sexta-feira, julho 29, 2011

Despedidas

Estão na moda as despedidas da escrita antiga, agora que o Acordo Ortográfico vai, contra ventos, marés e Graças Mouras, entrar definitivamente em vigor.

Ontem, chegou-me este delicioso texto:

"Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. 

Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. 

São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! 

Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos. 

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. 

Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos.

Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar."

quinta-feira, julho 28, 2011

Pélvico

Fora simpática a iniciativa daquele embaixador português, numa certa capital europeia, de oferecer um cocktail de despedida ao colega que estava acreditado junto de uma organização internacional, na mesma cidade, e que ia regressar a Lisboa. Algumas dezenas de amigos tinham sido convidados para a ocasião, que tinha muito de genuína, porque os dois diplomatas tinham, de facto, uma saudável e boa relação entre si.

Chegada a hora dos discursos, o dono da casa foi pródigo em elogios ao colega que partia, sublinhando, com ênfase, a ligação de amizade e grande simpatia que mantinham. O que ninguém estava à espera é que, no entusiasmo das palavras, lhe tivesse saído, a certo passo, a afirmação: "Nós os dois temos uma proximidade pélvica!".

A sala estacou de surpresa. Que diabo?! "Uma proximidade pélvica"? O homenageado cofiou a barba e manteve o sorriso, nesse momento já um pouco mais amarelo, evitando olhar para os circunstantes, muitos dos quais abafavam risadas e trocavam divertidos e surpreendidos olhares. Com o prosseguimento do discurso, o efeito da expressão foi-se diluindo e, fixada que fora a estranheza pela frase, a maioria dos presentes como que esqueceu o episódio.

No dia seguinte, porém, um dos diplomatas da casa, mais ousado e próximo do embaixador, não resistiu a perguntar-lhe: "O senhor embaixador desculpará, mas ontem, na receção, não percebi bem o que quis significar, ao dizer que tinha uma "proximidade pélvica" com o seu homenageado".

O embaixador olhou-o do alto dos seus óculos grossos, com a cara grave habitual, que não significava zanga mas era apenas um estilo, e esclareceu: "Não percebeste? Essa agora?! Quis dizer que nós tínhamos uma grande ligação, que sentíamos as coisas na pele da mesma forma, uma proximidade "pélvica", de pele...

Realmente, a língua portuguesa é muito traiçoeira. 

Sortido fino

Há pouco tempo, surgiu um blogue que dá pelo nome revivalista de "O destino marca a hora"* e que se carateriza, além de outras coisas, pelo uso de belas fotografias.

O mais curioso, e que justifica esta nota, é o facto de nele se recomendarem alguns blogues através de qualificações sintéticas. A nós, coube-nos "sortido fino". Citando Américo Tomaz, "só tenho para isso um adjetivo: gostei!"

Silêncios

Há algumas décadas, um amigo europeu, quase nórdico, fez-me notar que, em qualquer noite portuguesa, por mais campestre que ela fosse, havia sempre o risco de se ouvir, ao longe, o som irritante de uma motorizada. E que os portugueses também já davam por adquirido esse acervo antropológico consuetudinário que eram os sinos horários das igrejas ou o som difuso das festas de verão. Enfim, para esse meu amigo, os portugueses haviam já perdido o prazer do silêncio.

Nunca havia atentado muito nisso mas, a partir de então, fiquei a matutar um pouco mais no valor dos silêncios. E passei a dedicar-me à sua procura quase militante e a racionalizar o gozo que, na realidade, deles sempre retirava. Trazia-os comigo da adolescência, quando Vila Real tinha madrugadas de intensa serenidade. Arquivei, depois, na memória, algumas noites norueguesas quase perfeitas, um certo silêncio de uma madrugade no Mussulo, uma insónia na varanda de um hotel incómodo em Fergana, no Usebequistão, e, maravilha das maravilhas!, uma absoluta ausência de ruídos no deserto de Wadi Rum, no sul da Jordânia.  

