terça-feira, abril 30, 2019

O Brasil por cá


A minha interlocução com brasileiros, a propósito da situação política no seu país, tem vindo, nos últimos tempos, a passar muito por motoristas de táxis e, em particular, de Uber. Raramente sou eu a puxar a conversa, porque, as mais das vezes, eles próprios se encarregam, quando perguntados há quanto tempo por cá estão e de onde são originários no Brasil, de deixar claro o que pensam sobre como as coisas vão por lá. 

Em regra, são anti-Lula, mesmo que não necessariamente pró-Bolsonaro. Falam imenso da corrupção e da insegurança. Pela minha parte, nunca comento, mesmo quando estimulado a isso. Digo que o país é deles e explico que também não me agradaria ouvir estrangeiros a comentar criticamente o que por cá se passa. E ouço-os, desde logo a constatar que “os portugueses gostam mais do Lula do que os brasileiros”.

Hoje, tive uma surpresa: um motorista confessou-me que era militante do PC do B, um partido “irmão” do PT. Uma raridade! Falou-me, claramente emocionado, da recente entrevista de Lula à Folha de S. Paulo e ao El País. Elogiou Manuela d’Ávila, que foi a candidata a vice-presidente com Fernando Haddad, e confessou-me que gostaria de “regressar em breve a um Brasil sem Bolsonaro”. Não comentei, claro, mas acho que bem pode esperar sentado... no Uber!

segunda-feira, abril 29, 2019

Conversa


Ela, nos sessenta e muitos, tinha uma cabeleira dourada standard e um ar bastante “bem”. Devia ter sido bem gira. Era ainda Nevogilde, no seu melhor. Nele, a cara dizia-me qualquer coisa, mas, confesso, que já tive melhores dias no reconhecimento facial de pessoas. Tinha uma boa década e meia a mais do que ela. 

Foi num bom restaurante do Porto, há umas horas. 

Eu jantava sozinho. Eles, um com o outro, na mesa ao lado. Cada um olhava o respetivo telefone. “Já viste o resultado em Espanha?”, perguntou ela. “Os vermelhos ficam!”. Sorri (interiormente), interrogando-me sobre se o fantasma da Pasionaria estaria mesmo a rejubilar com a recondução do “Ken da Barbie” na Moncloa.

Ele, grave, continuava a ponderar. A certo ponto, reagiu, meio displicente: “Deram cabo de tudo. Agora ainda há essa coisa do Vox!“. Deixou passar um instante e revelou: “Nunca acreditei no Fraga, sabes? Traiu o Franco”. 

A conversa começava a compor-se. Eu fingia que lia o editorial do Economist sobre a Hauwei. Mas estava curioso. De onde é que, afinal, eu conhecia aquela cara?

Mandei vir mais um Jameson, porque ando numa fase de trocar o “whisky” pelo “whiskey”, talvez como consequência colateral do “backstop” do Brexit! E foi então que ouvi, na boca dele, a frase definitiva: “Gostava era dos dias em que a Falange tinha sempre unanimidade nas Cortes. Belos tempos!”. E gargalhou, finalmente. Ela (pronto, era isso, era segundo casamento!) inquiriu: “Ias lá muito, nesse tempo, não ias?”. Não esperou a resposta, óbvia, e, olhando para o lado (que isto agora nunca se sabe quem é que anda por aí), baixando a voz, que era cava, como o estatuto social requeria, clarificou: “Para além do ano de 1975, claro! Passaste lá muito tempo, então”. Ele só fez um esgar, blasé e cúmplice, confirmatório, qualquer coisa entre o ELP e o MDLP. E o nome dele, caramba!, finalmente, emergiu, para derrota provisória do meu futuro Alzheimer. Mas não esperem que o diga!

Enquanto me levantava da mesa, tive o impulso (felizmente contido) de perguntar, para o lado: “Ia muito ao Pasapoga, nessa altura, não ia?” Mas travei-me. No Porto, por estes dias, ainda por cima depois do resultado de hoje na “pedreira” de Braga, ainda tenho de ter algum cuidado...

domingo, abril 28, 2019

CDS

O CDS foi sempre, por muito que alguns nunca o tenham entendido, um partido estruturante do nosso sistema democrático. Custa-me assim assistir ao estranho silêncio de um certo CDS, histórico e responsável, em face das derivas populistas e extremistas hoje feitas em seu nome.

Encontro


- Já não se lembra de mim?! Pudera! Com a vida que tem...

Era um homem pequeno, magro, de olhar penetrante, tenso, um sorriso que não era mais que um esgar. Tinha-se aproximado pela rua, aos zigzags, e agora, no passeio, travava-me o passo.

Estávamos no cruzamento da rua do Almada com a dos Clérigos, no Porto. Há uns anos.

Costumo ter boa memória visual, mas, por mais que me esforçasse, não me recordava dele. Podia ser que com o fluir da conversa...

- É natural que já se tenha esquecido de mim. Passou já tanto tempo. Mas eu não esqueço aquelas palavras simpáticas que, há anos, me dirigiu, sobre o meu trabalho. Ficaram-me para sempre.

Que teria eu dito? Continuava mudo, encurralado no passeio estreito, com os carros à disparada, a impedir um início de retirada. O meu esquecimento seria da idade? É que continuava sem me lembrar de nada. O que já me incomodava.

- Pois eu, depois de ter por lá andado - bons tempos! -, tive uma vida muito complicada. Traições, sabe? Não se pode confiar em ninguém.

Onde é que teria sido o "lá" onde ambos nos tínhamos, ao que parece, encontrado? Sem nomes, relatou invejas que o tinham prejudicado, perseguições de que fora vítima, uma carreira profissional arruinada. Até a família! Tudo tinha corrido mal. Estava no desemprego.

