Está a chegar ao fim a era madeirense de Alberto João Jardim. Para alguns com alívio, para outros com nostalgia.
O Portugal democrático teve de conviver com este notório fenómeno político, sempre imprevisível e incontrolável, gestor eficaz de uma permanente chantagem face ao poder lisboeta, que "toureou" (a palavra é a que acho mais adequada) com maestria, mesmo que ele fosse da sua própria cor política, num jogo ultra-autonomista que flirtou q.b. com o separatismo, sempre que achou adequado manejar esse fantasma. Jardim construiu na Madeira um modelo de governo com traços sul-americanos: keynesiano na fórmula, autoritário no procedimento, com o serviço público nas mãos da política, frequente desrespeito pelos direitos democráticos dos adversários, muitas vezes no limiar do estrito cumprimento dos cânones jurídicos mínimos. Lisboa acobardou-se sempre perante a Madeira, como que considerando o seu bizarro regime como politicamente inimputável. Tendo como finalidade absolvidora a obra que ia fazendo, deu espaço para que prosperassem à sua volta, com laivos de ascensão nepotista, "to say the least", figuras de baixo jaez, seus fiéis escudeiros e executores. Sejamos claros: não foi politicamente saudável aquilo que se passou na Madeira nas últimas quatro décadas.
A Madeira de hoje, depois de Jardim, não se compara à que ele herdou? Claro que não, mas este tipo de juízo é sempre ilusório, porque nunca poderemos medir o que teria acontecido se outro tivesse sido o modelo de governo da ilha, se a Madeira tivesse sido servida por um líder de diferente natureza, por exemplo, similar àqueles que dirigiram, também com eficácia e menos conflitualidade, os Açores.
Agora que a minha experiência política e diplomática faz já parte do passado, posso revelar que, no plano pessoal, estabeleci, de há muito, uma relação de grande cordialidade com Alberto João Jardim. Esse entendimento foi iniciado nos tempos europeus, nomeadamente na nossa "guerra" comum em defesa dos direitos particulares das "regiões ultraperiféricas", um dossiê a que me dediquei com grande afinco, durante alguns anos. O facto de Portugal ter sido o principal e reconhecido responsável, em 1997, na negociação do Tratado de Amesterdão, pela criação da primeira base jurídica em tratados europeus que viria a permitir a mobilização orçamental para aquele tipo de territórios valeu-me fortes louvores pessoais de Jardim, que também contou com o nosso forte empenhamento nos esforços necessários para obter as verbas necessárias à extensão do aeroporto da Madeira. Ao longo dos anos, da parte de Alberto João Jardim, só recebi atenções e manifestações de simpatia, o que não me coibiu nunca de manter uma visão muito crítica sobre o modo como politicamente dirigiu a Madeira.
Um simples episódio pode ajudar a compreender a nossa relação. Um dia, eu combinara com Alberto João Jardim juntar, num almoço em Bruxelas, os membros portugueses ao Comité das Regiões que, por uma qualquer razão, ele à época coordenava. A data foi fixada com grande antecedência, mas eu tivera de me deslocar à Irlanda na véspera, onde fora obrigado a pernoitar. Assim, saí de Dublin bem cedo e, via Londres, consegui chegar a Bruxelas ao final da manhã. Entrei no restaurante combinado (creio que era o "Au Vieux Saint Martin", no Petit Sablon), com mais de meia hora de atraso face à chegada dos meus convidados. Alberto João Jardim permitiu-se deixar cair uma nota irónica sobre esse meu atraso. Encaixei e, com o decorrer do almoço, fiz menção ao percurso que fizera nessa manhã. Notei que, num instante, ele se apercebeu do esforço que eu tivera de fazer para cumprir aquilo a que com ele me comprometera e me disse, sinceramente penitenciado: "Peço-lhe imensa desculpa, não tinha entendido o trabalho que teve para poder estar aqui agora" E mais surpreendido ficou ainda quando lhe revelei que, logo que acabado o almoço, estaria um automóvel à minha espera que me iria levar à Alemanha, a Petersberg, onde nessa noite eu acompanharia António Guterres a uma reunião europeia que se anunciava decisiva. Jardim "acordou" para o que ouvia: "Mas, então, veio a Bruxelas apenas para estar neste almoço de trabalho connosco?" Ao confirmar-lhe que sim, o presidente do governo regional da Madeira terá finalmente entendido que o "sinistro" governo socialista do "continente" tinha, afinal, um sentido de Estado bem maior do que ele pudera supor.
Não sei o que Alberto João Jardim vai fazer da sua vida, depois de sair da Quinta Vigia. Com a maior sinceridade, desejo-lhe todas as felicidades pessoais e que goze uma boa reforma, muito embora esse conceito jogue menos bem com um homem como ele.