terça-feira, dezembro 30, 2025

Um Natal quase europeu

Um dia, no primeiro semestre de 1985, o então diretor-geral dos Negócios Políticos do MNE, o embaixador Matos Proença, deslocou-se a Luanda.

No fim de um jantar, na residência do embaixador António Pinto da França, ficámos lado a lado num sofá e ele comentou: “Você já está cá há mais de três anos. O que pretende fazer no futuro?”. Disse-lhe que tinha pensado concorrer a um lugar na nossa embaixada na Haia. Fez uma cara surpreendida: “Para a Haia?! Que diabo quer ir fazer para a Holanda?” E, de caminho, disse-me então uma coisa que, de certo modo, alterou o modo como eu via o meu futuro: “Não sei se sabe, mas estes anos em Angola mudaram bastante o modo como você é olhado nas Necessidades. Para melhor! A sua cotação subiu, pelo bom trabalho que se sabe que aqui tem feito”. E eu que não fazia a menor ideia de que o imponderável “mercado” dos claustros me começava a ser favorável!

À época, posso agora confessar, as minhas expetativas, em termos de futuro profissional, eram muito moderadas. E, curiosamente, estava perfeitamente acomodado a elas. Depois de uns discretos anos iniciais em Lisboa, num setor periférico da área económica, seguidos de uma pouco relevante passagem por Oslo, que me coube em rifa sem pedir, tinha sido empurrado para a embaixada Luanda, também sem ser ouvido e sem que me tivesse sido dada outra opção. Embora me achasse um “safe pair of hands” para qualquer tarefa, tinha a sensação de que o ambiente dentro do MNE me não iria ser nunca favorável. Tinha a sensação de que tinha entrado, de forma quase irremediável, numa “slow lane” profissional. É verdade, era assim que eu via as coisas.

A minha posição política, que não escondia perante ninguém, e que afirmava, com regularidade, de um modo pouco maduro e até provocatório, pareciam-me uma barreira para poder vir a fazer uma boa carreira. E não estava aberto a mudar de atitude. Assim, quando muito, entendia que podia ambicionar postos de importância média. A aposta na Haia tinha precisamente essa lógica: um posto sereno e confortável, embora com holandeses...

Porque vivia a vida profissional de forma bastante isolada, não fazendo parte de quaisquer grupos ou “networks" dentro da casa, não fazia a menor ideia de como era visto o meu trabalho em Lisboa. Isso não significava que não achasse que fazia bastante bem aquilo que me competia. A modéstia nunca foi uma das minhas qualidades mais evidentes, como é sabido.

Ao dizer o que me disse, Matos Proença, um homem discreto, cordial e bastante competente, que viria a morrer bastante cedo, fez-me rever essa minha perspetiva. A ser verdade o que ele afirmava, talvez eu pudesse ter ainda outras ambições. 

E Matos Proença logo acrescentou algo que me criou uma perspetiva nova: “Como sabe, no dia 1 de janeiro do próximo ano, Portugal vai entrar para as Comunidades Europeias. Estamos a preparar uma equipa para isso. Acho que você tem condições para poder ter um lugar de chefia. Quer que fale no seu nome ao secretário-geral?“ Disse-lhe que sim, que estava interessado, claro! Luanda era um posto pesado, tinham sido três anos de vida difícil, pelo que o desafio parecia promissor.

Mas havia um mas. A Europa? A CEE? Eu era então muito pouco europeísta. Não tinha a fé dos convertidos à religião federal de Monnet & Schuman, mantinha uma leitura algo soberanista da gestão dos nossos interesses, preocupava-me muito a ideia de partilhar o poder nacional, achava que nos iriam impor uma matriz liberal que podia limitar uma possível evolução no "caminho para o socialismo". O quê?! estar-se-ão a perguntar. É verdade! Ao contrário de outros, sou um orgulhoso herdeiro de todo o meu passado. Em 1986, eu ainda pensava assim. E não era contra a aventura europeia, mas era um euro-cuidadoso.

Entretanto, os meses andaram e mais nenhuma notícia me chegou. Matos Proença tinha saído do lugar que ocupava, para ser embaixador na ONU. Achei que o assunto tinha morrido. E preparei-me para viver 1986 em Angola. E, depois, quem sabe, talvez fosse para Haia ou coisa parecida.

Até que um dia, creio que em meados de outubro desse ano de 1985, Pinto da França recebeu um telegrama pessoal do secretário-geral, João Sá Coutinho, a determinar a minha apresentação em Lisboa, com caráter de urgência. Era expressamente mencionando no texto que me esperava um lugar de chefia nas Necessidades. O embaixador não ficou muito satisfeito com a minha súbita partida, mas teve a amiga atitude de a não inviabilizar.

E lá parti, à pressa, para Lisboa, menos de um mês depois. Como tinha a casa em obras, fui obrigado a ir viver para um apartamento vago, emprestado por um amigo. Depois de mais de três anos de Luanda e oito de estrangeiro, senti que, no fim de contas, iria ser bom regressar a Lisboa. A minha mulher podia voltar ao seu emprego, embora tendo perdido mais de seis anos de antiguidade e a hipótese de qualquer promoção ou chefia, pelo facto de me ter acompanhado. Mas estávamos felizes com a nova vida que íamos ter e foi muito bem disposto que me fui apresentar ao secretário-geral.

Sá Coutinho mandou-me sentar na velha cadeira de palhinha que estava em frente à sua secretária e, por uma qualquer sombra no seu olhar, tive um súbito mau pressentimento. Que logo se confirmou: “Ó Seixas da Costa, não tenho boas notícias para si. Houve aqui em Lisboa uma mudança de planos e eu queria perguntar-lhe se não precisa de dois ou três meses, com calma, para pôr em ordem a sua vida.” 