Por essa altura, eu tinha passado aquele limiar temporal em que já me não era possível, com decência, perguntar quem ele era, onde nos conhecêramos, o que realmente fazia ou fez. O discurso do homem, culto e rico na expressão, revelava-me alguém bem preparado, mas, igualmente, uma personalidade abalada, perturbada. Continuava a acreditar que, por uma qualquer referência que acabasse por surgir, ainda ia "agarrar" a origem da figura e ligá-la a uma circunstância que me fosse comum.

Informou-me que lhe aparecera uma oportunidade para dar aulas. Começava na semana seguinte. E, algo críptico, acrescentou:

- O problema vai ser aguentar até lá.

Crendo ter vislumbrado uma escapatória, peguei na palavra, porque até então não tivera espaço para qualquer deixa, e disse-lhe que, se essa oportunidade se abria, seria apenas uma questão de tempo até pôr a sua vida em ordem. E adiantei umas platitudes de sala de espera de médico, como "o mundo dá tantas voltas" ou "sabe-se lá o dia de amanhã" ou "vai ver que tudo acabará por correr bem".

Vi, com alívio, que o meu interlocutor concordava, assentindo com a cabeça.

- Tem toda a razão, disse. Mas há-de concordar que é dificil, como no meu caso, estar sem comer quase há 24 horas. Mas vou aguentar! Não se preocupe...

Aí, fraquejei. Levei a mão à carteira e preparava-me para tirar uma nota, quando ele reagiu:

- Não, não! Nem pense nisso! Não junte uma humilhação mais àquelas por que tenho passado. Nunca perdoaria que o meu amigo ficasse com uma má impressão de mim. Posso ter fome, mas tenho a minha dignidade e, em especial, quero conservar a minha imagem. Como lhe disse, nunca esqueci as suas palavras. Basta-me isso! Eu cá aguentarei...

A cena invertera-se. Ele estóico, eu a pedir-lhe que aceitasse, dada a situação em que estava, uma simples nota para aconchegar o estómago. Não tinha nada a ver com humilhação ou dignidade, disse-lhe. Eu tinha muito gosto...

A relutância do homem começou a esbater-se. Condescendente, lá cedeu:

- Bom, se o meu amigo quer mesmo fazer-me esse favor, eu posso aceitar. Mas com uma condição! Isso é imperativo! Sem ela, não aceito! O meu amigo vai dar-me o seu endereço, para eu lhe enviar, logo que receber o primeiro salário da escola, aquilo que agora faz o favor de adiantar-me. Tenha paciência! Isso não dispenso! Nem eu aceito esmolas nem o meu amigo, pessoa que muito admiro, alguma vez seria tentado a dar-mas. Eu conheço-o!

Concordei, claro, "flattered" e aliviado com afastamento da suspeita de que eu pudesse ousar dar-lhe uma esmola. E lá lhe avancei alguns euros, acompanhados de um cartão pessoal. Sei lá porquê, senti-me aliviado. Parecia que o homem me acabara de fazer um favor. Na verdade, eu estava grato por ter recuperado a minha "liberdade", saído daquela conversa tão intensa. E lá se foi ele, rua abaixo. Até hoje.

A pessoa que me acompanhava, silenciosa durante toda a cena, interveio, por fim: “Quem era?”. Ainda hoje recordo o seu olhar de espanto, ao ouvir o meu ainda aturdido “Sei lá!”.

sábado, abril 27, 2019

Laranjeira


Olhando para trás, dou comigo a pensar que devo ser cliente do Laranjeira, um dos mais seguros poisos gastronómicos de Viana do Castelo, vai para mais de seis décadas. Comecei a ir por lá almoçar em criança, com os meus pais, no verão, quando na antiga “casa de pasto” preponderava a figura do senhor Francisco, com a dona Maria a dirigir a cozinha. 

Ao longo dos anos, a casa evoluiu. E a ambição, felizmente, também. Da pequena sala e da pensão, a família passou a ter um hotel e, depois, a bela residencial Melo e Alvim, meu pouso preferido na cidade. O casal fundador - que, por décadas, continuei a rever na mesa ao fundo, à esquerda - deixou entretanto as rédeas ao filho José. Levei por ali dezenas de amigos, recomendei a casa a muitos mais. 

Com o José, desde há muito, estabeleci uma relação pessoal que fazia com que, mesmo numa passagem breve pela cidade, nunca deixasse de o visitar, ali naquele início da rua Manuel Espregueira, à saída da Praça. Era com evidente alegria que, à minha vista, ele disparava do fundo, da zona do balcão, naquele seu passo curto e estugado, com o sorriso a aflorar no bigode cada vez mais branco, para o nosso abraço sempre amigo.

Há uns anos, falou-me da doença. Que, a certa altura, se lhe pressentia na cara. Creio mesmo que me disse ter ido a uma consulta ao estrangeiro. Depois, recuperou e tudo parecia bem. Passei, há pouco tempo, por Viana e olhei para dentro do restaurante. Era a meio da tarde. Nem o José, nem sequer a simpática empregada Maria Eugénia, estavam à vista. Perdi assim a última oportunidade de encontrar o meu amigo José Laranjeira, que hoje desapareceu. Para mim, Viana, sem ele por ali, não será mais a mesma coisa.

