer, pedi-lhe a calma e a moderação que eu, no fundo, sabia que ele nunca iria ter. Ria-se de mim e dos meus cuidados, como ele sabia fazê-lo, sem qualquer acrimónia, na certeza de que a nossa amizade era intocável.

O José falou-me, há meses, no seu projecto de ida para o Brasil. Era o renascer da sua ambição de criar um museu de automóveis antigos, ideia que sempre me pareceu desenhar de forma irrealista, como tantas outras iniciativas que eu lhe ouvira no nosso passado de longa convivência. Tentei mostrar-lhe os riscos de uma deslocação sem preparação cuidada, dos imponderáveis de um negócio sem apoios sólidos. Reagiu com impaciente complacência, com um “pois, mas assim ninguém chega a sítio nenhum!”. Agora, dizem-me, tinha já viagem marcada e afirmara tencionar procurar-me, quando chegasse ao Brasil.

Hoje pergunto-me, simplesmente: que direito temos nós de tentar atrasar a pressa dos sonhos que fazem as vidas? 

(Publicado no “Notícias de Vila Real” em 28.12.04)

O tialecto

Tenho umas amigas e uns amigos que vivem encafuados no "politicamente correto" do léxico social LL (Lapa-Linha), para o qual alguém descobriu há uns anos a fabulosa designação de "tialecto". Encanito vivamente com esses vícios de casta e passo o tempo a trocar-lhes as voltas. E faço isso, muitas vezes, de propósito. Deteto-lhes no olhar o desapontamento (será a pena?) por eu teimar em não os acompanhar nessa maneira "bem", isto é, não "possidónia" (eles nunca dizem "pirosa") de dizer as coisas. Outros devem pensar lá para com eles: um embaixador a falar assim... foi no que deu aquela coisa do 25 de abril! (ou "o sinistro vinte e cinco do quatro", como referia sempre um amigo desaparecido, a quem a data nunca entusiasmara).

Nesse mundo, não se diz "prendas" mas sempre "presentes", foge-se ao satânico "vermelho" (que "finamente" se pronuncia "vermâlho", tal como "joâlho" ou "espâlho", mas talvez abram uma justificada exceção para "Coelho") e diz-se "encarnado", uma "mala" ou uma "bolsa" de mão é sempre e só uma "carteira", nunca se vai a uma "tourada" mas frequentam-se "corridas (de touros)", jamais uma bola é batida num "campo de ténis" mas sempre num "court", nada se pendura numa "cruzeta" mas tudo num "cabide", não se vai ao "quarto de banho" mas à "casa de banho", não se comemora um "aniversário" mas os "anos", como não se vai a um "funeral" mas a um "enterro", não se habita uma "vivenda" ou mesmo uma "moradia" mas sempre uma "casa", não se tem um cisco no "olho" mas sim na "vista", uma "piquena" (nunca, jamais!, uma "pequena") não põe batom nos "lábios" mas sempre na "boca", nada é "negro" mas apenas "preto", não se anda de "automóvel" mas de "carro", ninguém se despede com um "tchau" mas com um "adeus", não se põe "pomada" nos sapatos mas "graxa", não se diz "a minha mãe" mas sempre e só "a mãe", não se ouve música na "rádio" mas sim na "telefonia", vai-se à "discoteca" mas à "boîte" só às escondidas, ninguém se "aleija" só se "magoa", não se veste um "robe" mas um "roupão", para lavar as mãos é foleiro falar em "sabonete" mas não em "sabão", nunca se referem os "cortinados" mas só as "cortinas", uma cor nunca é "lilás" ou "violeta" mas simplesmente "roxo" e só um "brega" pronuncia "sanita" em lugar de (e apenas quando necessário) "retrete". 

"Tá ver?! É fácil!", explicam elas, com aquela rouquidão que, por um mistério traqueio-social (há quem diga que pode ser efeito dos gelados do Santini), algumas "piquenas bem" adquirem, logo a seguir a Paço d'Arcos - a doutrina divide-se, mas eu defendo, há anos, que é no Alto da Barra que começa a verdadeira fronteira, que se reproduz até uma linha muito irregular, que vai da Malveira da Serra ao Vassoureiro.

