segunda-feira, dezembro 22, 2014

Jardim


Está a chegar ao fim a era madeirense de Alberto João Jardim. Para alguns com alívio, para outros com nostalgia.

O Portugal democrático teve de conviver com este notório fenómeno político, sempre imprevisível e incontrolável, gestor eficaz de uma permanente chantagem face ao poder lisboeta, que "toureou" (a palavra é a que acho mais adequada) com maestria, mesmo que ele fosse da sua própria cor política, num jogo ultra-autonomista que flirtou q.b. com o separatismo, sempre que achou adequado manejar esse fantasma. Jardim construiu na Madeira um modelo de governo com traços sul-americanos: keynesiano na fórmula, autoritário no procedimento, com o serviço público nas mãos da política, frequente desrespeito pelos direitos democráticos dos adversários, muitas vezes no limiar do estrito cumprimento dos cânones jurídicos mínimos. Lisboa acobardou-se sempre perante a Madeira, como que considerando o seu bizarro regime como politicamente inimputável. Tendo como finalidade absolvidora a obra que ia fazendo, deu espaço para que prosperassem à sua volta, com laivos de ascensão nepotista, "to say the least", figuras de baixo jaez, seus fiéis escudeiros e executores. Sejamos claros: não foi politicamente saudável aquilo que se passou na Madeira nas últimas quatro décadas.

A Madeira de hoje, depois de Jardim, não se compara à que ele herdou? Claro que não, mas este tipo de juízo é sempre ilusório, porque nunca poderemos medir o que teria acontecido se outro tivesse sido o modelo de governo da ilha, se a Madeira tivesse sido servida por um líder de diferente natureza, por exemplo, similar àqueles que dirigiram, também com eficácia e menos conflitualidade, os Açores.

Agora que a minha experiência política e diplomática faz já parte do passado, posso revelar que, no plano pessoal, estabeleci, de há muito, uma relação de grande cordialidade com Alberto João Jardim. Esse entendimento foi iniciado nos tempos europeus, nomeadamente na nossa "guerra" comum em defesa dos direitos particulares das "regiões ultraperiféricas", um dossiê a que me dediquei com grande afinco, durante alguns anos. O facto de Portugal ter sido o principal e reconhecido responsável, em 1997, na negociação do Tratado de Amesterdão, pela criação da primeira base jurídica em tratados europeus que viria a permitir a mobilização orçamental para aquele tipo de territórios valeu-me fortes louvores pessoais de Jardim, que também contou com o nosso forte empenhamento nos esforços necessários para obter as verbas necessárias à extensão do aeroporto da Madeira. Ao longo dos anos, da parte de Alberto João Jardim, só recebi atenções e manifestações de simpatia, o que não me coibiu nunca de manter uma visão muito crítica sobre o modo como politicamente dirigiu a Madeira.

Um simples episódio pode ajudar a compreender a nossa relação. Um dia, eu combinara com Alberto João Jardim juntar, num almoço em Bruxelas, os membros portugueses ao Comité das Regiões que, por uma qualquer razão, ele à época coordenava. A data foi fixada com grande antecedência, mas eu tivera de me deslocar à Irlanda na véspera, onde fora obrigado a pernoitar. Assim, saí de Dublin bem cedo e, via Londres, consegui chegar a Bruxelas ao final da manhã. Entrei no restaurante combinado (creio que era o "Au Vieux Saint Martin", no Petit Sablon), com mais de meia hora de atraso face à chegada dos meus convidados. Alberto João Jardim permitiu-se deixar cair uma nota irónica sobre esse meu atraso. Encaixei e, com o decorrer do almoço, fiz menção ao percurso que fizera nessa manhã. Notei que, num instante, ele se apercebeu do esforço que eu tivera de fazer para cumprir aquilo a que com ele me comprometera e me disse, sinceramente penitenciado: "Peço-lhe imensa desculpa, não tinha entendido o trabalho que teve para poder estar aqui agora" E mais surpreendido ficou ainda quando lhe revelei que, logo que acabado o almoço, estaria um automóvel à minha espera que me iria levar à Alemanha, a Petersberg, onde nessa noite eu acompanharia António Guterres a uma reunião europeia que se anunciava decisiva. Jardim "acordou" para o que ouvia: "Mas, então, veio a Bruxelas apenas para estar neste almoço de trabalho connosco?" Ao confirmar-lhe que sim, o presidente do governo regional da Madeira terá finalmente entendido que o "sinistro" governo socialista do "continente" tinha, afinal, um sentido de Estado bem maior do que ele pudera supor.

Não sei o que Alberto João Jardim vai fazer da sua vida, depois de sair da Quinta Vigia. Com a maior sinceridade, desejo-lhe todas as felicidades pessoais e que goze uma boa reforma, muito embora esse conceito jogue menos bem com um homem como ele.

domingo, dezembro 21, 2014

Marcelo "par lui-même"


Ouvir o comentador Marcelo Rebelo de Sousa pronunciar-se sobre a possível candidatura do político Marcelo Rebelo de Sousa às eleições presidenciais é uma das originalidades da vida nacional. Há minutos, ao assistir a mais um episódio da saga "Marcelo comenta Marcelo", lembrei-me de uma historieta que aqui já contei um dia e que hoje me apetece recordar.

Uma tarde, em Paris, Eduardo Lourenço apresentava uma conferência de Marcelo na delegação da Fundação Gulbenkian. E saiu-lhe esta tirada lapidar: "O Marcelo é uma figura que, desde há vários anos, está como que numa janela a fazer comentários sobre o país que passa na rua, lá em baixo, E, por vezes, nessa mesma rua passa também o próprio Marcelo Rebelo de Sousa, sobre o qual, com naturalidade, ele também se pronuncia".  