Memória de uma noite


No dia 11 de março de 1975, houve uma tentativa de golpe de Estado militar em Portugal. Descontente com o curso da Revolução e inconformado com o seu afastamento do poder pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), em setembro do ano anterior, o general Spínola e alguns sequazes tentaram retomá-lo. Na sua ação, provocaram um morto e feridos. Constatado o malogro da intentona, Spínola fugiu para Espanha (iria depois para o Brasil), tendo alguns dos seus cúmplices sido presos.

Ao final da tarde desse dia, a cúpula do MFA reuniu no palácio de Belém com o presidente Costa Gomes, para avaliar o ocorrido. Houve quem achasse que isso não era suficiente. Alguns oficiais, entre os quais eu me encontrava, entenderam que era importante tirar reais consequências do estado de coisas, no seio das Forças Armadas, que tinha criado as condições para a execução do golpe. E, se bem o pensámos, melhor o fizemos: metemo-nos nos nossos carros, entrámos pelo palácio de Belém dentro, forçámos a interrupção da reunião e, manifestamente contra a sua vontade e tendo subliminarmente atrás de nós o peso de algumas unidades militares importantes, obrigámos Costa Gomes e as estruturas dirigentes do MFA a deslocarem-se para o edifício na calçada das Necessidades, onde hoje funciona o Instituto de Defesa Nacional. E assim aconteceu a Assembleia do 11 de março.

Há dias, foi lançado um livro que contém a transcrição completa do debate havido nessa tensa Assembleia, que durou mais de oito horas. Tive o gosto de ser convidado por Vasco Lourenço e Almada Contreiras para, na Associação 25 de Abril, fazer a apresentação do livro, que surgiu quase simultaneamente com um excelente documentário realizado por Jacinto Godinho para a RTP sobre essa histórica Assembleia. 

Porque, durante estes 44 anos, o que se passou realmente naquela reunião foi objeto de forte controvérsia, não obstante ela ter sido testemunhada por cerca de duas centenas de pessoas, a publicação da transcrição dos debates reveste-se da maior importância. 

Sumariando o que disse na apresentação do livro, julgo ficar claro que o qualificativo denegridor de “assembleia selvagem” colado a essa reunião, não tem a menor razão de ser, pelo que o livro ajuda a acabar de vez com três mitos.

O primeiro é da indisciplina. A reunião, não despida de emoção em alguns momentos, passou-se sob um permanente sentido de respeito hierárquico, desde logo garantido pela tutela do presidente da República e do primeiro-ministro. Ao longo dessas longas e tensas horas, como o texto testemunha, não houve o mais leve beliscar do respeito hierárquico e as interlocuções mantiveram-se no formalismo a que o ambiente de uma reunião militar obrigava.

O segundo diz respeito à questão das eleições para a Assembleia Constituinte, previstas para 25 de abril, isto é, pouco mais de um mês depois da Assembleia. A mitologia, adubada por alguns historiadores, aponta no sentido de ter sido Costa Gomes, num “hábil” fecho da reunião, que deu esse assunto como encerrado, para evitar que a Assembleia procedesse a um adiamento, assim incumprindo com o compromisso assumido pelo MFA no 25 de abril. Nada mais falso. Como o texto revela, não obstante terem surgido algumas vozes favoráveis ao adiamento, muitas mais se pronunciaram em favor da manutenção da data. É mesmo Rosa Coutinho quem adianta que seria uma “provocação” ao povo português não cumprir com a palavra dada.

Finalmente, um terceiro mito fica também, para sempre, arrumado: a questão dos fuzilamentos. Claro que houve quem alvitrasse que se deviam fuzilar os responsáveis pelo golpe criminoso dessa manhã (mas nenhuma dessas pessoas foi o coronel Varela Gomes, como erradamente consta de livros e abundantes artigos de imprensa). Houve, de facto, uma intervenção nesse sentido e foi lida uma proclamação, sob a mesma orientação, aprovada na unidade militar que havia sido bombardeada pelos sediciosos. Mas a rejeição esmagadora dessa ideia ficou, desde logo, bem patente. O texto traz-nos, a esse respeito, magníficas intervenções de Cabral e Silva, de Rosa Coutinho, de Sacramento Marques, de Costa Neves, do presidente Costa Gomes e de outros, afastando liminarmente essa irresponsável sugestão, garantindo contra ela o apoio esmagador da Assembleia. Devo dizer que esse é talvez um dos grande momentos da Assembleia do 11 de março, pela prevalência clara, no seu seio, de um sentimento humanista e muito português, como Ferreira Fernandes bem sublinha na sua crónica de hoje no “Diário de Notícias”, que pode ser lida aqui.

A Assembleia do 11 de março, com todas as suas decorrências, faz hoje parte integrante da História de Portugal. Tive grande orgulho em nela participar e ter mesmo nela feito uma intervenção - sendo, aliás, uma das muito escassas vozes de oficiais milicianos que alguma vez tomaram a palavra na dezena de Assembleias do MFA, realizadas entre dezembro de 1974 e setembro de 1975 (e estive presente em três). 

Não se pode entender a História sem contextualizarmos os factos. Não se pode olhar para os acontecimentos de uma época como se as coisas se estivessem a passar hoje, à luz do que agora sabemos e pensamos. Além disso, temos de nos ver a nós mesmos inseridos nessa época, no Portugal convulso e agitado desses dias, nesse caldeirão de esperança em que todos estávamos mergulhados. A Revolução era jovem e nós também.

Reflexão sobre a ingratidão

Um certo olhar sobre o 25 de abril, que sempre emerge por esta época, apoia-se na ideia de que existe um défice de reconhecimento, em especial por parte das novas gerações, dos benefícios que a ordem democrática trouxe aos portugueses. Para essa perspetiva, a liberdade de que desfrutamos surge hoje como um dado adquirido, sem que, no entanto, haja um reconhecimento explícito dos sacrifícios que foram necessários para, em 1974, nos libertarmos da ditadura. E, mais do que isso: sem que se assumam as incomensuráveis vantagens que o novo regime trouxe, face ao “tempo da outra senhora”.