Quem se descair e deixar cair, num chá na Garrett do Estoril, um desses impronunciáveis termos, e assim não cumprir esta espécie de "acordo ortográfico social", passa a ser olhado como alguém fora da tribo, sujeito a uma exclusão fria do grupo. Como quem, como eu, teima sempre em dar às "piquenas" dois beijinhos. Na Bélgica e na Polónia dou mesmo três...

(Nota: a bibliografia recomendada para este tema, diz quem sabe, são as obras completas de Margarida Rebelo Pinto, que a Gallimard, por pura "caturreira", ainda não colocou na "Pléiade")

sábado, dezembro 27, 2014

Molinhos

Na minha infância, em Viana do Castelo, na noite de Consoada em casa da minha avó paterna, as prendas eram quase sempre muito práticas: meias, camisolas, pijamas e outras peças de roupa. Lembro-me bem do desapontamento que sentia quando olhava o papel de embrulho e notava que era do "Eugénio Pinheiro", uma loja de roupa na rua da Picota. No dia seguinte, viajava-se para Vila Real, onde estavam os meus avós e tios maternos e "vingava-me": aí, as opções, em matéria de presentes, eram bem mais lúdicas e quase sempre eram apenas brinquedos.

Há dias, ouvi um lamento curioso de uma criança que se queixava à mãe de que só lhe davam "presentes molinhos". Como eu a compreendi...

Balanços


Durante vários anos, fui um ávido consumidor dos "balanços" que são feitos pela comunicação social, nos finais de ano. Partia do princípio que isso me ajudava a recuperar informação que, por uma qualquer razão, me havia escapado durante os doze meses precedentes. Lia assim com atenção os trabalhos de síntese dos jornais e revistas, e cuidava em não perder as compilações televisivas - sobre política, personalidades, cinema, arte, livros ou música. Nos "bons tempos", cheguei a guardar em pastas, como fanático da recolha informativa que sempre assumi ser, alguns desses sumários escritos de factos e eventos.

Não consigo datar o momento em que "deixei cair", por manifesta falta de interesse, esse tipo de informação. Só sei que, nos dias de hoje, nem sequer passo os olhos por esses apanhados de factos e notícias que a comunicação social anualmente ainda não dispensa, embora me pareça que com um entusiasmo cada vez mais reduzido. No meu caso, essas páginas e esses programas televisivos ignoro-os em absoluto. Nem sequer tenho curiosidade em tentar interpretar os critérios seguidos, quase sempre identificadores de opções editoriais subliminares, em que seria instrutivo reconhecer.

Dou-me conta que o mesmo me ocorre com os anuários. A partir de inícios dos anos 60, adquiria com regularidade o "World Almanac and Book of Facts", um calhamaço americano, vendido então a preço muito acessível (lembro-me que custava menos de dois dólares) onde constava tudo, desde fichas de países a todo o tipo de records, bem como listagens das coisas mais inconcebíveis. Com algumas pontuais "recaídas", deixei-me disso nos anos 80 mas, quase em sequência, passei a adquirir, sem falha, os magníficos "Yearbook" da "Encyclopaedia Britannica", volumes caros mas do melhor que já vi editado. Porém, também estes, a partir de certa altura, deixaram de me interessar e jazem hoje sem a menor consulta, ocupando largo espaço (tal como as dezenas de volumes da própria "Britannica", somados aos ainda mais numerosos livros da "Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira" e suas atualizações) nas minhas estantes. 

A que se deverá este desinteresse por estes mananciais de informação? Pode haver outras explicações plausíveis, derivadas de qualquer alteração de prioridades, que me estejam a falhar. Porém, a simples conclusão pessoal a que cheguei é que a razão essencial dessa minha mudança de atitude só tem um nome: Google.

sexta-feira, dezembro 26, 2014

Adriano de Carvalho

Naquele tempo, antes de Schengen, chegados a Lisboa de avião, tínhamos de preencher aqueles irritantes papelinhos de entrada, com identificação pessoal e número do passaporte. Eu vivia ainda no encantamento "maçarico" de ter um passaporte diplomático (azul, de carneira, com os dados insertos à mão, com a letra magnífica de uma senhora do Protocolo). Antes da aterragem na Portela, comecei a preencher a ficha. O cavalheiro ao meu lado, com quem viajara desde Genebra, acompanhado de um imensa família, nessa véspera de Natal de 1977 (eu vinha da Líbia), dedicava-se à mesma tarefa e tinha um passaporte idêntico. Olhámos um para o outro e apresentámo-nos: ele era o embaixador Adriano de Carvalho, nosso representante permanente junto das Organizações Internacionais, em Genebra.