Trieste


Estou a escrever, para uma revista, um texto sobre Trieste, uma cidade, hoje italiana, cujo destino histórico sempre me fascinou. Encontrei, há pouco, uma fotografia de 1885, onde figura já a Piazza d'Unità d'Italia, que domina o porto sobre o Adriático. Achei curioso publicá-la.

A torre


Ontem, ao passar no eixo norte-sul, olhei para a desprezada torre de controlo de tráfico da estação ferroviária de Campolide. 

Suja, perdida no meio de viadutos e das instalações modernas da estação, desapareceu a imponência daquele belo e simples edifício modernista desenhado por Cottinelli Telmo no início dos anos 40. Há pequenas jóias arquitetónicas perdidas pelo país.

A gaveta

Já passaram quase dezoito anos. Jorge Sampaio reuniu num restaurante de Cascais um pequeno grupo que, durante os meses que antecederam a sua eleição para a Presidência da República, havia com ele discutido, com alguma regularidade, as grandes temáticas internacionais e de política externa. 

Mais de um ano antes, no final de 1994, por sugestão do António Franco, o então presidente do município de Lisboa havia-me chamado uma noite a sua casa e pediu-me que o ajudasse à estruturação de um grupo para promover essa reflexão. Ainda faltavam alguns meses para que ele anunciasse publicamente a sua candidatura. Devo dizer que estranhei o convite, porque sabia Jorge Sampaio altamente conhecedor dos temas internacionais, pelo que não via o valor acrescentado de uma qualquer ajuda da minha parte. Mas ele insistia, achava importante atualizar-se sobre todos as grandes questões e pretendia, ao longo dos meses até ao sufrágio, informar-se em detalhe e esclarecer dúvidas que lhe surgissem. Lembro-me bem de algo que então me disse: "Mas há uma coisa muito importante: não quero nenhum papel oficial, nenhum documento do MNE! Quero apenas trocar ideias com quem pensa habitualmente estas coisas". (Uns meses mais tarde, quando fui a casa de José Lamego para falar com António Guterres sobre a Europa, ouvi-o dizer uma frase basicamente idêntica. As pessoas com sentido de Estado comportam-se assim). Sugeri que, antes do início do trabalho do grupo a constituir, fosse elaborado um dossiê sobre algumas temáticas mais específicas, com textos a serem preparados por diversas personalidades, muitas delas alheias ao MNE ou afastadas do ministério, altamente conhecedoras dessas matérias, que enumerei. Sampaio viria a pedir pessoalmente a cada uma delas a sua contribuição, a qual deu origem a um trabalho muito interessante. Dei-lhe uma lista nominativa para o grupo de debate, que acabou por ser constituído por Luís Castro Mendes, José Freitas Ferraz, Carlos Gaspar, José Filipe Moraes Cabral e eu próprio. Jorge Sampaio também formularia o convite a cada um.

O grupo reunia, às vezes em minha casa, num "brainstorming" muito interessante e enriquecedor para todos nós, que aprendíamos uns com os outros. Num sábado, deu-se um episódio curioso. À hora de almoço, ao abrir a porta no andar onde na altura vivia, a empregada da casa em frente disse-me: "Hoje de manhã, esteve aí à sua procura o senhor presidente da Câmara". Eu não tinha ouvido nada! Jorge Sampaio tinha combinado connosco encontrar-se nesse sábado em minha casa. Mas era à noite! O que é que o levara a ir lá de manhã cedo? Telefonei-lhe e deslindámos a confusão. A reunião era "às nove horas". Sampaio presumira que era "da manhã"...

Com a minha entrada para o governo, uns meses antes da sua eleição e posse, deixei de poder assegurar a presença regular nesses debates. Porém, o novo Presidente não esqueceu a minha anterior colaboração e teve a amabilidade de me integrar no jantar que ofereceu ao seu "team" de política externa. Mais do que isso: fui eu quem foi encarregado de fazer o agradecimento em nome do grupo, nesse jantar, a escassos dias da posse. Disse da alegria imensa que era para todos nós irmos ter em Belém um homem da qualidade política, cívica e, principalmente, humana de Jorge Sampaio. No final, a título pessoal, fiz-lhe um pedido. Era relacionado com os móveis do Palácio de Belém. Imaginava que devessem ser uma imensidão, mas havia uma coisa que eu lhe solicitava que fizesse: que abrisse todas as gavetas dos móveis do Palácio. Alguns dos presentes no jantar, que incluía esposas, olharam para mim com espanto. Que estranho pedido! Sampaio também se mostrava perplexo. Eu esclareci. Depois de Mário Soares abandonar o Palácio, numa daquelas gavetas, deveria ter ficado algo que ali nos unia. Não fora Soares quem afirmara que metera "o socialismo na gaveta"?