Geracional e politicamente, sou tentado a simpatizar com este modo de ver as coisas e irrito-me com quem tende a desvalorizar o esforço e o risco de quem lutou pela liberdade, negativizando aquilo que ela nos trouxe. Mas, devo confessar, com realismo, que acho quase inevitável que, 45 anos depois da Revolução, quem a não viveu e não haja sofrido o autoritarismo do anterior estado de coisas não sinta um forte apelo a comemorá-la, com um entusiasmo militante. Algumas dessas pessoas, olhando para o paradigma político que hoje marca a generalidade da Europa, tenderão mesmo a considerar que o modelo de liberdades em que nos habituámos a viver mais não é do que uma coisa natural e, perdoe-se-me a ousadia, uma quase banalidade.

É injusto que assim pensem? Claro que é, mas temos de entender que estão no seu pleno direito de assim pensarem, tanto mais que algumas delas também reagem negativamente ao que consideram ser uma certa apropriação da “memória de Abril” por setores políticos em que não se reveem. Ora a democracia é isto mesmo: o próprio direito a lê-la como cada um entenda.

Chamei o 25 de Abril a este texto, não para o discutir, mas pela similitude que nele podemos encontrar com a atitude de muita gente face à ideia europeia. É uma evidência que, também no modo como os cidadãos reagem perante a Europa, se pode dizer que há como que uma evidente “ingratidão”, quer nas críticas, quer mesmo em alguma indiferença.

Ora a Europa comunitária representou muito para os países integrantes. Foi vital para lançar e sustentar um sentido de cooperação em paz entre Estados saídos, pouco mais de uma década antes, de uma tragédia quase sem par. Depois, alavancou o seu desenvolvimento, garantindo-lhes tempos de prosperidade e de bem-estar, sob um modelo social magnífico. Essa mesma Europa fez partilhar as suas sinergias por outros países que não haviam estado no grupo fundador, apoiando também o fim de algumas ditaduras, mais tarde dando acolhimento a países vítimas da Guerra Fria - quer a Estados de vocação neutral, quer aos que se haviam libertado da tutela de Moscovo.

O que vemos hoje? A revolta perante o fracasso do modelo? Nada disso. A Europa comunitária, mais integrada e mais aprofundada, continua a ser um espaço quase ímpar de modelo de convivência de Estados, com instituições transparentes, regras funcionais que são um “benchmark” para o mundo, um espaço atrativo para os que o olham de fora. Embora longe do crescimento exponencial de outrora, a Europa mostra uma vitalidade económica muito significativa, alimenta uma moeda única de referência universal, é um notável espaço de bem-estar e liberdade. 

Tudo parece indicar que a Europa, afinal, acaba por ser uma vítima do seu próprio sucesso. O projeto foi “vendido” com um grau de expetativas que acabou, aqui ou ali, por se confrontar com uma realidade que ficou aquém do sonho. Porque combina duas legitimidades, a europeia e a nacional, assistimos a esta última se avantajar agora, crescentemente, sobre a primeira, à revelia da tendência anterior. A Europa passou a ser o “bode expiatório” das insuficiências nacionais, a fonte de todos os males de que os eleitos dos países se não querem sentir responsáveis. 

Muitos já não olham a Europa como fator de esperança, mas apenas como fonte de crescentes inseguranças – com muito mito e mentiras à mistura. Tal como no caso do 25 de abril, já poucos se lembram como era antes. E daí o crescimento do euroceticismo, das derivas populistas, o êxito do Brexit. É triste para muitos, mas é a vontade de outros. E isso é a democracia.

(Publicado no Jornal de Negócios em 26.04.19)

Aleluia!

“A revolução de 1974 desmantelou a ditadura salazarista, que durante décadas manteve os portugueses em menoridade cívica”, Rui Ramos, “Observador”

sexta-feira, abril 26, 2019

Reflexão sobre a ingratidão


Hoje, no Jornal de Negócios, pode ler o artigo que ali publico com o título em epígrafe. Aqui.

quinta-feira, abril 25, 2019

EPAM


45 anos


E se o "E depois do adeus", o Maia, o Carmo, o outro Marcelo, os tanques, a Grândola, as fardas, o Otelo, a Junta, o Spínola, o cravo, a Pide, o Zeca, a censura, o MFA, Caxias, o "povo unido", Peniche, o Cunhal, a tv a preto-e-branco e toda a parafernália de datas e de siglas pouco disserem aos que hoje passam "a salto" de Ryanair as fronteiras de Schengen, aos vidrados nos iPad, balanceantes dos iPod, logados nos iPhone, para quantos vão para hostels, sem saberem onde e o que foi Champigny, os bivaques da guerra colonial ou a triste sina nos paradeiros de exílio? 

É que cada vez é mais difícil fazê-los ouvir falar da "frigideira" do Tarrafal, da “estátua”, das patifarias do Botas de Santa Comba, de quem foi o Manuel Tiago ou onde eram as tipografias da clandestinidade. E que sabem eles do Copcon ou da 5ª Divisão, do MDLP ou do ELP, do MES ou a FEC-ML? Por quanto tempo será possível fazê-los escutar o Furtado ou o Fialho a lerem comunicados do "posto de comando", a Luísa Bastos a gritar o "Avante Camarada", a poética neorealista com a rima prenhe de "povo", a saltitante “Gaivota", o hino marcial da Intersindical a conclamar as "massas" p'ró que der e vier? E até quando os poderemos manter atentos às memórias do 11 de março ou da Constituinte, do padre Max ou do cónego Melo, das bombas da reação (que não passaria mas afinal passou) ou do PRP? 