Adriano de Carvalho era um nome consagrado na carreira. Especialista em questões multilaterais, tinha um historial de grande negociador. Três anos depois, voltaria a encontrá-lo em Oslo, quando por ali foi por questões da EFTA, a acompanhar o ministro português do Comércio. Tinha uma figura avantajada, um ar impositivo mas cordial, um à-vontade e uma autoridade profissional com que dominava claramente a delegação portuguesa. Ao que às vezes recordo, por uma imagem que guardo da ocasião, tinha o vício da fotografia. 

Passaram-se muitos anos. Cheguei a Brasília em 2005. Adriano de Carvalho saíra do cargo de embaixador no Brasil quase 20 anos antes. E, no entanto, não obstante muitos qualificados colegas que lhe sucederam e me haviam antecedido nesse posto, ele era, de longe, aquele de que mais pessoas ainda falavam, que havia deixado uma marca de qualidade e prestígio associado ao nome de Portugal. Fora, aliás, o primeiro do escasso número de portugueses a quem a Universidade de Brasília tinha atribuído um doutoramento "honoris causa". Quando saí daquele posto, tive um grande gosto em oferecer-lhe um livro que aí publiquei sobre os meus quatro anos no Brasil, que me agradeceu com grande amabilidade.

Leio agora, pelos jornais, que o embaixador Adriano de Carvalho faleceu, neste Natal. Ficará na história do Ministério dos Negócios estrangeiros como um grande servidor público, frontal, exigente, mas de extrema competência. Fazem falta ao serviço diplomático português muitas figuras do seu calibre. À sua família, deixo uma mensagem de grande respeito e pesar. 

A propósito de Brasília

Já tive esta discussão mil vezes.

De novo, há dias, ouvi a alguém: "Não gosto de Brasília. Não gosto daquela ideia orwelliana que Niemeyer tem do urbanismo, de organizar a cidade em espaços estanques, querendo "controlar" a dinâmica humana. Aquilo é uma forma de estalinismo, é produto do facto de Niemeyer ser comunista, de ter um espírito de "engenheiro social". Niemeyer pode ser genial, mas não consegue ultrapassar, por vício ideológico, o racionalismo extremado que o levou a desenhar uma distribuição dos espaços que é contrária à natureza. Olhando para as "asas" de Brasília, nota-se que aquilo é produto de alguém que, como Niemeyer, não tem nenhum amor à liberdade, que usa a autoridade do seu risco para impor um modo de distribuição das pessoas pelos espaços. Volto a dizer: Niemeyer é um grande arquiteto, mas tem a alma de um ditador social."

Quantas vezes já ouvi isto, dito de forma mais ou menos sofisticada. E, no entanto, Oscar Niemeyer, o tal arquiteto genial, não teve, contrariamente à mitologia popular, nenhuma influência no desenho espacial da capital brasileira.

Chamava-se Lúcio Costa o também genial arquiteto que "inventou" Brasília, que desenhou o "Plano Piloto" da cidade, vencedor do concurso aberto para o modelo da nova capital. Coube a Niemeyer, que tinha sido seu aluno, desenhar os edifícios que são a imagem de marca da cidade (a catedral, os ministérios, o congresso, o palácio do Planalto, o palácio da Alvorada e tantos outros), "plantando-os" nos espaços que Lúcio Costa definiu. Pode hoje dizer-se que a projeção das obras de Niemeyer acabou por abafar, no plano internacional, o papel de Lúcio Costa. Mas o seu a seu dono! E, já agora, se é possível encontrar uma raíz teórica no traço organizativo da cidade, ele está no urbanismo funcionalista de Le Corbusier e na "carta de Atenas". E, para esta escola arquitetónica, contribuíram muitas influências, sendo que o racionalismo socialista é apenas uma delas.