Eu não estava a perceber nada, mas já começava a perceber tudo. Ainda arrisquei: “O senhor embaixador sabe bem que vim à pressa de Luanda, que nem a minha bagagem pessoal ainda chegou, tudo isso porque, num telegrama seu, há poucas semanas, me foi confirmado ir ter aqui um lugar de chefia. O que é que mudou?”

O secretário-geral, um homem grande, pessoa cordial, um aristocrata limiano, com fama liberal (no tempo em que os liberais eram outra coisa e tinham boa fama), estava visivelmente embaraçado: “Meu caro, não quero nem posso ir muito longe, mas foi a política que se meteu no meio disto tudo. O lugar já não é para si. Não vai ser possível ter nenhum lugar de chefia”. 

O meu choque era compreensivelmente grande: “E há alguma ideia sobre o que vou fazer?” Sá Coutinho rodava em torno da secretária e confessou: “Por ora, nada. Mas vá falar com o Gregório Faria, que está a montar as coisas das Comunidades Europeias, na Visconde Valmor, nas áreas mais técnicas. Pode ser que ele tenha qualquer coisa para si”. Senti que ficou muito aliviado quando me viu sair do gabinete. 

Entre a visita de Matos Proença a Luanda e a minha chegada a Lisboa, tinha tomado posse um novo governo, em inícios desse mesmo mês de novembro. O primeiro ministro chamava-se Aníbal Cavaco Silva. Ao atravessar os corredores e o pátio do Ministério, tive o alívio de não me cruzar com nenhum colega, que pudesse inquirir sobre o meu destino, nesse imperativo regresso a casa. 

No dia seguinte, fui recebido pelo embaixador José Gregório Faria, recém-nomeado diretor-geral das Comunidades Europeias (era a designação, à época). Foi simpático, mas revelou-me que, não apenas não tinha nenhum lugar para mim nem, muito menos, qualquer lugar de chefia. Pior ainda: não tinha sequer onde me sentar, de tal modo o novo serviço estava cheio dos técnicos que tinham transitado das estruturas que tinha negociado a adesão. Os diplomatas eram por ali muito poucos e, quase todos, estavam acantonados numa única direção de serviços, essa já sem lugar para mais ninguém. 

Toda a boa-disposição que criara com o regresso a Lisboa tinha-se desvanecido. Estava numa casa emprestada, com a vida improvisada, sem nada para fazer, sem perspetivas de futuro num tempo político tumultuoso e que, pelos vistos, dava ares de me ir ser profissionalmente hostil. 

O meu Natal de 1985, em Vila Real, não foi dos mais simpáticos.

Em Portugal, vivia-se a campanha das eleições presidenciais. À esquerda, Soares, Zenha e Pintasilgo disputavam o eleitorado. A direita, mais unida do que nunca, tinha Freitas do Amaral como candidato. Os comícios sucediam-se, o país estava ao rubro.

O candidato que mais me agradava era Salgado Zenha, que logo se percebeu que não teria qualquer hipótese. A maioria dos meus amigos eram pintasilguistas. O ambiente de crispação política que atravessava Portugal era imenso. O chapéus de palhinha e os “loden” pelas costas eram a imagem de marca da direita. Aos meus olhos de então, uma vitória de Freitas quase que podia trazer o “fascismo” de volta, de tão sinistro me parecia o grupo de gente que o rodeava - alguns são hoje bons amigos meus. O que, por esses dias, me estava a acontecer profissionalmente não ajudava a que criasse uma opinião diferente. Bem pelo contrário.

Votei Zenha na primeira volta e, naturalmente, escolhi Soares na segunda. A noite da sua vitória - ou melhor, a derrota de Freitas - foi talvez a momento mais feliz que tive em política, em toda a minha vida. Isso mesmo: mais do que a vitória do PS, em outubro de 1995, ou a de Sampaio, meses depois.

Neste entretanto, depois de passar umas semanas em casa, fui chamado à direção-geral das Comunidades Europeias, onde, sentando-me aqui e ali, fui ajudar a montar um serviço de cifra para a nova estrutura e me foi dada uma tarefa curiosa e divertida: elaborar um conjunto de ordens de serviço, “pedagógicas”, para moldar aquele imenso grupo de técnicos à “liturgia do MNE”, numa expressão de Gregório Faria. Em cerca de dez diretivas, ensinei como se escreviam os “telegramas’, as “notas verbais” para as embaixadas estrangeiras e outras regras básicas da diplomacia. Um dia, finalmente, fui colocado na direção de serviços das Relações Externas, embora com funções muito limitadas. 

Foi assim, desta forma um tanto atribulada, que eu cheguei ao novo Portugal europeu. 

O ambiente na direção-geral das Comunidades Europeias - ou na “Visconde Valmor”, como o serviço melhor era conhecido nas Necessidades - era excelente, com grande predominância feminina, gente competente e entusiasmada com as novas tarefas. Era um tempo em que todos estávamos a aprender a nadar nas águas europeias. As idas a Bruxelas, aos grupos de trabalho dos nossos respetivos pelouros, eram momentos interessantes. Para mim, o único verdadeiro problema que enfrentei foi ter de trabalhar num “open space”, sala com pé direito muito baixo, onde toda a gente falava alto ao telefone. Cheguei a pôr tampões nos ouvidos...

Mas, pronto!, assim entrei "na Europa". Nos anos seguintes, a minha vida profissional deu algumas voltas, e a Europa entrou nela. Oito anos depois, vim de Londres para sub-diretor-geral dos Assuntos Europeus, como o setor tinha passado a chamar-se. Um ano mais tarde, fui convidado para ser secretário de Estado da área. 

Pensando bem, podia ter corrido pior.

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