Mas continua a haver na minha vida um silêncio especial, que nunca esquecerei: uma noite, no oeste da Escócia, na Isle of Skye, nos anos 90. Tinha ido por lá em busca de um "bed & breakfast" que me diziam ter um restaurante soberbo (de um antigo cozinheiro do Martins - escreve-se assim, sem apóstrofo, à portuguesa - de Edimburgo) e, também, para tentar confirmar uma teoria sobre o aumento do teor de "pit" nos whiskies de malte, de oriente para ocidente da região, o que me obrigou a uma peregrinação de estudo por destilarias escocesas, que quase doutorou o meu fígado. Nessa noite, saí para passear a digestão algumas centenas de metros fora do hotel e, foi então que, pela primeira vez desde sempre, "ouvi" um verdadeiro silêncio. Nem motorizadas à distância, nem grilos nas bermas, nem vento nas ausentes árvores, nem nada. Apenas um magnífico e profundo silêncio, seco e chocante, como nunca tinha experimentado. Para um mortal não habituado, a força dele até soava a estranho.

Confesso que sou hoje um consumidor obsessivo de silêncios, que os procuro de forma ansiosa em todos os locais onde me alojo. Mas, geralmente, e porque passei a viver em cidades, onde sempre sobrevive um "bruá" de fundo, com maior ou menor intensidade, raramente tenho a sorte de me reencontrar com os grandes silêncios. Acho, aliás, que à maioria das pessoas, cidadãos urbanos, isto já nem é uma questão que se coloque, porque foram habituadas a viver assim, com esse residual cenário auditivo nas suas vidas. Pensei nisto quando morei em Nova Iorque, que tem um dos mais belos ruídos urbanos do mundo. Ou, pelo menos, é isso que nós somos levados a pensar, na relativização da inevitabilidade das coisas.

Mas ainda não desisti, por completo, de colecionar silêncios. Por isso, nas noites campestres que posso ir tendo, descontados os sons ínfimos da natureza, continuo um seu incurável consumidor.

Ontem, numa madrugada na varanda de uma certa casa, onde há anos me entretenho, pelos verões, a procurar essa suprema paz auditiva, fui surpreendido com a persistência de um certo som de fundo, contínuo, uma espécie de "zoeira" que poderia identificar-se a um ruído distante de um avião. Fiquei à espera que o som passasse. Qual quê! Continuava. Foi então que, olhando uma luz vermelha no alto do monte fui levado a concluir que esse ruído incontornável (desculpem o adjetivo jornalístico, tão feio como o ruído) era, nem mais nem menos, o som de uma dessas pás eólicas que fazem as delícias estatísticas das nossas energias alternativas.

Depois do meu carro ter sido, há semanas, proibido de circular na Baixa lisboeta por excesso de produção de CO2, ver o sagrado silêncio das minhas noites rurais poluído pelo ruído desses moínhos de nova geração coloca-me irreversivelmente em rota de colisão com o mundo "sustentável". Desculpem lá!    

terça-feira, julho 26, 2011

Par de óculos

Nunca foi homem de abraços e gestos leves. A afetividade, naquele embaixador, homem grande e de movimentos largos, traduzia-se sempre por fortes amplexos, palmadas nas costas, acompanhados por sonoras manifestações de regozijo pelos reencontros.

Ao cruzá-lo nesse dia, naquele corredor das Necessidades, o diretor-geral, "civil servant" antigo, oriundo das Finanças ultramarinas, onde fizera carreira de mérito, figura pequena e levemente inclinada para a frente, deixou-se embrulhar pelo entusiasmado e imenso diplomata, que ia produzindo frases de sincero contentamento por vê-lo.

Mas o estalido não enganou. O choque dos peitos, no amigável encontro, teve como dano colateral os óculos do diretor-geral, colocados no bolso superior esquerdo do casaco. Recompondo-se, procurou com dois dedos a armação, logo sentindo um chocalhar de pedaços, a cair pela algibeira abaixo. Discreto como era, nada disse. O amigo embaixador nem sequer havia notado os efeitos da sua colisão frontal, seguindo o seu caminho, depois de deixar uma palmada mais nas costas do diretor-geral, com este já a planear passar pelo oculista.

Decorreram uns meses. O cenário foi outro, o restaurante de um hotel. Acordado por um berro cordial, o diretor-geral vislumbrou o coreográfico diplomata, que já o saudava à distância, com os braços levantados, a voz forte a atroar a sala.

Um novo, enérgico e "fatal" abraço adivinhava-se, para instantes depois. O diretor-geral, já "escaldado", levou a mão ao bolso superior do casaco e, prudente, retirou deles os novos óculos, bem caros, por sinal! E guardou-os na mão fechada, não fosse o diabo tecê-las!

