Ontem à noite, na inauguração do novo Centro cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, encontrei a professora Cleonice Berardinelli, uma distinta académica brasileira a que já me referi aqui e aqui. E recordei, com ela, uma das mais complicadas cenas protocolares que tive de enfrentar, ocorrida no Brasil, em 2006.
Um ano antes, por feliz sugestão do diretor internacional da Gulbenkian, João Pedro Garcia, eu havia proposto que fosse concedida à professora Berardinelli a grã-cruz da ordem de Santiago de Espada, como forma de manifestarmos o nosso reconhecimento por uma vida académica dedicada ao estudo e promoção da literatura e da cultura portuguesas no Brasil. A minha sugestão foi aceite por Lisboa e, aproveitando uma passagem pelo Rio de Janeiro do então primeiro-ministro, engº José Sócrates, foi decidido organizar a cerimónia da entrega da distinção na grande sala do Real Gabinete Português de Leitura. Creio que mais de duas centenas de pessoas enchiam aquele magnífico espaço, testemunhando o elevado apreço que a professora Cleonice Berardinelli - que entretanto foi eleita para a Academia Brasileira de Letras - a tantos merece.
O programa de trabalho do chefe do governo português no Rio de Janeiro, nesse dia 11 de agosto de 2006, estava já bastante atrasado. O trânsito no Rio é muito complicado, a fixação dos tempos para os vários pontos da agenda fora feita de forma um tanto otimista, pelo que a chegada da comitiva ao Real Gabinete se processou quase uma hora depois do previsto, com outros eventos já à espera. Essa é a sina de muitas deslocações oficiais, especialmente quando se pretende atender a diversas solicitações: as conversas prolongam-se, surgem factos inesperados, as visitas demoram mais do que o previsto. Nada que seja muito grave, mas que sempre induz algumas tensões.
O programa de trabalho do chefe do governo português no Rio de Janeiro, nesse dia 11 de agosto de 2006, estava já bastante atrasado. O trânsito no Rio é muito complicado, a fixação dos tempos para os vários pontos da agenda fora feita de forma um tanto otimista, pelo que a chegada da comitiva ao Real Gabinete se processou quase uma hora depois do previsto, com outros eventos já à espera. Essa é a sina de muitas deslocações oficiais, especialmente quando se pretende atender a diversas solicitações: as conversas prolongam-se, surgem factos inesperados, as visitas demoram mais do que o previsto. Nada que seja muito grave, mas que sempre induz algumas tensões.
À chegada do primeiro-ministro, conduzi-o, de imediato, para uma sala onde estavam a professora Berardinelli e outros convidados importantes. Nesse preciso momento fui alertado para uma questão "trágica": por uma qualquer confusão, as insígnias da condecoração tinham ficado no hotel, bem longe, na Avenida Atlântica. Um estafeta fora entretanto buscá-las mas, uma vez mais atentas as dificuldades do trânsito, era difícil prever os minutos que demoraria a sua chegada.
Esgotados, com alguma rapidez, as amabilidades e os cumprimentos protocolares entre os presentes na sala, ciente do calendário apertado em que se movimentava, que se cumulava ao atraso anterior, o primeiro-ministro deu, a certo passo, instruções para que a cerimónia se iniciasse, sem demora. Eu era a única pessoa que sabia que, se bem que as formalidades e os discursos pudessem arrancar, elas não se poderiam concluir sem a chegada das insígnias. Mas, confesso, em face dos constrangimentos de horários que se viviam, decidi correr o grande risco de deixar iniciar o ato solene.
Sobre o momento, surgiu-me então, uma única solução: embora só estivessem previstos três discursos - o do presidente do Real Gabinete, Dr. Gomes da Costa, o do primeiro-ministro português e o de agradecimento, da professora Cleonice Berardinelli - eu iria improvisar uma intervenção, imediatamente após a do Dr. Gomes da Costa... que duraria todo o tempo que fosse necessário, até à chegada física das insígnias.
Instalados na tribuna, segredei ao Dr. Gomes da Costa que deveria procurar ser tão longo quanto possível. Ele, porém, disse-me que o seu texto estava escrito e que só dava para cerca de dez minutos. Notei que o primeiro-ministro ficou surpreendido quando lhe passei uma mensagem dizendo que eu também falaria na cerimónia: protocolarmente, estando prevista uma intervenção do chefe do governo, não tinha qualquer sentido o embaixador falar. Ainda perguntei ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Luis Amado, e ao presidente da Fundação Gulbenkian, Emílio Rui Vilar, que tinha a meu lado na mesa, se não queriam dizer "umas palavras". Com naturalidade, nenhum deles se mostrou disponível.
Estava traçado o meu destino para os próximos minutos. Senti-me como aqueles deputados a quem, segundo a história, são pedidas longas intervenções para dar tempo à chegada de "reforços" para constituir uma qualquer maioria de voto. Com rapidez, alinhei num papel meia-dúzia de "tirets" que iriam servir de esqueleto ao meu discurso: desde notas pessoais sobre a professora Berardinelli, algumas referências aos estudos de literatura portuguesa no Brasil, umas palavras sobre a cooperação entre as universidades e sei lá mais o quê, tudo o que na altura me veio à cabeça como "buchas" possíveis. Naquele espaço sem ar condicionado, o meu crescente suor dava-me a impressão que a temperatura estava a subir em flecha.
