Às vezes, somos tentados a pensar que, por uma análise racional ou racionalizada, somos capazes de superar traumas fortes que ocorreram na nossa vida. Cada vez me convenço mais de que isso é uma ilusão: podemos pôr entre parêntesis esses episódios, mas as cicatrizes lá ficaram e, quando olhamos para elas, a memória surge tão ferida como estava nesse instante.
Vem isto a propósito do 25 de abril.
As memórias dessa data são muito díspares. Para alguns, como é o meu caso, olho para a data com um sorriso histórico e, pela alegria que ela me proporcionou, chego a absolver com alguma ligeireza alguns erros imperdoáveis que então se (e o "se" aqui também é reflexo) cometeram.
Mas quando me confronto com gente que, por vezes sem culpa própria, sofreu na pele as consequências da Revolução, seja por ter visto interrompida a sua vida nas colónias, seja por eventos traumáticos, disruptores da normalidade do seu quotidiano de então em Portugal, fico com a sensação de que nunca será possível, por maior esforço que essas pessoas façam, conseguir que elas passem uma esponja sobre a memória negativa que transportam consigo.
Na maioria das vezes, nem sequer estamos perante "fascistas" encapotados, remoendo vinganças e ansiando por um impossível retorno aos dias da ditadura. Estamos face a pessoas conservadoras, que vivem bem o país democrático de hoje, que apenas nunca se reconciliaram com o que um dia lhes aconteceu, afetando o que tinham por normal nesse seu quotidiano. Não vale a pena, com essas pessoas, tentar argumentar, procurar discutir o passado que, entretanto, e em definitivo, mudou. É um exercício desgastante e inútil para os dois lados, conducente mesmo a potenciais momentos desagradáveis, que a nada conduzem.
Para voltar ao princípio deste texto, o sentimento que vive dentro dessas pessoas não muda, não mudará nunca através de uma discussão, morrerá com elas.
Lembrei-me disto numa conversa que hoje tive.
17 comentários:
O que essas pessoas não compreendem, é que se a vida, nesses tempos, lhes era finalmente agradável e não necessitava nenhuma revolução para progredir, outros havia que estavam a viver na maior miséria, viviam num poço sem luz, num horizonte sem futuro. Os que viviam bem, passavam ao lado dos segundos e não os viam, contentando-se na distribuição de alguma caridade.
O êxodo dos Portugueses para o estrangeiro foi a resposta dos explorados do sistema.
Consideravam mesmo que a sociedade era mesmo assim, que as desigualdades, por mais injustas que elas fossem eram o resultado do destino de cada um. Deus assim queria, diziam muitos. E não viam que na realidade era a sociedade e o regime politico e económico que a regia que eram execráveis. Hoje é normal que paguem a cegueira e a colaboração de casta na qual viveram nesses tempos. Não tenho pena nenhuma dessa gente.
Quanto aos que viviam nas colónias, haviam os da alta fatia que aproveitavam ao máximo do poder colonial tais como o BNU e os outros bancos e grandes companhias coloniais, depois haviam os que viviam na sua sombra, que sem serem espoliadores dos nativos beneficiavam da sua qualidade de metropolitanos para obter o trabalho quase gratuito da imensa maioria dos “indígenas”.
A maneira como os tratavam, frequentemente, traduzia por vezes a origem humilde de alguns metropolitanos, que eram analfabetos no seu próprio país, mas se consideravam superiores àqueles que comandavam. Sem esquecer, que “os rapazes” , por vezes idosos , “os boys”, como lhes chamavam, dormiam por vezes na garagem, em cima duma manta…Tudo isso paga-se , um dia… Mesmo se após a independência os explorados de ontem, caíram de de-charybde-en-scylla…
Quando não podemos fazer nada pelos traumas das pessoas, é sempre possível escutá-las e ouvir o que têm a dizer, simplesmente por amizade, sem condenar ninguém!
Francisco
Gostei muito da objectividade deste seu post que, aplicando-se ao 25 de Abril, pode estender-se a muitas outras questões. Ninguém nasce conservador ou democrata, de direita ou de esquerda. A educação que recebe, o ambiente familiar e social em que nasce, são bastante determinantes dos caminhos que cada um "escolhe" trilhar. E é aqui que reside o problema. Há pessoas que entendem que na vida só há um caminho, o seu, o que "escolheram". E aqui já entra algo a que chamo de responsabilidade pessoal.