O embaixador, previsível, avançou para um imenso amplexo. Mas, desta vez, o diretor-geral pode entregar-se-lhe com confiança. Os óculos não ficariam esmagados no bolso, como acontecera da outra vez. Estava, seguros, no seu punho.

Desfeito o abraço, que ideia teve o embaixador? Nem mais nem menos do que agarrar, com força, ambas as mãos do diretor-geral, como testemunho de solidez de uma inquebrantável amizade. Encontrou uma das mãos aberta ao gesto, a outra, porém, com o punho fechado. Como se isso fosse um problema! Agarrou esta última, pela parte de fora e, se o punho estava cerrado, mais cerrado ficou com a força da manápula do diplomata, que indejava entretanto os braços do pobre diretor-geral, para cima e para baixo.

E foi desse punho, cada vez mais fechado, de onde saíam extremidades de uns óculos que o embaixador não vira, que não tardaram em pingar uma pequenas gotas de sangue, misturadas com os vidros do uma lente, que iam sobrando para o chão.

Esta história dos anos 80 - que ficou famosa nos anais do MNE - não recolhe reações posteriores, eventuais desculpas, sólidas contrições seguramente produzidas. Também nunca se ficou a saber se o embaixador foi informado que aqueles eram já os segundos óculos que destruíra ao seu amigo diretor-geral.

Trajes

Inicio este post por uma declaração de interesses: o meu traje preferido são t-shirt, jeans e Timberland, tudo muito usado. Mas gosto muito de gravatas.

Achei curiosa a dispensa de gravata que, por conjunturais razões climatéricas, foi decidida no ministério da Agricultura, a qual, aliás, repercute a prática que tenho visto seguida, de há muito, em outros serviços públicos. A gravata, em si mesma, está longe de ser um formalizador de circunstâncias e o seu uso não confere ao portador nenhum estatuto particular. Há por aí muito javardo engravatado...

Devo lembrar, contudo, que há códigos comportamentais, internacionalmente aceites e respeitados, que aconselham a que se mantenha um certo formalismo no vestuário, em terminados espaços e momentos públicos. E que a experiência mostra que o uso de certos trajes induz a assunção de certas formas de estar, o que não é indiferente a quem acha - como é o meu caso - que servir o Estado é uma honra que tem de ser assumida.

Tenho a profunda convicção que no ministério dos Negócios Estrangeiros a gravata vai continuar a ser respeitada. Assim, e salvo ordem em contrário, e para que conste, em serviços que eu chefie ela continuará a ser de regra. Enfim, reacionarices...     

segunda-feira, julho 25, 2011

Salvadores

- Com o vento, poucos vão tomar banho, esta tarde.

- Ainda bem! Parece que um dos nadadores-salvadores que anda por aí... não sabe nadar!

Conversa (real) entre pessoas que trabalham na praia do Moledo.

"Todos os fogos o fogo"

Os telejornais preparam-se afanosamente. Já por lá se vêm os primeiro mapas com as chamas. Falta muito pouco para os inenarráveis diretos, para os microfones, tipo corneto, nas mãos das Sónias Cristinas (de onde é que saem, todos os dias, essas novas meninas do jornalismo televisivo ofegante?) de cabelo ao vento, de rapazes de léxico restrito e camisa aberta até ao quarto botão, sempre com chamas ou fumos "do rescaldo" por detrás, berrando evidências, entrevistando populares de balde ou mangueira na mão, revoltados com o mundo e esvaídos de cansaço, a quem colocam questões profundas como "o incêndio esteve quase a atingir a sua casa, não foi?", "acha que os bombeiros são suficientes?" ou o inevitável clássico "como é que se sente?", para tudo esperando respostas inéditas. Chega depois o comandante dos bombeiros, falando, grave, no número de "homens envolvidos no combate ao sinistro", lamentando a escassez de meios aéreos, insinuando supostos incendiários ("Não deixa de ser estranho que tenham surgido três frentes simultâneas..."). Depois, momento áureo, é ouvido um membro do governo em pose estival, com presidentes de Câmaras e presidentes de Juntas ligeiramente atrás, que inventaria o dispositivo e dá nota das rigorosas medidas "já implementadas". Em fundo de cena, a costumeira legião de patetas passeando-se de telemóvel no ouvido, para serem vistos pela prima, lá em casa.

