terça-feira, dezembro 02, 2025

Laura

A Laura, prima direita da minha mãe, era bastante mais velha do que eu. Tinha sido regente escolar, em Bornes. Um dia, meteu-se em brios e decidiu fazer o ensino secundário, para vir a ser professora primária. Fizemos juntos o então 5° ano do liceu. Foi um período divertidíssimo. 

Por esse tempo, dois outros primos, vindos de Lisboa, juntaram-se a nós, em Vila Real, para os exames: o Jorge e o Fernando. Este alimentava uma tese de duvidosa religiosidade: "Deus disse que nós amássemos, não que nos amassemos". Numa noite desses dias, uma sua frustrada incursão no quarto da empregada lá de casa provocou uma mini-crise familiar. A minha mãe calou o incidente, mas nunca o perdoou. A Laura, ao saber, ficou chocada: "O Fernandinho?! Quem havia de dizer?!"

Por esses tempos, a Laura e os restantes primos estudávamos juntos. Ou melhor, a Laura estudava e nós distraíamo-nos muito na galhofa. Tenho ideia de que, um pouco por essa razão, concluí o 5° ano apenas com notas assim-assim. 

Lá por casa, à época, juntavam-se a nós o Jorge Lima Barreto - esse mesmo, o do jazz - e o Sérgio Moutinho - que muitos anos depois terminaria barbaramente assassinado na Turquia. A linguagem bem desviante desses dois últimos escandalizava imenso a Laura, cuja educação tradicional devia ser pouco dada a aceitar caminhos afetivos que se afastavam da (então) normalidade pública. Havia também, no nosso grupo, uma outra comparsa, essa apenas um pouco mais velha, que recordo ser de Armamar. Tenho ideia de que cuidava muito em manter as distâncias. Talvez seja essa a razão porque esqueci o seu nome, mas não os belos olhos e o resto.

Eu e a Laura, demo-nos sempre muito bem. Um dia de verão, na minha adolescência, comigo de férias nas Pedras Salgadas, a pedido da mãe, a queridíssima tia Eusébia, fui seu "chaperon", para um baile no Hotel Universal. Danço pessimamente e tenho ideia de que a Laura se ria imenso da minha eterna falta de jeito. 

A Laura casou e passou a viver em Vila Pouca de Aguiar. A espaços, passava por ali a vê-la. Coisa rápida, conversa curta, com recordações antigas à mistura, caricaturadas para o momento. A morte de mãe, a tia Eusébia, foi reduzindo as minhas visitas.

A Laura morreu no último dia de novembro, soube há horas. Há tanta gente a morrer por esta altura! O meu pai, que há dias teria feito 115 anos e que recordo, ao longo dos anos, manteve sempre com a Laura conversas divertidas, alimentava a tese de que os três últimos meses do ano eram "o cair da folha": "Basta passar pela montra do Euclides e ver a quantidade de mortes que vão sendo anunciadas, a partir de outubro!", referindo a agência funerária da cidade. Tinha razão.

Não consegui despedir-me da Laura. Nem poderia: a Laura tinha saído do mundo da razão há já alguns anos. A última vez que nos vimos, por ironia do destino, foi no cemitério de Bornes, onde tínhamos ido celebrar os nossos mortos e onde imagino que ela agora tenha ficado. Demorou então a conhecer-me. Pressenti-a a afastar-se do mundo. Agora, saiu dele de vez.

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