Com esperança de ganhar tempo, ouvia em fundo o Dr. Gomes da Costa que, no microfone, prosseguia, de forma que me parecia incomodamente rápida, no seu discurso. Até que, a certo ponto, o ouço dizer: "... e, para terminar, permitam-me que...". Pronto! Era a minha "deixa". E comecei a ajeitar a cadeira para sair da tribuna, para iniciar a arenga que o destino me obrigava a fazer. Logo se veria como saía...
E foi então, nesse instante, que vi surgir ao fundo, caminhando em passo apressado desde a porta de entrada do Real Gabinete em direção a nós, a figura diligente do Luís Ferreira dos Santos, o imprescindível colaborador do nosso serviço do protocolo, trazendo nas mãos a caixa vermelho "bordeaux" com a grã-cruz de Santiago de Espada. Estava consumado o milagre, logo a mim, que nunca tinha ansiado por uma benfazeja aparição de um santo... E estava salva a honra do convento!
Aqui fica a historieta do mais longo discurso que nunca pronunciei.
15 comentários:
E ainda se diz que não há milagres. Este foi do Arcanjo Gabriel!
Boa Tarde
Sr. Embaixador,
Mais uma vez se comprova o quanto é português "de gema".
Afinal, nós portugueses, somos os "apelidados" de "profissionais" na arte do "desenrasca" e isto comprova-o.
Um Abraço!
Magnífica história! Podias ser o Durrell português...
a) Alcipe
Subscrevo respeitosamente as palavras de Sexa dirigidas a Vexa.
a) Feliciano da Mata
Eu, Durrell? O meu Quarteto é de cordas...
Gostei. Cheguei a ficar nervosa no avançar dos parágrafos. Nem quero imaginar uma situação dessas :D
Muito saborosa a história. Cumprimentos.
Com tal Quarteto - o de Durrell ou o de cordas - muito gostaria eu que Sexa Alcipe me informasse onde foi desencantar um mordomo como Feliciano da Mota, que além de distinguir as categorias - Sexa e Vexa - percebe de poesia, dá conselhos meteorológicos, enfim, uma pérola rara no momento.
Ambicionando eu, há muitos anos ter um buttler, diga-me prezado Alcipe, se esse Feliciano da Mata tem parentes que lhe queiram seguir as pegadas. Ficar-lhe -ia muito grata.
E eu a pensar que teria que recorrer a uma entrega simbólica...Durante ou após o discurso. Mas foi melhor assim.
S. Embaixador,
adorei a historia, ia pensando, tenho a certeza que ele se vai sair muito bem! Fiquei quase decepcionada de ver chegar o Santiago!
Atentamente
Angela
Foi, penso que posso dizê-lo, muito maior o susto do que o discurso...
Cara Dra. Helena Sacadura Cabral: É "Feliciano da Mata" e não "da Mota". Mas Alcipe melhor se pronunciará sobre os méritos desse seu servidor.
Ai, Dona Helena, tive que fugir para casa do Ronaldo! Fui dizer ao Senhor Alcipe que queria passar a ir servir a Senhora e aproveitei (tinha bebido uma garrafinha de Médoc...) para lhe dizer (ao Alcipe) o que verdadeiramente penso da poesia dele... Não sei se voltarei algum dia à Avenue Foch!
a) Feliciano da Mata, Pont de Sèvres, aguarda contacto
Ai Senhor Embaixador, o lapso só se explica porque ando a conter há já algum tempo, os meus instintos bélicos. Por isso, de Mata - nome aprazível ao momento que vivemos - passei a Mota. Mas tem razão um mordomo que se preze não deve chamar-se Mota, ao qual não vislumbro qualquer étimo de picardia!
Estimado Feliciano
Fugindo para casa do ícone Ronaldo, creio que não será fácil D. Dolores Aveiro deixá-lo sair.
Mas se não se sentir bem por causa de D. Irina, que nascida num país muito frio, tem por hábito livrar-se da roupa, não hesite. Poste aqui na casa do Senhor Embaixador o código da Nokia - 12345 - e eu vou imediatamente busca-lo.
E esteja tranquilo porque o seu antigo patrão, que estimo, quando o visitar na Av. Foch terá o maior prazer em o rever.
Será, digamos assim, um cúmplice encontro.
Credo, Sra. D. Helena, eu estou em casa do meu bom amigo Ronaldo Azenha de Noisiel, aqui em Pont de Sèvres, não conheço essa gente importante do futebol!
Em breve a contactarei. Bem haja!
Respeitosamente
a) Feliciano da Mata
Recebi do meu querido amigo Jorge Roza de Oliveira, atual embaixador português na Índia e, ao tempo, assessor diplomático do primeiro-ministro português um mail que, sem a devida autorização e descontada a vaidade pelas referências à escrita deste escriba, não resisto a transcrever:
"Se eu escrevesse como o meu amigo Francisco Seixas da Costa, contava a minha versão, que não é contraditória, mas é a do lado de fora, onde a primeira cabeça a rolar seria, com justeza, a minha. O largo frente ao Real Gabinete passou a ser uma memória de purgatório."
Meu caro Jorge: tudo acabou em bem. Você acabou por encontrar, em tempos que já nem são os do Gama, o caminho diplomático para a Índia.
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