Sampaio não deve ter tido ensejo de aceder ao meu pedido. Aliás, o tempo deu para percebermos que ele deixara de ter sentido: Mário Soares levou com ele o socialismo e, como se tem ouvido da sua boca, nunca mais o largou...

sábado, dezembro 20, 2014

"Olhar o mundo"

Um negócio da China

Era um tipo grande, cordial. Eu tinha acabado de estacionar o carro, numa vaga milagrosa, numa das Avenidas Novas. Cruzou-se comigo quando atravessava a rua, na tarde de quinta-feira, lançando-me um amável "Boas Festas, embaixador!". O facto de o não ter identificado não garantia que o não pudesse ter conhecido algures. Mas a cara, de facto, não me dizia nada. Retorqui, agradecendo e retribuindo os votos. Já quase o tinha esquecido quando, do outro lado da rua, ouvi: "Embaixador! Tenho uma prenda para si!". Era ele. Voltou a atravessar a rua na minha direção e, enquanto se encaminhava para um carro que estava próximo do meu, perguntou: "Que número calça?". Perplexo e um pouco contrariado lá lhe disse. ("Será de alguma empresa, como quem me terei cruzado numa feira ou numa embaixada", pensei para comigo. "Se calhar, são sapatos! Só me faltava mais esta!"). Ele abriu a mala do carro e tirou um saco de plástico transparente com meias de diversas cores (não eram feias, mas algumas das cores nunca as usaria). Continuava a falar, não se calava, agora sobre a qualidade do produto, sobre a quantidade de algodão, sobre o facto daquelas meias não terem costura. Confirmou: "É mesmo a sua medida! Que sorte!". Um pouco aturdido, coloquei a saca de meias sobre o banco do carro e balbuciei um agradecimento, cumprimentando-o. Fui-me afastando pelo passeio adiante. Sentia uma sensação estranha, de algum incómodo, indefinível. Curiosamente, como se fosse na mesma direção, ele ia-me acompanhando pela faixa de rodagem, com os carros estacionados de permeio, continuando a dizer coisas sobre as meias, sobre as fábricas, nem sei bem o quê. Algumas pessoas com quem nos cruzávamos deviam estranhar aquele monólogo em voz alta, comigo calado e morto por me ver livre do homem. Por instantes, ele dava ares de que ia afastar-se, mas logo depois aproximava-se, como que ziguezagueando, no seu andar largo e algo desengonçado. Já estávamos aí a uns vinte metros do meu carro quando ele perguntou: "Sabe quanto estão a pedir por aquelas meias nas lojas? Diga um número?". Eu sabia lá! Eu nem sabia quantas meias o saco tinha (eram dez pares). Ele sabia: "Oitenta euros! Imagine! Bom, para um produto daquela qualidade, também se justifica...". E continuou a acompanhar-me, agora juntando-se a mim no passeio. "Para o meu amigo, são só vinte euros, claro! Tenho imensa consideração por si, como sabe!" Eu sabia é que tinha acabado de cair no conto do vigário. Pensei para comigo, com a auto-absolvição dos tolos: "É Natal. Isto até teve graça!" Não teve, eu sentia-me pateta, mas incapaz de rumar ao carro já distante e devolver o saco das meias ao homem. Parei, abri a carteira e tirei uma nota de vinte euros. Agarrada a ela veio uma nota de cinco. Ele estava atento e, generoso, com um sorriso, advertiu: "Atenção! Esses cinco euros não são meus!" Fui à vida. Quando regressei, meia hora depois, vi-o ao longe encostado a uma parede, a olhar a sombra. Entrei no carro, olhei as meias. Era chinesas. Medida "40-46". Era mesmo a "minha" medida, claro!

(Dedico esta historieta ao meu amigo Gulherme Sanches, que esta manhã se queixava de hoje não ter nada de novo no blogue para ler. )

sexta-feira, dezembro 19, 2014

A ilha grisalha


Somos ainda umas largas dezenas. Mas, hoje à noite, seremos bem menos do que gostaríamos de ser. Há anos, foi-se o Raul (Solnado). Antes, tinha sido o Jorge Fagundes. Este ano foi bem triste: há meses, saiu de cena o Zé Medeiros (Ferreira) e, há semanas, o "Kiko" Castro Neves. Mas estaremos, com todos eles "ao nosso lado", como dizia o Lopes-Graça, em mais um Jantar da Mesa Dois do Procópio, que teimo em organizar. Em alguns anos, por razões várias, tal não foi possível.

Começámos estes repastos - este será o oitavo - precisamente há uma década, em 2004, na "Marítima de Xabregas". Mudámo-nos depois, por dois anos, para o saudoso "Manel", no Parque Mayer. Também por outras duas vezes, juntámo-nos no magnífico "Vírgula", onde o Pedro Rodrigues dava então cartas gastronómicas a Lisboa. Por uma vez, talvez porque os engenheiros estivessem então na moda, asilámos no restaurante da respetiva Ordem. E, finalmente, passámos uma noite pelo "Jardim do Tabaco". Cabe-me sempre a sina de descobrir um lugar que, cumulativamente, comporte quase oitenta pessoas, onde se coma bem, sempre barato, se possa fumar e haja estacionamento fácil. Imaginem a trabalheira!

Hoje à noite, o lugar do jantar não pode divulgado, para evitar a chegada maciça das televisões, o atraso do fecho dos jornais, a praga dos paparazzi, as reportagens "live" das rádios. A CNN ameaçava mesmo entrar em direto, a Sky pediu satélite e até a Al Jazeera se mostrou interessada, pensando estar perante um "remake" da cena dos árabes no Tavares. Não! Não divulgaremos por ora o local do jantar, porque queremos umas horas sossegadas. O mundo saberá a seu tempo onde a "Dois" hoje se reúne.

Para os menos iniciados, deixo aqui o capítulo que, sobre a "Dois" nos anos 90, escrevi para o livro editado sobre o Procópio:

"Nos anos 90, que a Alice me pediu para recordar, o Procópio transpirou o Portugal que então mudava.