Alguns dirão ser uma causa perdida, que a nossa compulsão comemorativa anual, de cabelos brancos e cravos vermelhos, mais não é do que a desesperada tentativa de nos agarrarmos ao tempo, como os republicanos que estiveram na Rotunda e não se calaram com essa história até ao dia em que o chanfalho do Gomes da Costa os pôs com triste dono, por quarenta anos.

E, no entanto, será que dizer “fascismo nunca mais” é uma palavra de ordem datada, nestes tempos de Trump, de Salvini, de Le Pen ou de Orbán? Alguém se atreve a dizer que lutar contra o racismo, a xenofobia, a discriminação das minorias é uma luta do passado? Será que, nestes dias de “fake news”, não tem sentido clamar por uma informação livre, pela verdade, sem censura nem distorção dos factos? Ao vermos a extrema-direita já ali na esquina, não será afinal uma boa razão para as novas gerações perceberem a importância de comemorarem uma data que continua a ser o glorioso contrário de tudo isso?

Eu, por mim, já optei. Orgulhosamente, de cravo ao peito, com uma força proporcional à irritação que isso provocará sempre noutros, direi: viva o 25 de abril, sempre!

25 de Abril, sempre!



quarta-feira, abril 24, 2019

45 anos


Este é o título do artigo que hoje publico no Jornal de Notícias e que pode ser lido aqui.

terça-feira, abril 23, 2019

António


- Então? Que achaste do tipo?

- Tem uma bela figura! E uma presença muito forte! 

O António Alves Martins tinha ido ao aeroporto, para assistir à chegada de Álvaro Cunhal, nesse dia 30 de abril de 1974. Achara graça testemunhar o fim do exílio do mítico líder comunista e, pelos vistos, vinha impressionado, descrevendo-me a cena de Cunhal sobre o carro de combate, naquele “remake” luso da chegada de Lenine à estação da Finlândia, em Petrogrado, que o emergente PCP nesse dia encenou com estilo. 

Tinha-me desafiado para ir com ele, mas, por uma qualquer razão, deixei-me ficar nos estúdios da RTP, onde, como militares da EPAM - a Escola Prática de Administração Militar, unidade que ocupara a televisão, na noite da Revolução - ambos passávamos então os dias e parte das noites.

O António não tinha grande simpatia pelo PCP. Mas não quis perder esse encontro com a História. Seria, aliás, fundador e um dos primeiros militantes do MES, o Movimento da Esquerda Socialista, onde me levou numa noite de maio, ainda na sede do edifício de esquina com a Calçada da Estrela, para me apresentar ao Afonso de Barros.

Tinhamo-nos conhecido na EPAM, em 1973. E ficámos logo amigos. Ligavam-nos alguns interesses comuns, ele ainda trazia Paris, onde estudara, no sangue e na memória afetiva recente. Fizemos juntos o 25 de abril (fomos, aliás, os dois únicos oficiais milicianos envolvidos na cena da detenção do comandante da unidade, nessa manhã). Eu, entretanto, saí para a Comissão de Extinção da PIDE e, depois, para a assessoria da Junta de Salvação Nacional. Voltámos a encontrar-nos, meses mais tarde, na 2ª Divisão do EMGFA, para onde fui chamado a trabalhar, por indicação dele. Na sequência do 11 de março, fizémos parte do escasso grupo que saiu do EMGFA para criar o SDCI. 

Depois, um dia desse ano politicamente inesquecível de 1975, a tropa acabou para nós. Eu entrei para as Necessidades e o António passou a dar aulas no então ISEG. Fomo-nos vendo mais a espaços, ele sempre com uma cordialidade carinhosa (que derretia as “piquenas”, terreno onde era imbatível!) e a sua simpatia transbordante e irradiante. Nos seus 50 anos, no antigo “Saddle Room”, fizemos uma festança memorável, creio que em 1996. Ainda nos abraçámos no jantar comemorativo dos 20 anos do fim do MES, no Pavilhão de Portugal, em 2001. Foi a última vez que o vi. Depois, por muito que eu tentasse, com outros amigos, numa consegui romper o mundo recolhido em que a depressão o mergulhou. 

O António Alves Martins morreu ontem. Hoje, terça-feira, pelas 18:30 h, o seu corpo estará na igreja de S. João de Deus. Vou lembrar-me muito do António, neste 25 de Abril.

segunda-feira, abril 22, 2019

11 de março


Hoje, pelas 18:00 horas, na Associação 25 de abril, vou fazer a apresentação do livro “A noite que mudou a Revolução de Abril”, que inclui a transcrição da Assembleia do Movimento das Forças Armadas, que reuniu na noite de 11 para 12 de março de 1975.

Coordenado por Carlos Contreiras e com a colaboração de Vasco Lourenço e Jacinto Godinho, o livro é publicado pelas Edições Colibri.

sábado, abril 20, 2019

A democratura


Na aproximação das eleições para o Parlamento Europeu, o Partido Popular Europeu suspendeu o Fidesz, o partido do líder húngaro, Viktor Orbán. embaraçado por algumas das suas práticas políticas. Para alguns, a Hungria é já hoje uma espécie de “democratura”, isto é, uma democracia com fortes laivos de ditadura. 

Deixo aqui uma história pessoal, envolvendo Orbán.

Estávamos em março de 1999. Como membro do governo português, eu acompanhava o presidente Jorge Sampaio em visita de Estado à Hungria, país candidato à União Europeia (entraria em 2004), a convite do seu homólogo Árpád Göncz. 