De canal em canal televisivo, o verão noticioso é assim. O mesmo, todos os anos. Só que ninguém pergunta a ninguém se foi feita, a tempo, a limpeza das matas, se se respeitaram as distâncias de segurança entre as residências e as áreas de mato combustível, se foram tomadas as medidas de precaução necessárias, que todos conhecem e ninguém pratica.

Pena é que isto não faça parte do "memorandum of understanding" da "troika"...

Pena de morte

Com pretexto na tragédia norueguesa, algumas vozes voltaram a ecoar a ideia da pena de morte.

É muito interessante, e não menos significativo, que os próprios noruegueses, vítimas de um ato infame, hajam sido os primeiros a mostrar a necessidade de preservarem os valores da sua própria liberdade, evitando reações como as que os americanos tiveram depois do 11 de setembro (já passou uma década, imaginem!). Os noruegueses, que construíram uma sociedade admirável, recusam ficar prisioneiros de um assassino.

A pena de morte é uma imensa prova de fraqueza, uma cobardia feita de desespero.

Portugal orgulha-se de ter sido o primeiro país da Europa a aboliir a pena de morte para crimes civis. À época, em 1876, perante a decisão portuguesa de abandonar o recurso à pena capital, ficou célebre aquilo que Victor Hugo disse do nosso país:

"Está pois a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande história. (…) Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Desfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à guerra! Viva a vida! Ódio ao ódio. A liberdade é uma cidade imensa da qual todos somos concidadãos".

Nunca esqueçamos esta honra.

domingo, julho 24, 2011

Pelo jornais


Este é um verão cruel. Há dias, partiu a Maria José. Hoje, saem de cena o Henrique e a Maria Lúcia.

Nunca me tinha acontecido: olhar um jornal e descobrir, por ele, a morte de um amigo, o local e hora do seu funeral. Fiquei parado, desejando, por um instante, que se tratasse de um confusão de nomes, hipótese logo afastada por outra identificação inequívoca. Morreu o Henrique Bandeira Vieira.

À noite, no telejornal, sou surpreendido com a noticia da morte de Maria Lúcia Lepecki.

No início de Maio, em Paris, o Henrique apareceu-nos, para jantar. Foi um reencontro alegre, uma bela noite de conversa. Meses antes, eu falhara um encontro em sua casa, em Portugal, onde queria juntar-nos com outros amigos. Falámos longamente das pessoas do nosso tempo comum em Angola, onde nos conhecêramos no início da década de 80, dos anos em que depois coincidimos em Londres. Recordámos noites calmas de conversa com a Pascale - em Bruxelas, no Algarve e em Cascais. Era um homem positivo, com uma família unida, com projetos, com vontade, sempre construindo futuros, que progredira, com muito sucesso, no mundo empresarial internacional.  Revelou-nos o seu entusiasmo com um empreendimento turístico alentejano, de grande vulto, em que se envolvera recentemente. Soube, há pouco, que, nessa mesma noite parisiense, ele tinha já preocupações com o seu estado de saúde. Mas nada nos deixou transparecer, salvo uma magreza que nos pareceu um tanto excessiva.

Encontrei a Maria Lúcia, pela última vez, há mais de um ano. Cruzámo-nos num centro comercial. Prometemo-nos um encontro que adiávamos há muito. Conheci-a no final dos anos 60, quando ela vivia com o Carlos Eurico da Costa, meu primo e meu grande amigo. Vinha do Brasil, professora universitária, interessada na literatura portuguesa, sobre a qual escreveu. Os serões lá em casa tinham imensa graça, com Orlando da Costa, José Cardoso Pires, Jacinto Baptista, Maria Velho da Costa e outras tantas figuras de um mundo literário lisboeta da época. Viajámos pelo país, passámos férias juntos, discutimos a vida, por horas perdidas de conversa. Essa mesma vida deu muitas voltas, o casal acabou  um dia e eu passei a ver a Maria Lúcia só a espaços. Comigo no Brasil, trocámos e-mails, mandei-lhe um livro que tinha escrito sobre a minha experiência no seu país, felicitei-a pelo imenso sucesso académico do seu filho André, um dos orgulhos da sua existência.