A sua Mesa Dois começou por ser a janela nocturna para o “phasing-out” político que se ia adivinhando pelo país, sublinhado nas crónicas do Nuno Brederode, posto a cores nos desenhos do António. Foi a sede constante de uma crítica irónica, arquivo oral do anedotário cáustico que sempre acompanha os tempos moribundos. Para alguns, foi uma trincheira de um exílio político sem sair de casa, sofrido entre dois JB’s, de conspirações mornas com a imprensa e do alimentar de amanhãs que, afinal, se iram cantaram mansamente, de gravata e fato escuro, numa tarde cálida na Ajuda.

Chegada essa hora do socialismo vangélico, parte da Dois foi cooptada, com naturalidade geracional, para o novo poder e suas adjacências. Outra parte, não despicienda, seguiu, com idêntica naturalidade, o sampaísmo até Belém, na dobradinha que a esquerda conseguiu ao virar do quinquénio, dando corpo a um sonho antigo.

Na segunda metade da década, a Dois continuou um fervilhar de ironia e de heterodoxia. Se o novo poder contava ter nela uma complacente cumplicidade, enganou-se redondamente. A Dois confirmou o seu tropismo anarca: “Hay gobierno ? Soy contra!”. As orelhas do guterrismo saíam bem vermelhas das noites procopianas, com alguns dos presentes a terem de aguentar a crítica sonora, a assistirem, impotentes, à enxurrada de pancadaria num governo que tinham como seu. Nada que o “fair-play” não tenha ajudado a suportar, com grande garbo, diga-se desde já.

A história da Mesa Dois não esgotou, nesse tempo, a vida no Procópio. Aliás, parte da Mesa esteve-se sempre muito nas tintas para a política, mandava uns bitaites, contava umas historietas e limitava-se a beber copos, intervalados por aquela espécie de esferovite que a Alice sempre fez passar por pipocas. Foi um tempo em que, por selecção natural, foram abandonando o Procópio alguns espécimens mais chatos, quase sempre por motivação etílica. O bar tornou-se sereno, talvez até sereno demais.

Ao final das tardes, canastrões com ar clandestino e empresarial faziam a folha a secretárias à cata de promoção, sempre recolhidos na mesa à esquerda de quem entra. Em algumas noites, grupos heteróclitos de duvidosa extracção chegavam em bandos, sem pés de veludo, e pediam duas Cocas para oito. Ao bar e à maldita televisão colavam-se alguns pretensos machões, que se entretinham a rodar a sala com o olhar concupiscente, consumindo uma mísera imperial. Nas mesas dos cantos, arrulhavam casais, por horas perdidas, à volta de duas garrafas de Pedras. Os tempos não eram fáceis para a máquina registadora.

No balcão e no apoio gentil às mesas, perdeu-se nesse período o estimável Juvenal, para cujo Pedro V se continua a rumar nos Agostos, quando a Alice empurra os fiéis para a vilegiatura forçada. Passou-se depois por aquela que ficou conhecida como a fase Manpower de recrutamento, com o “Bósnio” e o “Croata” como expoentes desse auge de flexibilidade do mercado de trabalho. Até que, em boa hora, chegou o Luís, emigrado do Ertilas, sossegando para sempre a sala e as hostes com o seu sorriso, simpatia e grande profissionalismo.

Mas, afinal, perguntar-se-á, o que vem a ser essa Mesa Dois de que tanto se fala? A Dois, leitor amigo, é o lugar geométrico do Procópio, identificada por um papelinho que diz “Reservado”, para onde ciclicamente conflui uma fauna de mescla pouco provável, que junta juristas com publicitários, artistas com diplomatas, gestores com cineastas, médicos com doentes da bola, jornalistas com académicos, para além doutras actividades que a prudência aconselharia a não citar, como é o caso dos políticos e dos engenheiros.

A Dois tem uma centralidade lateral (não há contradição nenhuma) que lhe confere a vantagem de uma confortável visão estratégica, que se alarga da porta de entrada ao “primeiro andar” vizinho, passando por todo o bar, dando a melhor possibilidade teórica de “catch the eye” do Luís, para o “refill” dos copos. Os seus bancos têm protuberâncias que seguem estritos critérios ortopédicos, internacionalmente recomendados para a zona sublombar. Sem falha, são mandados reformar pela Alice num ano bissexto sorteado cada vinténio, e acomodam, sobre aquele veludo acetinado, escolhido com esmero nos saldos da Feira de Carcavelos, não mais que cinco clientes. Para além deste número, o convívio cumulativo dos supranumerários obriga a um inevitável empernanço, que a prática demonstra ter já hoje escasso valor como estímulo lúbrico na comunidade de frequentadores.

A partir das noites de glória dos fins-de-semana desse tempo dos anos 90, o espaço vital da Dois foi-se alargando, os banquinhos amontoavam-se, o “primeiro andar” adjacente era às vezes tomado, a mesa do “tête-à-tête” do piano frequentemente anexada. Foi o tempo em que apareceram pela Dois belezas tropicais a alegrar o ambiente e o Jójó, por aí estiveram belas amigas de conhecidos que, tragicamente, desapareceram com a rapidez com que arribaram. Ah! e havia ainda cinema mudo, de que hoje resta o écran, não se sabe bem para quê.