Por esses dias, estavam iminentes os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões iriam sobrevoar a Hungria, que ainda nesse ano iria integrar a NATO. 

Em Budapeste, eu havia acompanhado Jorge Sampaio num encontro com o já então primeiro-ministro Viktor Orbán. A conversa não foi fácil, quando, a pedido de Jorge Sampaio, fiz referência a alguns dos passos institucionais que a UE exigia à Hungria e que esta resista a fazer. Orbán mostrava-se frio, tenso, desagradável mesmo. A certa altura, a propósito dos possíveis bombardeamentos da NATO, falou da sua preocupação com as populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia. Eu disse perceber a sua inquietação, mas reagi ao seu bizarro conceito de “futuras populações NATO" com que qualificou esses sérvios, lembrando que a ditadura portuguesa tentara, sem o menor sucesso, utilizar um similar conceito extensivo para os habitantes das colónias africanas em guerra. Orbán lançou-me um olhar duro e a conversa, que já não estava amável, não melhorou.

À noite, Árpád Göncz ofereceu um jantar a Sampaio no majestoso parlamento húngaro. Sabia-se que as relações entre Göncz e Orbán não eram nada fáceis, por razões de política interna, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade e de história política. Por contraste com Orbán, o presidente era uma figura suave, um homem de bom senso, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. 

A certa altura, na varanda do parlamento, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:

- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?

Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:

- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.

Göncz morreu em 2015. Órban, depois de ter estado afastado do poder, é, de novo, desde 2010, primeiro-ministro. O que se tem passado nos últimos anos na Hungria, em matéria de abusos que infringem as liberdades fundamentais, as regras do Estado de direito e o respeito pela separação de poderes, envergonha a Europa.

(Artigo publicado em 18.4.19 no “Jornal Económico”)

sexta-feira, abril 19, 2019

Alfredo Cunha



Alfredo Cunha é um dos grandes foto-jornalistas portugueses. A sua coleção de retratos do 25 de abril, de que organizei em 2008 uma exposição em Brasília e que agora saiu num excelente livro, sob a égide da Câmara Municipal de Lisboa, é um momento alto da fotografia em Portugal.

Entretanto, tinha já ouvido falar deste outro livro, “Retratos”. Há dois dias, folheei-o na FNAC e, confesso com facilidade a vaidade, tive um grande gosto de me ver retratado por lá, numa imagem já com 17 anos. Não é todos os dias que uma figura como Alfredo Cunha nos fotografa.


Buraco 15


- Ele ainda trabalha convosco?

- Claro!

- E está por aí? 

- Há pouco estava. Passei pela secretária dele e tinha lá o casaco.

- Nesse caso, o tipo que está aqui ao pé de mim, no buraco 15, é um espantoso sósia dele...

- Mas tu estás onde?

- Estou no golfe...

- Espera aí! Já te ligo! 

                                                                  (***)

- És tu? Afinal tinhas razão! O tipo já tinha saído daqui há horas! Vai-me ouvir das boas!

- A tua empresa é que ainda cai no velho truque no casaco sobre as costas da cadeira...

Conversa telefónica verdadeira, há tempos, entre uma famosa personalidade empresarial portuguesa e um amigo, a propósito de um colaborador do primeiro, pago a peso de ouro, figura que o país bem conhece (até demais!). Os nomes omitem-se, por piedade pascal.

quinta-feira, abril 18, 2019

Pão de ló


Mas, afinal, o que é que faço? Saio depois da Tornada, na A8, e vou ali comprá-lo a Alfeizerão? Ou, já na A29, dou uma saltada a Ovar? Ou ainda, para o ter mais fresco, faço um pequeno desvio da A4 por Felgueiras e levo para Vila Real o pão de ló de Margaride? Qual é o melhor, digam lá?! É que já vou a caminho...

O inimigo...


Notre Dame europeia



Ao ver tombar a agulha de pedra da parte traseira da Notre-Dame de Paris, não consegui deixar de pensar na queda das Torres Gémeas, em Nova Iorque. Nos dois casos, as televisões tornaram-nos testemunhas oculares de tragédias que, porque profunda e sinceramente partilhadas, convocaram em nós fortes sentimentos coletivos. Se entre eles as diferenças são claras, a verdade é que em ambos se gerou um óbvio sentido de perda, que federou uma tristeza comum.

Em Nova Iorque, com a imensidão de vítimas, a tragédia tinha um sentido tão óbvio de barbárie que levou a que muitos milhões, por todo o mundo, acabassem por partilhar uma solidariedade com uma América que, em geral, não despertaria nessas pessoas uma automática sintonia. Ao assistir ao modo criminoso como tanta gente foi sacrificada no altar do extremismo religioso, houve como que um sobressalto ético, porque, mesmo nos mais agudos conflitos, não “vale tudo”. Não cheguei ao ponto de colocar a bandeira americana na lapela, mas confesso que, com amigos americanos, partilhei aquela perda como se fosse minha. O título nesse dia do parisiense “Le Monde” (“Somos todos americanos”) foi um grito genuíno, também meu.