Um adeus para a Maria Lúcia e para o Henrique.

"Tour de France"

Estou a ver na televisão os ciclistas do "Tour de France" passarem em Champigny, na sua etapa derradeira deste ano, em direção ao centro de Paris. As imagens mostram-nos um panorama muito agradável, de jardins e de habitações, o que é um contraste com a localidade que, a partir dos anos 60, foi o destino primeiro de alojamento de milhares dos nossos compatriotas, à procura de uma sorte que o seu próprio país lhes recusava. 

Dos "bidonvilles" de Champigny, da lama e do frio dos que chegavam "a salto", apenas com a sua roupa e a sua vontade, resta hoje - felizmente! - quase nada. Mas todos temos a obrigação de continuar a manter uma memória de grande respeito pelo esforço magnífico dessa gente, cuja aventura honrará para sempre Portugal em terras de França.

Pode ser uma sugestão minha, mas quando revejo imagens de Joaquim Agostinho, arqueado sobre a sua bicicleta, numa das suas subidas para um sempre dramático "col", não consigo deixar de o ligar à imagem dos portugueses migrantes para terras de França, também no seu esforço trágico, que para muitos teve um merecido sucesso.

sábado, julho 23, 2011

"Orelhas de aço"

Eu e o João Niza Pinheiro tinhamo-nos aprimorado para que o discurso que aquele ministro, de uma pasta técnica, ia proferir numa reunião internacional, numa certa cidade europeia, acabasse por ser uma bela peça de oratória.

Havia semanas que por lá estávamos como membros da delegação portuguesa, numa conferência em que esse ministro ia intervir, como o mais alto representante do governo português. Estudámos o tempo disponível e decidimos que havia que fazer uma "obra" para 7 a 10 minutos.

Com falaciosos argumentos de autoridade técnica, para termos as nossas mãos completamente livres na elaboração do texto, havíamos convencido o ministro, que estava há escasso tempo em funções, a afastar a hipótese do seu gabinete ter um "droit de regard" final sobre o discurso: adiantámos que só nós conhecíamos a "chave" dos equilíbrios que era preciso introduzir na mensagem, que havia que ter em conta certos aspetos (que não revelámos) que a presidência rotativa europeia gostava de ver refletidos em todas as intervenções nacionais, que havia pormenores de política externa que era importante fazer transparecer subtilmente no texto, etc. Nós trataríamos de tudo, ninguém precisava de se preocupar. Enfim, vetustas técnicas do MNE para evitar que alguém venha perturbar o nosso trabalho...

Obtida que foi a total "luz verde" do crédulo governante e arranjadas umas cervejas, umas sanduíches e boas doses de café, em um pouco mais de três horas de trabalho, comigo ao teclado e com o Niza Pinheiro a dar sugestões de frases, aviámos, num muito razoável francês (melhor o do João que o meu), uma intervenção que até tinha algumas subliminares graças de que eu e esse meu colega, agora embaixador num posto europeu, ainda hoje nos rimos. Ao final da noite, fomos deixar duas cópias do discurso ao hotel em que o nosso ministro se hospedava.

No dia seguinte, aguardámos pela chegada do governante, na imensa sala de conferências. Chegou bem disposto. Era um homem cordial e simpático, sem uma grande experiência das coisas internacionais, mas com uma boa bagagem técnica. Inteligente, deve ter percebido que o que lhe propúnhamos era perfeitamente aceitável. E era, de facto. A nós, agradou-nos a circunstância de ele ter gostado do texto. Missão cumprida, assim.

Neste tipo de reuniões internacionais, que contam com largas dezenas de delegações, cujos discursos se distribuem ao longo de vários dias, as salas estão, em geral, pouco compostas. Há muitos países cujos lugares estão mesmo sem ocupantes. Raramente um ministro ouve com atenção o discurso de outro, isto é, os oradores chegam apenas durante a intervenção que antecede a sua e, acabada que é a sua função, logo partem para contactos bilaterais. Ou para as compras, como muitas vezes é o caso...