Também por essa época, eram distribuídos com regularidade, na festa estival, os famosos Prémios Procópio, sob critérios de justiça que, pelo menos num caso, o autor destas linhas não tem razões para pôr em causa. Sabe-se hoje que malévolas reticências à democraticidade do júri que atribuía tais galardões eram completamente infundadas, dado que a Alice cuidava em seguir à risca um modelo há muito consagrado nas instituições do Burundi, recomendado por uma embaixadora que com ela toma chá.

Com a década no fim, a Mesa Dois, e nós com ela, ficou mais velha, talvez um pouco mais sábia e mais serena. Mas ficou-lhe, para sempre, o culto da ironia, da amizade, da solidariedade. Hoje, a Dois é uma ilha grisalha num Procópio que parece estar recuperado para a juventude, para a conversa alta, para a alegria saudável das noites. Até a Sedonalice anda mais contente, não é?"

quinta-feira, dezembro 18, 2014

A hora de Cuba?

O anúncio de um início de reaproximação entre Cuba e os Estados Unidos é um interessante sinal de distensão entre dois países cujo conflito é uma das mais duradouras heranças da Guerra Fria. 

Washington nunca aceitou o derrube da sinistra ditadura de Baptista, um títere que se mantinha na lógica da "doutrina Monroe" e que havia transformado a ilha num prostíbulo e num casino, dando um sólido argumento para a revolta titulada por Fidel de Castro. Os refugiados cubanos nos Estados Unidos condicionaram, a partir daí, a atitude americana, tornando a normalização das relações dependente de um "regime change" que nunca veio a verificar-se.

Castro e os seus guerrilheiros, saídos da Sierra Maestra depois de uma saga político-militar que entusiasmou o romantismo de uma certa esquerda à escala global, cometeram o grave erro de reagir às recorrentes provocações americanas através de uma crescente dependência da União Soviética. A aventura da colocação de mísseis russos na ilha, em 1962, levou a um embargo americano que ainda hoje se mantém. 

De regime libertador, a Cuba de Castro transformou-se num "exportador" de revoluções pelo mundo, aliás sem grande sucesso. Os "dois, três, muitos Vietnam" da retórica de Che Guevara (que, se fosse vivo, teria visto naquilo que o Vietnam se transformou) acabou por ser um imenso fracasso. Pressentido como executor de um "ousourcing" ditado por Moscovo, que durante décadas pagou as faturas de uma economia abafada pelo embargo, o regime de Fidel de Castro, que identificava a menor dissidência interna com uma traição pró-yankee, acabou por se converter num dos atores centrais da Guerra Fria.

No plano interno, Cuba é uma ditadura intolerante e repressiva. Jogou sempre com o sentimento de anti-americanismo como fator atenuador da leitura que o mundo podia fazer das condições em que o seu povo vive, passando as culpas do regime para as consequências do embargo - de facto, uma medida datada e sem sentido, unilateralmente imposta por Washington e que, bem vistas as coisas, acabou por facilitar fortemente o prolongamento do regime castrista. Cuba é hoje uma sociedade triste, vivendo numa penúria imensamente injusta para a felicidade possível das gerações que sofreram a sua tragédia geopolítica.

Muita água correrá ainda sob as pontes até que as coisas se normalizem entre Washington e Havana. Dos dois lados, os obstáculos à reconciliação são muito grandes e são expectáveis acidentes de percurso. De qualquer forma, a iniciativa papal que levou a este início de diálogo só pode ser saudada.

Vitor Crespo



Foi-se mais um homem de abril. Naquela madrugada, quando Vitor Crespo se apresentou, impecavelmente uniformizado com a "farda nº 1", no "posto de comando" do Movimento das Forças Armadas, no regimento de Engenharia na Pontinha, em representação da Armada, Otelo perguntou-lhe ironicamente se ele ia "para algum casamento"... Crespo foi dos oficiais de mais alta patente a participar na condução das operações militares do 25 de abril.

Era um homem sereno, mas muito determinado. Logo após regressar de Moçambique, onde teve um exigente mandato como Alto-Comissário, nos momentos tensos de 1974/75, Vitor Crespo apresentou-se numa reunião do Conselho da Revolução, órgão do qual não fazia parte, e ... sentou-se à mesa. Ninguém teve coragem de lhe recusar o seu legítimo lugar nesse órgão.

Poucas pessoas se recordarão que, em 1975, ele foi Ministro da Cooperação do VI governo provisório. O Ministério dos Negócios Estrangeiros, logo após a minha entrada, destacou-me nesse ministério, por quase quase dez meses.

Um dia de fevereiro de 1976, fui chamado ao ministro Vitor Crespo, que estava acompanhado pelo secretário de Estado da Cooperação, Gomes Mota. Ambos me explicaram que, tendo os professores cooperantes portugueses em S. Tomé entrado em greve, por verem goradas algumas expectativas que lhe tinham sido criadas pelas autoridades santomenses antes da sua partida, eu ia ser enviado àquele país recém-independente para pôr termo ao conflito. O ministro disse-me que eu tinha "carta branca" para resolver o assunto com as autoridades locais. De facto, chegado a S. Tomé (via Paris e Libreville, naquela que era a minha primeira viagem a África), ao ser recebido no aeroporto pelo meu colega João da Rocha Páris, fui por este informado que o embaixador português, Amândio Pinto, estava furioso, porque tinha recebido do Ministério da Cooperação uma comunicação para "se colocar à minha disposição" com vista às diligências que eu estava encarregado de fazer. Foi preciso muita "diplomacia" para explicar ao embaixador que o jovem "adido de embaixada" que eu era, e há menos de meio ano, não tinha a menor pretensão de o "chefiar" e que, pelo contrário, estava ali para o coadjuvar na resolução do problema (que logo se resolveu, diga-se).