Em Paris, tudo foi parecido e diferente. De início, olhei aquelas imagens com a ingenuidade de que seria um pequeno e controlável incêndio. Depois, à medida que o rubro das chamas ia subindo no écran, apossou-se de mim uma angústia crescente: “Espera aí! É a Notre-Dame que está a arder!”. E, de repente, lembrei-me de uma tarde de agosto, há mais de meio século, em que ali chegara, à boleia, pousara a mochila no chão e olhara, esmagado, para aquela igreja que conhecia “de toda a vida”. Estar ali significava muito para a minha geração. Lembrei-me também da emoção com que, há uma década, como embaixador em Paris, falei daquele altar a uma Notre-Dame apinhada de portugueses vindos de toda a França, tendo ao lado o cardeal arcebispo de Paris. Mas isso, afinal, não era nada, perante o facto de estarem ali a arder mais de 800 anos de uma História que, sendo francesa, era também europeia, isto é, igualmente nossa.

É com frequência nas dificuldades que se criam os mais fortes sentimentos comuns. Naquele dia, em Nova Iorque, tinha-me sentido cidadão de uma civilização de valores. Na segunda-feira, dei comigo a pensar que reconhecermo-nos como herdeiros de uma cultura e de um património desta monta é, afinal, o que verdadeiramente nos identifica como europeus.

(Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 17 de abril de 2019)

terça-feira, abril 16, 2019

Incêndios e riscos


Ao ver as imagens trágicas do incêndio na Notre-Dame, não pude deixar de me interrogar sobre as condições em que estarão alguns importantes edifícios do património português. Não tendo certezas sobre a qualidade da prevenção em Portugal, resta-me apenas alimentar a esperança de que esteja tudo bem.

Um dia, creio que em 1977, chegaram finalmente os detetores de incêndio ao palácio das Necessidades. Na repartição do MNE onde eu então trabalhava, a EEA (onde tratávamos das relações económicas com a África, Ásia e Oceania), entraram, no final de uma manhã, uns operários para montar os sistemas de deteção. Escadotes e outros aparatos invadiram a sala onde trabalhávamos cinco diplomatas e técnicos. A sua ação perturbava o nossa, pelo que me lembro de termos apressado a saída para o almoço, deixando-os a operar por lá.

No regresso, para nossa grande surpresa e algum escândalo, a sala estava sujíssima, com restos de material pelo chão e imenso pó sobre as nossas secretárias. Ficámos furiosos e era nesse estado que estávamos quando ele entrou na sala. 

Ele era um cavalheiro  - recordo-me bem! - que vestia um blazer azul, sob o qual se destacava uma estranha camisa de largos quadrados, à Alves Redol, como ironicamente eu sempre designava aquele traje, para desagrado dos meus amigos mais sensíveis à cultura do neo-realismo. Assente no peito de tal bizarra camisa, destacava-se uma berrante gravata vermelha, com nó largo, como à época se usava. Era, com certeza, o encarregado da obra.

O homem disse boa-tarde, avançou e, chegado a meio da sala, pôs-se a olhar para o teto, para o trabalho feito. Irritou-me fortemente que não tivesse notado a sujidade espalhada, fruto da incúria do seu pessoal. Não sei se o meu desagrado terá ido ao ponto de me fazer não retorquir à sua saudação, mas recordo-me de ter dito: “Acha isto bonito? Lindo serviço!”. 

O homem “fez de conta” e veio direito a mim, que estava sentado ao fundo, entre as duas janelas. E estendeu-me a mão, com um sorriso entre o esfíngico e o irónico.

- Como está? Trabalhei nesta sala vários anos. Já cá não vinha há algum tempo Qual é o nome do colega? - e disse o seu.

Devo ter ficado bem encavacado. Aquele não era o encarregado das obras, era o nosso embaixador numa capital africana, que, manifestamente, apenas tinha levantado os olhos para os novos detetores de incêndio pela curiosidade de ver aquilo pela primeira vez montado por ali. Deve ter percebido que o confundíramos com alguém responsável pelos trabalhos, mas não acusou o toque. Com naturalidade, falou depois com todos nós, querendo conhecer os interlocutores que por ali tinha, na correspondência escrita entre Lisboa e a sua embaixada. E, momentos depois, saiu.

Nunca tive a certeza se ele ouviu ou não a imensa gargalhada coletiva que todos demos, depois da  porta fechada atrás de si. Rimos de nós mesmos, claro.

segunda-feira, abril 15, 2019

Notre Âme !


Braga religiosa e moderna


Braga noturna


Café Vianna

O bibinha


A manifestação patriótica corria a preceito, naquele entusiasmo encenado com que o Estado Novo conseguia, numa sustentada coreografia, colocar o povo nas praças, para as fotografias que, no dia seguinte, "A Voz", o "Novidades", o "Diário da Manhã" (que a oposição citava sempre sem o til), mas também o inefável "Diário de Notícias" e o ritualista “O Século” trariam na primeira página, a testemunhar o "inquebrantável apoio de Portugal à política de Salazar". O qual, diga-se, raramente se dignava estar presente nesses exercícios, deixando ao "venerando Chefe de Estado", Américo Tomaz, a função de pobre catalisador das emoções orquestradas. "Paletes" de autocarros, pagas pelo erário, arrebanhavam patriotas ocasionais, de fato e gravata, através das cidades, vilas e aldeias, que eram dispensados dos empregos e tinham ração garantida para o dia, empunhando faixas que espelhavam a imensa diversidade dos "sindicatos" do regime.

Não fosse tudo isso ter, por detrás, uma longa e sinistra ditadura, a que se somou uma sangrenta guerra colonial, e tudo até poderia ter alguma graça, dando origem a comédias a preto-e-branco. Não sendo as coisas assim, não podendo Peponne discutir com don Camillo, o humor político disponível tinha de ser procurado nos ridículos do regime.