Na sala, ao longo dos dias, orgulhosos atrás das placas com o nome dos países, ficam, em geral, os mais jovens funcionários das delegações. Compete-lhes, acabada que seja cada intervenção, dirigir-se à delegação de quem a proferiu e pedir uma cópia do texto. Pelo sim pelo não, esses funcionários novatos tomam também nota de algum aspeto que tenham por mais relevante, que haja surgido durante as intervenções, por forma a delas poderem fazer um registo, que será enviado às capitais, as mais das vezes acompanhadas dos textos proferidos. E que, salvo no caso de países com opinião decisiva, quase de certeza que ninguém lerá. Uma tarefe chata, mas que não pode deixar de fazer-se. Esses funcionários de plantão são comummente designados, entre nós, como os "orelhas de aço", porque têm de manter, em permanência, um auscultador plástico no ouvido, para acesso às traduções. Ora fazê-lo por horas seguidas coloca uma pressão na orelha externa, a qual chega dorida ao final do exercício. Perceber-se-á agora melhor o apôdo.

O nosso nóvel ministro chegou à reunião bem antes da sua hora, como sempre acontece com os oradores angustiados. Sentou-se no centro da delegação, conosco a rodeá-lo (guardo uma fotografia do instante). Chegado o momento da sua intervenção, foi chamado à tribuna pelo presidente da sessão e leu, para nosso descanso, num francês aceitável, o texto exato que lhe havíamos preparado. Recordo de antes ter visto marcadas a lápis, no exemplar que levou para o palanque, as pausas para respiração, prova de que estivera a ensaiar o discurso, na véspera ou nessa manhã. Coisa de "maçarico" mas, igualmente, de pessoa responsável.

O texto saíu-lhe fluído, escorreito... isto é, tal como o tínhamos escrito! No final da prestação, enquanto se dirigia ao seu lugar,, ressoaram na sala umas palmas oficiosas e tépidas, nem mais nem menos calorosas do que as que acolhem, neste tipo de reuniões, intervenções idênticas, do Burundi a... Portugal.

Recolhido o ministro ao conforto patrioticamente consensual da nossa bancada, uns nossos "parabéns!", ou "esteve muito bem!" sossegaram-no. Nesse instante, o largo bando de "orelhas de aço" presentes, quais abutres à procura de presa fácil, começou a avançar, de todas as partes da sala, sobre a nossa delegação, com a finalidade de colher exemplares do texto, que entretanto tínhamos fotocopiado às largas dezenas. Não foi essa, contudo, a interpretação do nosso inexperiente ministro. Convencido que todos esses diplomatas de deslocavam à delegação portuguesa para o cumprimentar, deixou-se ficar de pé, no centro e, para nosso indisfarçado embaraço, passou a distribuir apertos de mão, à esquerda e à direita, gerando espanto e orgulho nessa colmeia de adidos e de terceiros secretários, desses "orelhas de aço", de todas as cores e extrações geográficas, que mais não queriam do que obter simples cópias do discurso. Mas que acabaram presenteados, cumulativamente, com calorosos "merci beaucoup!". Foram alguns minutos em que esperámos, com ansiedade, o fim da romagem, sob o sorriso de alguns velhos "routiers" daquele tipo de eventos.

À saída, tivemos de retorquir ao ministro, que perguntava: "É sempre assim? Vem sempre tanta gente cumprimentar? O nosso discurso caiu bem, não caiu?" Claro que caíu!

sexta-feira, julho 22, 2011

Noruega

Há mais de três décadas, fui viver para a Noruega, por alguns anos. Era um dos países mais pacíficos do mundo. Recordo-me de ver o primeiro-ministro percorrer a pé a rua Karl Johan (na imagem), no caminho para a estação de caminho de ferro, que todos os dias o levava e trazia para o trabalho. Muitas vezes, cruzei-me com ministros que se deslocavam de bicicleta. Vivia-se então em Oslo um sentimento de segurança quase plena.

O rei da época, Olav V, costumava deslocar-se de elétrico, como qualquer vulgar cidadão. Um dia, testemunhei uma cena deliciosa. O soberano, já nos seus 80 e tal anos, conduzia placidamente um carro pelas ruas da capital, apenas com uma pessoa a seu lado. A certo passo, parou junto a uma passadeira, para deixar passar uma senhora. A meio da travessia, a senhora reconheceu o rei e fez-lhe uma grande vénia. O rei retribuiu o gesto e, por uns instantes, ambos repetiram as inclinações de cabeça, numa coreografia de mútuo respeito, recheada de sorrisos.

