Todos temos a clara consciência de que hoje se vive um momento singular no tocante à relação do presidente da República com o país. Se a personalidade de Marcelo Rebelo de Sousa já prenunciava que ele poderia vir a ser um presidente atípico, com fatores específicos de natureza conjuntural e o contraste com o seu antecessor a contribuirem para tal, julgo que ninguém previu o cenário que aí está: uma esmagadora maioria de portugueses, num juízo indiscutível de sociologia empírica, vive hoje satisfeita, em maior ou menor grau, com o chefe de Estado que as eleições determinaram. Sendo que essa maioria, visivelmente, é bem superior aos votos que o elegeram, só podemos tirar uma conclusão óbvia: a ação do presidente conquistou muitos daqueles que nele não haviam votado.
Os que apreciam a sua ação dividem-se, no entanto, quanto à sua postura pública. Há os que acham que o presidente se está a expor demasiado, arriscando gerar um cansaço no país (é desses a bela frase “precisamos de férias do Marcelo!”) e os que entendem que “faz ele muito bem em aparecer!”, que acham lindamente a sua quase ubiquidade, os festivais de selfies e os banhos solidários, de água e multidão, nos rios fluviais - num modelo simultaneamente “royaliste” e a roçar o popular.
Entre outros ainda, há um grupo que aqui me interessa. É o dos que acham que Marcelo, com o seu obsessivo comportamento de proximidade, pode estar a tentar alimentar um projeto com laivos quase populistas, com inescapáveis consequências de natureza institucional. Tenho mesmo ouvido a algumas pessoas a ideia, mais sofisticada, de que o presidente está a fazer uma espécie de revisão “subliminar” da Constituição, fixando-se em terrenos tradicionalmente da área exclusiva do executivo, mandando “recados’ para a Assembleia da República que, na realidade, condicionam a atividade legislativa a montante da produção das leis. O facto de não recorrer ao Tribunal Constitucional também reforçaria a evidência dessa deriva. Marcelo estaria assim a ocupar o espaço político muito para além daquilo que o seu papel constitucional prevê. Para os cultores desta filosofia, isso introduziria uma inflexão nos equilibrios constitucionais e poderia mesmo determinar um redesenho do mapa político-partidário.
Será isto verdade? Para a semana continuaremos a conversa.