Mas esta é uma discussão perdida, como já concluí.

(Deixo uma fotografia de Lúcio Costa. Pode ser que contribua para que o seu desconhecimento diminua, pelo menos junto dos meus amigos.)

quinta-feira, dezembro 25, 2014

O sinaleiro e o Natal


O Porto decidiu agora, como animação sazonal, colocar um sinaleiro junto à ponte D. Luiz. 

Sempre fui um fã dos "cabeças de giz", cuja avaliação dos fluxos de trânsito será sempre muito mais racional do que a de qualquer semáforo. Contudo, entendo bem que, nos dias de hoje, não se possa "desperdiçar", com regularidade, a utilização de polícias nessas tarefas. Mas acho importante, porque fazem parte da iconografia das cidades, não esquecer figuras como o sinaleiro Inácio, por alguma razão conhecido como o "bailarino", que encantava a cidade de Lisboa com a sua coreografia.

Ainda antes da 2ª guerra mundial, o Automóvel Clube de Portugal lançou, com apoio de algumas empresas, uma campanha nacional intitulada "Natal do Sinaleiro", que se tornou muito popular nos anos 50 e 60, com o apoio do "Diário de Notícias" e de "O Século". Tratava-se de mobilizar a afetividade pública face a esses agentes da ordem rodoviária. Os automobilistas eram estimulados a deixarem prendas junto dos seus sinaleiros favoritos. As ofertas chegavam a ser porcos, cabritos, sacos de batatas, garrafões de vinho, azeite, diversos outros produtos alimentares e até dinheiro!

Fica aqui uma foto desses outros tempos, no Cais do Sodré.

quarta-feira, dezembro 24, 2014

Boas festas !


A bica de 24


O local ainda existe, em Vila Real, mas tem hoje outro nome. Na altura, era o Café Imperial, no Cabo da Bila (leia-se com "bê"). Era um espaço sem nenhuma graça. Na minha juventude, nunca a nenhum de nós passava pela cabeça frequentar o Imperial. Era "longe", o ambiente era inconfortável e, acima de tudo, tinha um dono sempre com cara de poucos amigos, o Lima. Constava que, de quando em vez, tinha altercações com clientes, que chegavam a extremos físicos violentos. Note-se que o tal Lima, na sua rudeza, era simultaneamente um verdadeiro génio da estética: desenhava a primor as passadeiras de flores que se faziam pela Páscoa, numa rua vizinha, e foi o responsável por um mítico Cortejo Luminoso, que a cidade organizou no início dos anos 60.

Mas nem por isso o Imperial deixava de ser uma "no go area". Com uma única exceção, em todo o ano: no dia 24 de dezembro. Nessa noite, o Lima, que se dizia que era comunista, fazia questão de manter o café aberto, para quem se aventurasse a uma bica profissional depois da Consoada. Por muitos anos, foi o único café aberto na cidade. Para ele convergia, nessa noite, uma fauna heteróclita - de solitários friorentos, de esquerdalhos assumidos, de irreverentes empedernidos e de quem mais calhasse. No meu caso e de gente da minha geração, a sortida era apenas uma benévola manifestação de rebeldia. O Lima olhava-nos a todos, irónico, ciente da excecionalidade oportunista da visita de todo aquele pessoal, que ali desaguava, única e exclusivamente por falta de opção para a bica, a qual, na ocasião, se pedia "com cheirinho" de bagaço, para afastar as constipações. Ah! e lembro-me que o café era péssimo! No gelo do ambiente (o Lima não usava aquecimento), sobressaíam pelas mesas samarras e cachecóis, por entre nuvens de fumo de tabaco, que enchiam o Imperial nessa sua singular noite de glória. O Lima vingava-se, fechando às 11 e meia, o que deixava desasados por meia hora os episódicos clientes que tinham ainda a intenção de ir à Missa do Galo, um pouco mais acima, a S. Pedro. O que ele se deveria divertir, ao vê-los, a "encher" a meia hora, batendo as botas para aquecer, pelo desamparo frígido do Cabo da Bila (com "bê").