Era assim a vida na Noruega, nesse final dos anos 70, do século passado.

A Noruega é, de há muito, um país dedicado à paz. Talvez não por acaso, o respetivo prémio Nobel, contrariamente a todos os outros, é decidido e atribuído em Oslo. Ao longo de muitos anos, os governos noruegueses, de várias orientações, empenharam-se, em diversas ocasiões e cenários geopolíticos, em operações de paz decididas pelas Nações Unidas, sendo também protagonistas, de há muito, de importantes processos de ajuda ao desenvolvimento. Foi em Oslo, e com os noruegueses, que a causa palestiniana deu passos que só não foram decisivos porque Arafat, como alguns diziam, "nunca perdia uma oportunidade para perder uma oportunidade". A diplomacia norueguesa é conhecida como uma diplomacia de bem.

Ontem, uma bomba explodiu, causando muitas vítimas, junto à sede do governo norueguês. (Mais tarde, veio a saber-se que um outro ato celerado provocou largas dezenas de mortos). Ainda não se sabem bem as causas desta barbaridade. Mas tudo muda, até a pacífica Noruega.

Deixo aqui um abraço solidário a todos os meus amigos noruegueses, cidadãos de um país com o qual Portugal tem, desde sempre, excelentes relações, reforçadas pelo generoso apoio dado pela Noruega ao processo de desenvolvimento português, no pós-25 de abril.

quinta-feira, julho 21, 2011

Iliteracia política

Alguma curiosidade levou-me a ler um livro, recentemente publicado, sobre a vida do nosso parlamento, com historietas nele ocorridas. Literatura de férias...

O mais surpreendente na publicação foi a ausência de um "editing" eficaz, que permitisse evitar erros como dizer que foi "Costa Gomes" quem fez o 28 de maio de 1926, que o presidente da Câmara Corporativa se chamava Luís "Pico" Pinto ou, finalmente, que Casal Ribeiro ainda perorava no plenário dos anos 80.

E não se pode exterminá-los?

quarta-feira, julho 20, 2011

Despedida do trema

Anteontem, falou-se aqui do Acordo ortográfico. Hoje vou falar do trema.

Há muito que, em Portugal, o trema - esses dois pontinhos sobre certos "u", para obrigar a pronunciá-los isoladamente - deixou de existir. Mas, no Brasil, só agora, com a implementação do Acordo Ortográfico (é verdade, no Brasil também mudam algumas coisas...), o trema vai desaparecer. E, nesse país, resolveu despedir-se com uma bela carta, que me chegou e que reproduzo:

Estou indo embora. Não há mais lugar para mim. Eu sou o trema. Você pode nunca ter reparado em mim, mas eu estava sempre ali, na Anhangüera, nos aqüíferos, nas lingüiças e seus trocadilhos por mais de quatrocentos e cinqüenta anos. Mas os tempos mudaram. Inventaram uma tal de reforma ortográfica e eu simplesmente estou fora. Fui expulso para sempre do dicionário. Seus ingratos! Isso é uma delinqüência de lingüistas grandiloqüentes!... O resto dos pontos e o alfabeto não me deram o menor apoio...  A letra U se disse aliviada porque vou finalmente sair de cima dela. O dois pontos disse que eu sou um preguiçoso que trabalha deitado enquanto ele fica em pé. Até a cedilha foi a favor da minha expulsão, aquele C cara de pau que fica se passando por S e nunca tem coragem de iniciar uma palavra. E também tem aquele obeso do O e o anoréxico do I. Desesperado, tentei chamar o ponto final para trabalharmos juntos, fazendo um bico de reticências, mas ele negou, sempre encerrando logo todas as discussões.... A verdade é que estou fora de moda. Quem está na moda são os estrangeiros, é o K e o W, "Kkk" pra cá, "www" pra lá. Até o jogo da velha, que ninguém nunca ligou, virou celebridade nesse tal de Twitter, que aliás, deveria se chamar TÜITER. Chega de argüição, mas estejam certos, seus moderninhos: haverá conseqüências! Chega de piadinhas dizendo que estou "tremendo" de medo. Tudo bem, vou-me embora da língua portuguesa. Foi bom enquanto durou. Vou para o alemão, lá eles adoram os tremas.E um dia vocês sentirão saudades. E não vão agüentar!... Nós nos veremos nos livros antigos. Saio da língua para entrar na história. Adeus, 
TREMA

"Serviço público" - restaurantes do Minho (revisto)

Pode consultar aqui a minha lista pessoal de restaurantes do Minho.

terça-feira, julho 19, 2011

Ulan Bator

Há dias, disse à embaixatriz da Mongólia em França, sentada ao meu lado num jantar, que um sobrinho meu ia, de moto, a caminho da capital do seu país, Ulan Bator, partindo de Lisboa. 