Há uns anos, num almoço na Associação 25 de abril, com Vasco Lourenço, Costa Neves e Martins Guerreiro, lembrei este episódio a Vitor Crespo. Naturalmente que não se recordava, porque ele tinha sido relevante apenas para mim.

Vitor Crespo tinha uma figura elegante, similar ao estereótipo de um coronel inglês do tempo das Índias. Era um homem com muito humor, embora discreto. De uma inatacável solidez ética, era reconhecido pelos seus pares como uma referência de seriedade e de grande profissionalismo.

Hoje, quinta-feira, a partir das 17 horas, prestar-lhe-emos homenagem na Basílica da Estrela.

Imprensa estrangeira

O jornalistas estrangeiros que operam em Portugal decidiram atribuir a Carlos do Carmo o seu prémio anual. É mais um justo galardão para "the voice" do fado. Foi na terça-feira à noite, na bela sala do arquivo da Câmara Municipal de Lisboa, onde estive por um simpático convite dos organizadores, onde de há muito conto bons amigos.
 
Os profissionais da imprensa estrangeira que operam em Portugal e que tanto ajudam o nosso país a ser conhecido pelo mundo, contribuindo para dar conta das nossas preocupações e interesses, estão muito inquietos com os rumores de que podem ser afastados das instalações onde, desde há décadas, operam, no Palácio Foz. Também eles vivem na dúvida sobre as condições em que poderão vir a trabalhar no futuro. É que chegam-lhes rumores de que o Palácio Foz vai passar a Pousada de Portugal... totalmente privatizada, claro!

quarta-feira, dezembro 17, 2014

Pescas

O facto de se ouvirem as notícias na rádio, sem as confirmar por escrito, leva a equívocos. Deixei aqui, esta manhã, uma análise aos resultados para Portugal das conclusões do último Conselho de Ministros da Agricultura e Pescas que verifico agora que não corresponde à realidade dos factos. Dou a mão à palmatória e à palmeta.

Uma praça a cores



Por uma mera coincidência, passei ao final da tarde de ontem pela Praça do Comércio, por ocasião da projeção do "video mapping" "Desejo de Natal". É um espetáculo belíssimo, com um colorido muito bem conseguido e adaptado ao espaço, sendo excelentemente musicado. Dura 15 minutos, às 19.00, 20.00 e 21.00, e estará em exibição até 23 de dezembro. Ah! Aparentemente é para crianças, mas tive grande prazer em assistir...


terça-feira, dezembro 16, 2014

A tristeza da Bertrand

Há dias, falei aqui da livraria Férin, na "baixa" lisboeta. É uma das poucas que nessa zona resta de um tempo glorioso de espaços livreiros, que, perto da Trindade, começavam nos alfarrabistas e na "Opinião", e, pelo Chiado, se prolongavam pela "Diário de Notícias", pela "Moraes", pela "Sá da Costa", acabando, na rua do Carmo, na "Portugal" e na "Ulisses".
 
No meio de tudo isso, ficou sempre a "Bertrand", que se diz criada em 1732, tida como a mais antiga livraria do mundo. Sabia bem passar pelas suas diversas salas, espiolhar as estantes, cruzar os "habitués". Teve períodos péssimos em matéria de atendimento e conhecimento livreiro. De há uns anos para cá, reencontrara-se e reconvertera-se numa boa livraria. E estabilizara em matéria de "geografia", isto é, sabia-se onde encontrar o que nos interessava.
 
Passei por lá ontem. Uma estranha "renovada", como dizem os brasileiros, esvaziou-a agora de livros (!), fez desaparecer dezenas de metros de estantes e simplificou a sua oferta a um nível de verdadeira indigência. A "Bertrand" está irreconhecível, com um soalho flutuante medíocre e um ambiente incaraterístico, parecendo apostada em acolher apenas turistas, à cata da Lisboa "típica". Por este andar, além do inevitável "Livro do Desassossego", ainda acaba a vender pasteis de nata e miniaturas de elétricos. Prometi a mim mesmo: à Bertrand da Garrett não volto tão cedo!

Pedro Álvares (1934-2014)

Ao folhear um jornal, dei-me conta, há dias, da morte de Pedro Álvares, aos 80 anos. 
 
Pedro Álvares foi um economista que dedicou a sua vida à questão europeia. Devem-se-lhe sínteses da maior importância sobre o processo negocial que conduziu à adesão, manuais de interpretação da realidade comunitária na perspetiva portuguesa, em todas as suas dimensões, e até um estudo mais recente sobre o Tratado de Lisboa. Era um trabalhador incansável, um divulgador nato e prestou um forte contributo à nossa Representação Permanente em Bruxelas, onde esteve colocado. O meu antecessor no cargo de secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Vitor Martins, tinha-o por consultor próximo e eu próprio ouvi-o diversas vezes, em momentos complexos da negociação comunitária.
 
O nome de Pedro Álvares dirá pouco às novas gerações, nomeadamente àqueles que hoje, no quadro técnico-diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa ou em Bruxelas, têm a seu cargo a condução da nossa política europeia. É pena. Se Portugal foi capaz de ter uma prestação eficaz na grande aventura que foi a sua integração europeia deve-o muito a pessoas como Pedro Álvares.  