Quantos de nós não nascemos num determinado ambiente e optamos por caminho diferente? Muitos certamente o fazem, sabe-se lá com quanta dor não revelada, à mistura. Saber ouvi-los e tentar que eles nos oiçam seria sempre o ideal, já que não há para cada um de nós "apenas um" fato que nos sirva à medida. Tentar "compreender" as razões do outro é fundamental para se ter uma ideia do que representou, para todos, o 25 de Abril. Eu tenho uma memória desse dia que jamais esquecerei. Tudo aquilo em que eu acreditava podia estar ali... E durante algum tempo esteve de facto...
A descolonização não só era inevitável (todos os impérios coloniais, alguns bem mais poderosos que o nosso, se desmoronaram), como era desejável que acontecesse (a bem do país e, iludi-me eu, a bem dos povos colonizados). Sem qualquer dúvida.
A questão que alguns, como eu, levantam é simples: Não podia a descolonização ter ocorrido de uma outra maneira que não aquela que testemunhámos?
O major Melo Antunes – esse decisivo "capitão" de Abril, a quem a nossa democracia muito deve – poucos anos antes de falecer respondeu, com a humildade própria dos que têm grande carácter, de forma enxuta a esta interrogação, mas, para quem quer ver longe, com particular profundidade: "podíamos ter feito melhor".
De todos a quem a história pôs nas mãos a responsabilidade de negociar o fim do império (Mário Soares, Almeida Santos e o próprio), Melo Antunes foi o único – o único – que teve a hombridade de reconhecer que podiam e deviam, acrescento eu, "ter feito melhor". Não foi assim que foi feito.
Hoje, já nada há a fazer. Ponto e vírgula: reconhecer erros é sempre possível. E não é difícil imaginar como isso ajudaria a apaziguar alguns daqueles que viram abruptamente “interrompida a sua vida nas colónias” e que, relevo, não viram os seus legítimos interesses minimamente defendidos por quem tem essa obrigação e é o seu próprio fundamento: o Estado Português. E os estadistas de então… Mas até hoje só Melo Antunes o fez. Todos os outros se refugiaram na inevitabilidade (óbvia) da descolonização. Obrigado Major Melo Antunes.
Quando a Senhora D. Helena Sacadura Cabral escreve : « A educação que recebe, o ambiente familiar e social em que nasce, são bastante determinantes dos caminhos que cada um "escolhe" trilhar
O problema é que muitos, a maioria mesmo dos Portugueses, nesses anos que me marcaram, não puderam “escolher o seu trilho”. Este foi-lhes imposto pela ditadura.
Não há “responsabilidade pessoal” numa sociedade como aquela que conheci em Portugal, onde os actos inerentes à qualidade dos cidadãos não existem, pela simples razão que todos “não são cidadãos”.
Sempre admirei aqueles que, tendo nascido num ambiente “favorável” , onde receberam a melhor educação, mesmo sem serem ricos, optaram pelo caminho mais difícil, o da resistência e da solidariedade com aqueles que “trilhavam um caminho” que lhes era imposto.
Vivi de longe, já, a Revolução de Abril. Mas tendo vivido aqui em França a descolonização do Império Francês, particularmente a da Argélia, onde existia um exército francês muito mais poderoso que o português, e não estava dividido em varias frentes como o português, que combatia em três colónias, cercadas por vizinhos que cooperavam com os independentistas africanos, sempre pensei, sem ser um estratega militar, que a partir do momento em que o Estado Português se desmoronou, com a Revolução, Portugal não tinha os meios de resistir militarmente, nem podia diplomaticamente, evitar a pressão dos “amigos ocidentais”, sobretudo os EUA e a África do Sul.
E sem duvida nenhuma, os capitães de Abril estavam também favoravelmente influenciados pela filosofia nascida em Bandung, que lançou o largo movimento de descolonização dos impérios europeus.
A França descolonizou a Indochina após o desastre de Dien Bem Phu. Descolonizou a Argélia após os massacres cometidos pela OAS em França e a ameaça de sedição dos generais de Argel, contaminados pela mesma OAS.
E se tenho muitos amigos “pieds-noirs” que continuam a detestar a memória de De Gaulle, não foi tanto pela autodeterminação que deu aos Argelinos, que levou à independência, mas foi pelo facto que compreenderam como quiseram, o grito de De Gaulle em Argel : “Je vous ai compris”, que no fundo foi e é ainda hoje considerado como uma traição. Se De Gaulle sabia o que tinha a intenção de fazer, os “pieds-noirs” esperavam outra coisa.
A ameaça do FLN aos pieds-noirs : “ La valise ou o caixão” levou ao êxodo.
Nenhum capitão de Abril, e muito menos Mário Soares, podia lançar o mesmo grito em Luanda, Lourenço Marques e Bissau : “ Je vous ai compris”. Toda a gente sabia que Portugal não tinha os meios.