Fiquei com a sensação que ela achou que era uma "história" e disse aquele "how interesting!" que a boa educação recomenda, em sociedade, que acolha aquilo em que não se acredita de todo. E logo mudou de conversa.

Tenho pena de não poder dizer-lhe, hoje, que ele já lá chegou.

Bom regresso, Paulo!

Federalismo europeu

Durante muitos anos, o conceito do federalismo europeu fez o seu caminho com base na ideia de que os cidadãos, satisfeitos com a Europa que já tinham, acabariam por ganhar a convicção de que terem ainda "mais Europa" seria a boa receita para um seu futuro de progresso, como até então tinha acontecido. Essa ideia não vingou a partir do momento em que a Europa "tocou" nas temáticas mais próximas do "core" da soberania dos Estados e em que, simultaneamente, se verificou que a dinâmica de certas políticas, por razões próprias ou conjunturais, não tinha um comportamento positivo.

A derrotada Constituição europeia não era - ao contrário do que alguns desatentos pensaram - um passo para um destino federal, mas simplesmente um modelo sofisticado de oligopólio que, com outras roupagens, acabou por resultar no Tratado de Lisboa. Este, tal como aquela, foi a forma de garantir a quantos se haviam habituado a controlar o processo europeu antes do "grande alargamento" que não veriam o seu poder relativo afetado após a concretização deste. Mas, para que tal fosse possível, era necessário reduzir drasticamente o papel do principal elemento proto-federal europeu, a Comissão europeia. O que foi feito.

A ideia do federalismo volta agora a surgir no discurso europeu, mas por um motivo completamente oposto: pela ineficácia das políticas europeias em vigor e pelo fracasso de vários aspetos do atual projeto, como sendo a solução, embora sectorialmente fixada no caso da moeda, que poderia permitir encontrar uma saída para a crise. A grande ironia do atual debate é que se pretende "federalizar" a Europa, num tempo em que muitos Estados se sentem, à sua escala nacional interna, confortáveis com a deriva intergovernamental que entretanto ocorreu, muito por via do Tratado de Lisboa.

O caráter contraditório de tudo isto é que, no primeiro caso, o passo federal iria corresponder à evolução da vontade democrática dos povos e, no caso presente, ele configuraria apenas a consagração de um voluntarismo, forçado por um imperativo de um estado político de necessidade, em contra-ciclo com a própria dinâmica dominante no projeto europeu.

A politica não se faz de "fezadas". Mas, devo dizer, não acredito que seja possível instituir um modelo alternativo ao que temos, com um grau de integração ou "federalização" superior, se se pretender que ele venha a abranger todos os "sócios" atuais. E, mesmo nesse modelo mais restrito, essa "federação" nunca passaria de uma espécie de "condomínio" de oportunidade, uma espécie de "cooperação reforçada" de natureza sui generis.

Mas aguardemos, para ver.

segunda-feira, julho 18, 2011

Acordo Ortográfico

Eu sei que há quem não goste do Acordo ortográfico (nestas expressões, a segunda palavra passa a escrever-se com minúscula). Eu sei que há quem nunca tencione aplicá-lo. Mas ele vai tornar-se obrigatório na documentação oficial a partir de 1 de janeiro de 2012 (os meses, tal como as estações do ano, passam a escrever-se com minúscula).

Por essa razão, para quantos queiram conhecer o que vai mudar, de facto (a palavra facto não muda, contrariamente a todos os mitos, porque vamos continuamos a escrever as letras que pronunciamos), na escrita oficial portuguesa, pode consultar uma versão simplificada aqui.

Olá, Moledo!

B & B

Há bastantes anos que ouvia falar daquele restaurante, situado numa certa capital de distrito, onde não vou muito e onde tinha escassas refe...