No dia 11 de março de 1975, houve uma tentativa de golpe de Estado militar em Portugal. Descontente com o curso da Revolução e inconformado com o seu afastamento do poder pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), em setembro do ano anterior, o general Spínola e alguns sequazes tentaram retomá-lo. Na sua ação, provocaram um morto e feridos. Constatado o malogro da intentona, Spínola fugiu para Espanha (iria depois para o Brasil), tendo alguns dos seus cúmplices sido presos.
Ao final da tarde desse dia, a cúpula do MFA reuniu no palácio de Belém com o presidente Costa Gomes, para avaliar o ocorrido. Houve quem achasse que isso não era suficiente. Alguns oficiais, entre os quais eu me encontrava, entenderam que era importante tirar reais consequências do estado de coisas, no seio das Forças Armadas, que tinha criado as condições para a execução do golpe. E, se bem o pensámos, melhor o fizemos: metemo-nos nos nossos carros, entrámos pelo palácio de Belém dentro, forçámos a interrupção da reunião e, manifestamente contra a sua vontade e tendo subliminarmente atrás de nós o peso de algumas unidades militares importantes, obrigámos Costa Gomes e as estruturas dirigentes do MFA a deslocarem-se para o edifício na calçada das Necessidades, onde hoje funciona o Instituto de Defesa Nacional. E assim aconteceu a Assembleia do 11 de março.
Há dias, foi lançado um livro que contém a transcrição completa do debate havido nessa tensa Assembleia, que durou mais de oito horas. Tive o gosto de ser convidado por Vasco Lourenço e Almada Contreiras para, na Associação 25 de Abril, fazer a apresentação do livro, que surgiu quase simultaneamente com um excelente documentário realizado por Jacinto Godinho para a RTP sobre essa histórica Assembleia.
Porque, durante estes 44 anos, o que se passou realmente naquela reunião foi objeto de forte controvérsia, não obstante ela ter sido testemunhada por cerca de duas centenas de pessoas, a publicação da transcrição dos debates reveste-se da maior importância.
Sumariando o que disse na apresentação do livro, julgo ficar claro que o qualificativo denegridor de “assembleia selvagem” colado a essa reunião, não tem a menor razão de ser, pelo que o livro ajuda a acabar de vez com três mitos.
O primeiro é da indisciplina. A reunião, não despida de emoção em alguns momentos, passou-se sob um permanente sentido de respeito hierárquico, desde logo garantido pela tutela do presidente da República e do primeiro-ministro. Ao longo dessas longas e tensas horas, como o texto testemunha, não houve o mais leve beliscar do respeito hierárquico e as interlocuções mantiveram-se no formalismo a que o ambiente de uma reunião militar obrigava.
O segundo diz respeito à questão das eleições para a Assembleia Constituinte, previstas para 25 de abril, isto é, pouco mais de um mês depois da Assembleia. A mitologia, adubada por alguns historiadores, aponta no sentido de ter sido Costa Gomes, num “hábil” fecho da reunião, que deu esse assunto como encerrado, para evitar que a Assembleia procedesse a um adiamento, assim incumprindo com o compromisso assumido pelo MFA no 25 de abril. Nada mais falso. Como o texto revela, não obstante terem surgido algumas vozes favoráveis ao adiamento, muitas mais se pronunciaram em favor da manutenção da data. É mesmo Rosa Coutinho quem adianta que seria uma “provocação” ao povo português não cumprir com a palavra dada.
Finalmente, um terceiro mito fica também, para sempre, arrumado: a questão dos fuzilamentos. Claro que houve quem alvitrasse que se deviam fuzilar os responsáveis pelo golpe criminoso dessa manhã (mas nenhuma dessas pessoas foi o coronel Varela Gomes, como erradamente consta de livros e abundantes artigos de imprensa). Houve, de facto, uma intervenção nesse sentido e foi lida uma proclamação, sob a mesma orientação, aprovada na unidade militar que havia sido bombardeada pelos sediciosos. Mas a rejeição esmagadora dessa ideia ficou, desde logo, bem patente. O texto traz-nos, a esse respeito, magníficas intervenções de Cabral e Silva, de Rosa Coutinho, de Sacramento Marques, de Costa Neves, do presidente Costa Gomes e de outros, afastando liminarmente essa irresponsável sugestão, garantindo contra ela o apoio esmagador da Assembleia. Devo dizer que esse é talvez um dos grande momentos da Assembleia do 11 de março, pela prevalência clara, no seu seio, de um sentimento humanista e muito português, como Ferreira Fernandes bem sublinha na sua crónica de hoje no “Diário de Notícias”, que pode ser lida aqui.
A Assembleia do 11 de março, com todas as suas decorrências, faz hoje parte integrante da História de Portugal. Tive grande orgulho em nela participar e ter mesmo nela feito uma intervenção - sendo, aliás, uma das muito escassas vozes de oficiais milicianos que alguma vez tomaram a palavra na dezena de Assembleias do MFA, realizadas entre dezembro de 1974 e setembro de 1975 (e estive presente em três).
Não se pode entender a História sem contextualizarmos os factos. Não se pode olhar para os acontecimentos de uma época como se as coisas se estivessem a passar hoje, à luz do que agora sabemos e pensamos. Além disso, temos de nos ver a nós mesmos inseridos nessa época, no Portugal convulso e agitado desses dias, nesse caldeirão de esperança em que todos estávamos mergulhados. A Revolução era jovem e nós também.
3 comentários:
é bom que as pessoas que testemunham factos históricos e relevantes, deixem as suas mensagens e as suas memórias registadas :) sob pena de muitos acontecimentos serem deturpados. As novas gerações agradecem!
Mas afinal a intentona não foi uma inventona?
Tempos animados foram esses, sr. Embaixador.
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