Manuel de Edmundo Filho
reconhecer erros é sempre possível. E não é difícil imaginar como isso ajudaria a apaziguar alguns daqueles que viram abruptamente “interrompida a sua vida nas colónias”
Será que, quando Melo Antunes afirmou que poderia ter feito melhor, não o estava a dizer apenas e tão somente para, precisamente, apaziguar os espoliados das ex-colónias?
É que, eu dificilmente concebo como é que poderiam ter feito melhor!
A descolonização correu muito bem em todo o lado, menos em Angola e Timor. E porquê? Precisamente porque, nesses dois países e não nos outros, os "indígenas" estavam na disposição de se guerrear uns aos outros. Que podiam os portugueses tr feito para os impedir disso? Será que era obrigação dos portugueses permanecer lá para impedir que os indígenas se matassem entre si? Que responsabilidade tem Portugal na guerra entre a UNITA, a FNLA e o MPLA? Não tem nenhuma!!!
Concordo naturalmente com o exposto. Todavia, o que me causa ainda mais impressão é o facto dessa mentalidade conservadora e, muitas vezes, reacionária, estar perpetuada na geração que se lhes seguiu e continuar mesmo em muitos rapazes e raparigas de vinte anos. Tivemos um exemplo cabal deste teor ultramarino das colónias recentemente, com a morte de Mário Soares.
Concordo plenamente com o tema exposto
e aplaudo a lucidez e frontalidade.
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O trauma do que se passou depois de 25 de Abril de 1974 durará muitos anos ainda. Falando apenas naqueles que cá andavam será dificil esquecerem, sem transmitirem aos descedentes algumas impressõs. Com os retornados, mesmo que nunca se tenham pronunciado,com certeza que irão transmitir as suas impressões às gerações seguintes.
É muito interessante haver tão pouca literatura sobre estes dois temas mas.... acho que muito pouca gente que viveu tudo aquilo, sem ser politizado, quererá dar o seu testemunho sobre este "tempo", tal como geralmente os soldados que tiveram de passar por uma guerra registam poucas vezes as suas impressões. Foi de facto um tempo dificil para muita gente.Para outros foi um tempo de esperança que hoje.... se vai esfumando. Ainda não percebi o que a História irá registar.
"Os que viviam bem, passavam ao lado dos segundos e não os viam, contentando-se na distribuição de alguma caridade...." continua a ser o pão nosso de cada dia
ou alguém nos dias de hoje se preocupa com as desigualdades cada vez maiores que existem entre as sociedades, entre os continentes?
ou será que vejo mal e não vejo a partilha?
Manuel Edmundo, não podemos andar eternamente a “apaziguar”. Não era a altura de os portugueses das ex-colónias entenderem finalmente que uma revolução e uma descolonização são sempre processos traumáticos e de perda inevitável e que nenhuma solução nessas circunstâncias é perfeita? As perdas humanas foram mínimas e a operação de repatriamento, ponte aérea e ajuda aos “retornados”, com todas as contingências, foi um trabalho meritório. Mas que o que queriam mesmo muitos ex-colonos era trazer terras, casas, tudo o que lá tinham. Quando muitos chamam “ladrão” ao Soares, Almeida Santos e, sim, também ao Melo Antunes, é disso que falam. Chega uma altura em que se perde a paciência para o apaziguamento.
O Sr, Freitas, fez serviço militar,ficou livre?
Os seus "trilhos" foram sempre os mesmos?
Quem lhe fez "mal" ?
Ao anonimo da 10 de Fevereiro 2017 - às 11.53
Até é capaz de ser o mesmo « anónimo » corajoso habitual, mas vou responder desta vez:
Fiz 18 meses de serviço militar, como todos aqueles que não tinham cunhas para o evitar.
Os meus “trilhos” foram sempre os mesmos: intransigência no que respeita a liberdade de expressão, intransigência nos valores da justiça e solidariedade com aqueles que sofrem,
Fizeram mal ao meu Pai e automaticamente a mim, e a todos os meus, quando o perseguiram pelas suas ideias no país onde nasci, obrigando-o ao exílio.
E continuaram a fazer-me mal, quando vejo em que estado o deixaram em Abril 1974.
Perfeitamente de acordo com as palavras do anonimo das 10:19.
Obrigado pela resposta, estou esclarecido, mas com a idade, devia ser mais tolerante, que sendo eu anónimo, sinónimo de "não corajoso" (....) fiquei esclarecido quanto ás suas razões.
Bem, nada de admirar quando se sabe que a esmagadora maioria dos retornados, haviam sido colonos levados para áfrica nos anos 50, das mais reconditas e reacionárias terriolas da metrópole, por isso é q
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