Num dos anos, numa noite de 24 de dezembro, o Imperial fechou. O Lima desapareceu. Não tínhamos para onde ir! Surgiu a informação de que, para os lados da estação, estava "uma coisa aberta". Lá fomos nós, pela ventania da ponte, beber uma bica à longínqua rua da Madame Brouillard, cujo nome rimava a preceito com a noite. Nos anos seguintes, os locais "hereges" foram mudando e nós, já motorizados, podíamos procurar alternativas nas redondezas. Num Natal "trágico", em que a cidade mais parecia o Kolditz, tivemos de ir até Escariz para encontrar "uma coisa aberta" - uma tasca atulhada de bêbados, de um emigrante regressado da Itália. Noutro, surgiu uma "venda" imunda com café, em Abambres. Depois, com o tempo, Vila Real foi-se dessacralizando. Por dois ou três anos, a noite de Consoada terminava num tal "Alibabá", um espaço recente, com uma dona de belos olhos e um café aceitável. 

Hoje, tudo mudou, para bem melhor. Nestes dias 24 de dezembro, aqui por Vila Real, é um regabofe: já só falta ver o Afonso, na Pastelaria Gomes, a servir bicas com "cristas de galo"...

terça-feira, dezembro 23, 2014

A um amigo

Este post é dedicado a um amigo com o qual, ao longo do último ano, pensei várias vezes ir almoçar mas nunca o fiz, a quem, em mais de uma ocasião, pensei telefonar e acabei por não o fazer, junto de cuja casa passei num sábado à tarde e não toquei à porta, para irmos tomar um café e charlar um pouco. Um amigo que, entretanto, soube que esteve adoentado mas que acabei por não contactar, a quem sucederam alguns problemas familiares mas a quem eu, convencido de que não lhe poderia ser útil, acabei por não dizer nada. Ah! e a quem me esqueci de telefonar no aniversário.

Não vou dizer aqui o nome desse amigo - ou dessa amiga - que deve estar um pouco desiludido comigo. Tem muitos nomes esse amigo ou essa amiga. Só eles sabem quem são. Para eles e para elas, aqui fica a minha lembrança amiga neste Natal.

Pousadas

O vento das privatizações sopra a todo o vapor. Faltam escassos meses para o termo do mandato deste executivo, mas a vontade de “passar a patacos” tudo o que cheire a público parece fazer parte do caderno de encargos de quem ainda dirige este país.

Fala-se agora, com renovada insistência, na privatização integral das Pousadas de Portugal. Declarações oficiais mostram essa disponibilidade de alienar o capital das Pousadas que ainda estava em mãos públicas.

As Pousadas foram uma criação do Estado, em 1940. Desde então, foram criadas 59 unidades, das quais só restam 35, uma delas no Brasil. (Escrevo com a “autoridade” afetiva de quem pernoitou em 49 dessas unidades). As Pousadas destinavam-se a fomentar o turismo e o conhecimento de zonas mais remotas do país. Tiveram, durante muito tempo, preços “políticos” baixos, chegando a haver a regra de não se poder pernoitar mais de três noites seguidas na mesma unidade. O Estado desenhou e construiu os edifícios, ou adaptou com elevados custos monumentos históricos, e manteve sempre as Pousadas – criadas à imagem dos Paradores espanhóis – como propriedade pública. Inicialmente, era a própria Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais que equipava as Pousadas, recheando-as com obras de arte onde se gastou muito dinheiro dos contribuintes e que constituem hoje um riquíssimo património, que se espera esteja bem inventariado e preservado.

Depois de uma experiência de gestão através de uma empresa pública, foi decidido abrir as Pousadas a um concessionário privado, por um período limitado de tempo. Neste entretanto, desde a concessão, como evoluíram as Pousadas? O serviço piorou em muitas unidades, que sofreram drásticos cortes no pessoal e, o que é bem mais grave, foram encerradas ou “franchisadas" unidades clássicas da rede, edifícios de elevado valor arquitetónico, algumas das primeiras unidades criadas logo após 1940. Por virtude destes encerramentos, foram retiradas algumas unidades hoteleiras importantes a certas zonas do país e, com essa alienação, perdeu-se para sempre um património de grande valor simbólico e sentimental.