Tempo de antena

Surgem sempre em Dezembro, com a regularidade sazonal do Natal dos Hospitais. São os tempos de antena de instituições de cuja existência só nesse momento ouvimos falar. Aparentemente, os interesses que defendem só são urgentes nesta época, como os PPR para abater no IRS. Antes do telejornal das oito, obrigando Fernando Mendes a despachar o Preço Certo, ei-los que surgem, sempre por escassos segundos, representados por cavalheiros ou damas cujas duvidosas qualidades de comunicação são agravadas por uma realização estática, fundos de cenário foleiros, textos proclamatórios corporativos que, não raramente, terminam com um "junta-te a nós" ou um "junte-se a nós", dependendo da confiança que nos querem dar. São os representantes dos Amigos dos Linces Listados da Malcata e Zonas Confinantes, da Associação Profissional dos Porteiros de Discotecas "Bruno Pidá", do Sindicato dos Doceiros e Ofícios Correlativos do Sul e ilhas, dos Amigos das Borboletas Monocromáticas da Tapada de Mafra e coisas assim. Nunca percebi como se ingressa nessas listas tão representativas da sociedade civil, caso contrário já lá teria colocado a Associação Enolúdica dos Utentes da Mesa Dois do Procópio, a qual, talvez não por acaso, organiza na sexta-feira próxima a sua assembleia geral anual, travestida de um jantar. Gosto dos tempos de antena associativos. Tal como a aletria, anunciam o Natal.

segunda-feira, dezembro 15, 2014

Os chatos da plateia

São temíveis! Raramente escolhem a primeira fila dos auditórios, embora isso aconteça com alguns mais vaidosos. Pela minha experiência, a terceira fila costuma ser o seu lugar de eleição, de preferência junto às coxias, por forma a facilmente poderem obter o microfone das mãos dos ajudantes volantes que circulam pela sala.

Falo, naturalmente, dos chatos interventores, dos falsos perguntadores, sempre presentes em colóquios, palestras e conferências, que aproveitam o momento da abertura do debate à audiência para fazerem longas dissertações, para as quais ninguém os convidou.

Pressinto-os, mal me sento numa mesa, com um simples olhar pela sala. Conheço alguns de ginjeira, sei que estão à coca do momento oportuno, de dedo imediatamente esticado para pedirem o microfone (chegam a fazer sinal prévio aos ajudantes de sala, quando prevêem próximo o período de perguntas). Mas o seu objetivo quase nunca é exercerem o legítimo direito de colocarem uma questão aos oradores. Se o fazem, trata-se de um mero gesto formal, mas só no fim de uma imensa exposição pessoal. Aliás, e pela minha experiência, o que é dito pelos interventores é-lhes praticamente indiferente. Trazem a lição estudada de casa, uma ideia fisgada, as mais das vezes embrulhada em fórmulas confusas, quase sempre com tonalidades radicais. A sua grande finalidade é intervir, opinar, dizer o que pensam, por mais indiferente que isso seja a quem foi ali para ouvir outros. Os mais hábeis, quando pressentem que o moderador da mesa se prepara para os interromper, têm duas técnicas: uma delas é citar, a meio da fala, ainda que obliquamente, um dos oradores oficiais, para dar a falsa perceção de que se encaminham para a formulação de uma pergunta; outra é recorrerem à vetusta figura do "só gostaria agora de acrescentar, para terminar..." ou coisa do género - o que lhes faz ganhar uns minutos mais.

Há tempos, num cenário de um qualquer colóquio, ao ver atuar uma dessas personagens, lembrei-me de que poderia ser interessante organizar uma sessão onde se pudesse colocar na mesa, como oradores, precisamente um grupo selecionado desses chatos  mais conhecidos, dando-lhe, finalmente, o palco que tanto procuram. A dificuldade residiria apenas em encontrar, para o debate, um tema que lhes fosse comum... E convocar uma plateia de voluntários para os aturar, claro.

(post de 2010 "reciclado", num dia em que a agenda aperta)

domingo, dezembro 14, 2014

Socialismo à francesa

Os sinais que chegam de Paris apontam para um súbito agravamento das tensões no seio do Partido Socialista, com efeitos devastadores na sua potencial capacidade de sustentar futuros embates eleitorais. As vozes dentro do PSF são cada vez mais divergentes e isso tem um efeito muito negativo na leitura que os franceses fazem da formação à qual, há pouco mais de dois anos, deram uma sólida maioria para governar o país.

Em 2012, François Hollande foi eleito sob uma agenda onde se acantonavam todos os clichés que sustentavam a possibilidade do país continuar a viver "à grande e à francesa", com a ideia mirífica de que os índices macroeconómicos poderiam ser objeto daquilo que se pensava ser uma discussão de poder com Berlim. A realidade é diferente, a Europa está mais exigente, a Alemanha mais "teimosa" e a França bem mais fraca. Tem mesmo de aturar agora a reprimenda pública e as recomendações do novo comissário para as questões económicas, o francês Pierre Moscovici, que foi o primeiro ministro das Finanças de Hollande, por cujo lugar europeu tanto se bateu. Ele há ironias...

Como num governo de coligação, Hollande juntou inicialmente todas as alas do partido, numa ilusão de que a partilha de pastas ministeriais acalmaria as várias tendências, anulando a anterior luta entre si. Viu-se o resultado. O primeiro-ministro Ayrault foi incapaz de federar o infederável e, tal como Mitterrand havia feito com Rocard, Hollande optou por chamar Manuel Valls, no velho sonho de que é possível governar em nome da esquerda sem assustar a direita, para isso utilizando a esquerda de que a direita gosta (Rocard era chamado pelos críticos de esquerda "Rocard d'Estaing" e Valls sonha em mudar o nome do partido para "meter o socialismo na gaveta").