Não terá sido por acaso que, à época, foi feita uma concessão não uma alienação da rede. É porque as Pousadas cumprem também um serviço público, elas não são uma mera cadeia de hotéis. Algumas Pousadas podiam ser menos rentáveis do que as outras, mas esse era o preço que o concessionário teria de suportar por ter herdado uma marca de prestígio e uma rede fabulosa de edifícios públicos, de onde retira fortes lucros. Essa era também a contrapartida para que novas e ainda mais rentáveis Pousadas pudessem continuar a ser instaladas em outros espaços e edifícios públicos, como se diz agora que vai ocorrer no Palácio Foz.

As Pousadas fazem parte da nossa memória patrimonial. Não se pode pedir a um concessionário que com elas perca dinheiro, mas o Estado tem a obrigação de garantir que os bens públicos – patrimoniais e morais – são objeto de uma gestão equilibrada que salvaguarde sempre o interesse coletivo.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

Maurice Duverger


Acabo de ter conhecimento de que morreu Maurice Duverger, aos 97 anos. Confesso que não tinha ideia de que ainda fosse vivo. 

Consagrado constitucionalista francês, os seus trabalhos sobre os partidos políticos e a V República, bem como os seus manuais académicos dedicados à ciência política e direito constitucional, educaram várias gerações. Duverger tinha o grande mérito da clareza de escrita, que não afetava o seu elevado rigor conceptual. Teve uma considerável influência em Portugal, nos anos 70, ao tempo em que o debate constitucional português estava no auge. Mas também sempre teve por cá os seus detratores.

Por razões académicas e políticas, Duverger foi um autor que li bastante. Tenho ainda imensa coisa escrita por ele e, há meses, ao arrumar livros para seguirem para o meu espólio na Biblioteca de Vila Real, deparei com o 2º volume do seu clássico "Institutions politiques et droit constitutionnel", editado pela PUF na famosa "Thémis", dedicado ao sistema político francês. E lembrei-me do instante em que o comprei (tenho uma forte memória da compra dos meus livros).

Um dos meus hábitos, nas tardes lisboetas de muitos sábados, entre 1969 e 1973, era visitar a "Livrelco", uma cooperativa livreira universitária situada num 1º andar de uma transversal à avenida da República. Tal como já acontecera no Porto, com a congénere "Unicepe", eu era sócio da "Livrelco", o que me permitia adquirir livros com algum desconto. Por lá passava com alguma regularidade, à cata das novidades, portuguesas ou estrangeiras, que estivessem ao alcance da minha bolsa de então.

Numa dessas tardes, embora o preço fosse elevado, decidi-me a comprar o 2º volume da obra de Duverger que antes referi. A evolução do sistema político francês era um assunto que sempre me fascinara e achei que ganharia muito em ler o que o politólogo escrevera sobre ele. 

Descia eu as escadas da "Livrelco", talvez com a intenção de me ir sentar a apreciar o livro na esplanada da "Granfina", ali próxima, quando me cruzei com um colega e amigo, que subia para a livraria. Falámos brevemente e mostrei-lhe, orgulhoso, a minha aquisição, aliás bem cara. Detetei alguma preocupação na sua cara. Perguntou-me se havia por lá mais algum exemplar do volume. Disse-lhe que tinha a ideia de que era exemplar único. O fácies dele cerrou-se ainda mais. "Que chatice!", disse. "Porquê?". inquiri. Olhando para os lados, não fosse alguém ouvir, confessou-me: "É que, na semana passada, "saquei" de cá o primeiro volume; hoje, vinha "sacar" esse..."

Não sei se foram apenas os "saques" que fizeram a "Livrelco" entrar numa crise, um ou dois anos depois, obrigando a uma intervenção das Associações de Estudantes, que ocuparam os respetivos corpos gerentes. Fiz parte dessa lista e achei imensa graça ao facto daquele meu amigo, também apaixonado pela obra de Duverger, mas cujas obras adquiria por "saque", integrar o ... Conselho Fiscal!    

Tarde do dia de Consoada