O resultado aí está: por exemplo, de um ministro do "Redressement Productif" (ninguém melhor que os franceses para inventar nomes para ministérios) bem à esquerda e soberanista, que assustava o empresariado, Hollande saltou para um economista liberal, reformador à moda do mercado, que já incendeia o seu grupo parlamentar e os sindicatos (do setor público, porque só esses contam na França de hoje). O resto do governo tem sido uma fonte de conflitos (e demissões) e muito poucos ministros (alguns teimam ainda em impor agendas modernaças e fraturantes) contribuem para uma imagem positiva do executivo, que o mesmo é dizer, da governação presidencial. Valls está assim a ser "frito" em lume brando e as suas hipóteses de vir a suceder a Hollande começam a desvanecer-se.

Neste quadro, com uma esquerda à procura de um novo registo e uma direita democrática que, apesar do regresso de Sarkozy às lides, não fez desaparecer as recorrentes "zizanias" entre os seus ambiciosos barões, sente-se a ascensão da extrema-direita, cujo discurso de egoísmo nacional e de rejeição da solidariedade começa a sedimentar caminho entre pessoas com mais problemas do que esperança.

François Hollande, cuja popularidade, por "gaffes" e desartes de avanços-e-recuos, está de rastos (exceto num certo "terreno" onde, pelos vistos, tem insuspeitados encantos e surpreendente tempo para os pôr em prática), parece um pouco "déboussolé" (uma expressão gaulesa magnífica, que por cá poderia designar o comportamento de catavento), tentando hoje o que ontem parecia impensável. Deve rezar para que ninguém se lembre do seu programático discurso de Le Bourget e, muito em particular, do que anunciou que faria como "Moi, président", no debate em que calou Sarkozy. Naquilo que é a tragédia dos governos que entram em agonia, avança agora medidas que desaparecem na espuma do dia imediato e apenas parece ter como destino acorrer às sucessivas crises (embora, no plano político-militar externo, tenhamos de convir que foi uma surpresa positiva). 

A V República havia criado no imaginário francês um perfil de presidente que, manifestamente, não se cola ao de Hollande. Ser um "presidente normal" é tudo aquilo que os franceses não esperam do ocupante do Eliseu. E daí a vê-lo como um presidente "vulgar" não vai uma grande distância...

Mas voltemos ao Partido Socialista Francês. Este PSF é uma criação de François Mitterrand e, por muito tempo depois dele, ficou preso à matriz do seu programa não realizado. Não será totalmente de estranhar que um futuro desaire eleitoral, que se adivinha de grandes proporções, possa pôr em causa a sua própria existência, cindindo-o entre duas alas. É que o atual PSF, nos tempos que correm, parece já estar mais "in office than in charge", para utilizar uma categoria do outro lado da Mancha. Posso (e espero) estar enganado, mas já esteve mais longe. 

Anonimato

Uma magistrada decidiu publicar um artigo no "Expresso", abordando o comportamento da Justiça no caso Sócrates. Talvez temerosa do juízo dos seus pares, e com a benévola anuência do jornal, optou pelo anonimato.

O texto, aliás fraquinho, alinha algumas obviedades e limita-se a estabelecer um duvidoso paralelo do caso com outro exemplo clássico. Como opinião, é mesmo muito pouco.

Mas não deixa de ser revelador: se, para dizer aquilo, a magistrada necessitou de ser esconder sob um pseudónimo, podemos imaginar a coragem com que tomará, ante os holofotes públicos, as decisões mais difíceis e impopulares que lhe vierem a surgir na profissão.

sábado, dezembro 13, 2014

Férin

É uma das mais antigas livrarias do país. Chama-se Férin e está situada na rua Nova do Almada.

A Férin não é uma livraria igual às outras. As mesas onde os livros são pousados não seguem, na sua arrumação, aquela lógica mercantil que as livrarias "standard", colonizadas por algumas editoras, ultimamente nos impõem. Ela faz parte daquelas já escassas livrarias onde ainda há livreiros, pessoas que sabem o que estão a vender, que nos ajudam a procurar aquilo de que necessitamos. Tenho sempre gosto em por lá passar, raramente não descubro por ali algo diferente, uma edição de autor, uma publicação de origem pouco comum. A isto, sim, chama-se uma livraria!

Tenho notado que, pelo menos nos últimos anos, a Férin tem vindo a promover, na sua cave, bastantes apresentações de livros e interessantes debates, promovidos por José Ribeiro e Castro. Essa é também uma tarefa que prestigia a livraria e a coloca nos roteiros da cultura.

Mas a razão principal porque hoje falo da Férin deve-se ao facto de nela se poder encontrar, nos dias de hoje, talvez a maior diversidade e quantidade de livros em francês que é possível descobrir em espaços livreiros de Lisboa. Para os amantes da língua e cultura francesa, este é um inestimável "serviço público", que merece ser fortemente saudado. Esta tarde, prometi a mim mesmo que vou passar a visitar a Férin com bastante maior frequência.

Essa regularidade, contudo, nunca se comparará com a obsessiva insistência com que o Artur Corvelo, autor do injustiçado "Esmaltes e Jóias", visitava a sua montra, para verificar se a sua obra colhia a atenção do compradores. Assim, pelo menos, nos conta Eça de Queiroz, em "A Capital".

Confesso os figos

Ontem, uma prima ofereceu-me duas sacas de figos secos. Não lhes digo quantos já comi. Há poucas coisas no mundo gustativo de que eu goste m...