Nesse dia, naquela Braga de onde o efémero Gomes da Costa arrancara num famigerado Maio, concelebrava a mobilização das hostes António Santos da Cunha, uma avantajada figura da "situação", homem de voz tonitruante, que, durante anos, desempenhou as funções com que o regime controlava as coisas por lá: foi presidente da União Nacional, presidente da Câmara municipal e Governador civil. Já não recordo em qual destas duas últimas funções atuava na ocasião em que, como era hábito, ressoavam, nos discursos, saídos da velha varanda bracarense onde aquelas cenas sempre se oficiavam, as imaginativas referências ao Portugal "pluricontinental e pluriracial" ou "do Minho a Timor" (o que ali vinha geograficamente a jeito), as loas à sabedoria histórica do "senhor presidente do Conselho", no meio do gongorismo retórico com que o regime organizava a turbamulta tresmalhada, sob o olhar fardado dos polícias e os ouvidos, atentos e dispersos, dos "pides".

António Santos da Cunha atiçava, nessas horas, o patriotismo oficioso, com intervenções entre os vários discursos, feitas de menções às figuras presentes ou a quantos fosse importante lembrar na ocasião, apelando às hostes para, individual e nominalmente, os saudarem. O ausente Salazar e o chefe de Estado recolhiam, como era natural, o grosso da coluna dos aplausos e dos "vivas", mas os ministros e outros dignitários presentes recebiam também, à escala da sua importância, uma quota-parte dessas conclamações. Tudo era feito com conta e peso, medido o nível das personagens. Santos da Cunha, que era um hábil profissional desses instantes, sabia bem o que fazia, organizando sempre em pormenor essa estudada improvisação.

Um qualquer obscuro subsecretário de Estado (o Estado Novo, até certa altura, foi muito parcimonioso no uso da figura de "secretário de Estado"), vindo de Lisboa na comitiva do "venerando chefe de Estado", ter-lhe-á, a certo momento da manifestação, lançado um olhar inquisitivo, como que a demandar que o seu nome também fosse sufragado pelo vozeirão do edil e pelo subsequente eco da multidão. Santos da Cunha olhou-o, e não conseguindo atenuar o seu tom habitual, sossegou-o, à distância, com os "bês" do Norte, numa frase que ficou no anedotário da "situação":

- O "bibinha" de Vocência, senhor subsecretário de Estado, sai já a seguir, esteja descansado!

Braga não é apenas a cidade do país que deu origem a mais expressões populares, como ontem aqui notei. É também, mas admito que possa estar enganado na minha “contabilidade”, aquela em que me parece que a estatuária urbana mais preserva, pelas figuras que celebra, alguns peculiares tempos políticos, antes e depois do 25 de abril.

Há pouco, em Braga, ao passar pelo monumento a Santos da Cunha, lembrei-me desta historieta. Verdadeira, claro.

domingo, abril 14, 2019

O padre David


Há tempos, num telejornal, foi entrevistada uma certa figura. E logo me veio à memória uma história passada com ela.

Algures nos anos 80, eu havia sido encarregado, em funções que então desempenhava, de receber essa pessoa. Vinha, muito bem recomendada, colocar-me um problema "sério". Ele e outros empresários tinham iniciado a construção de um lar para estudantes oriundos de certos países estangeiros, os quais, por perderem frequentemente as bolsas de estudo oficiais, por falta de aproveitamento, necessitavam de garantir alojamento para prolongarem a sua estada no nosso país. Os motivos desses empreendedores estavam longe de ser apenas altruístas: todos os estudantes que pretendiam beneficiar eram familiares de responsáveis, políticos e administrativos, desses países, os quais tinham direta influência na concretização de negócios com as empresas dos amáveis empresários lusitanos. Estava-se a ver o "filme"...

À partida, a questão parecia-me cristalina. Cada um procede como quer e pode, financia quem lhe interessa. Só não percebia o que é que o MNE tinha a ver com isso. Mas o meu interlocutor não tardou a ir direto ao que vinha: os empresários achavam que já tinham feito a sua parte, lançando as bases para o tal empreendimento, pelo que "cabia agora ao Estado" entrar com a restante verba necessária, que deveria representar cerca de 75% do custo total, o que, recordo, era um valor bastante elevado.

Expliquei ao senhor - que me pareceu ser um devotado cultor do lema "menos Estado, melhor Estado e o que dele sobrar fica para nós" - que as verbas para finalidades similares já estavam afetadas e que, em especial, o caso que apresentava não se enquadrava minimamente nas prioridades de financiamento que tínhamos definido. O nosso objetivo era concentrar a ajudas nos estudantes com aproveitamento, não nos "calões" de boas famílias. Pelo que a nossa resposta tinha de ser, muito simplesmente, negativa.

O cavalheiro abespinhou-se. Os seus contactos anteriores tê-lo-iam feito presumir um resultado diferente para a diligência. E logo adiantou que, a confirmar-se uma resposta negativa da nossa parte, se veriam "obrigados" a ir para a imprensa, denunciando o "desinteresse" das entidades oficiais do setor. 

Aí, "passei-me", e disse-lhe mais: que não tinha gostado nada da forma pressionante como a questão me fora colocada, e que, desde logo lhe podia assegurar, o Estado não cederia àquilo que era claramente uma espécie de chantagem. Atenta a gravidade da "ameaça" mediática que fizera, ia transmitir superiormente, "para os devidos efeitos", o respetivo teor, pormenorizando no texto que ia elaborar, as reais finalidades do projeto e detalhando os interesses que estavam por detrás dele. E adiantei: "Sabe?, no mau sentido, o senhor fez-me recordar a história do padre David". O homem, que já estava furioso, ficou também perplexo.

E contei-lhe que, nos meus tempos de infância, recebiam-se, em minha casa, umas cartas angustiadas, tipo circular, assinadas pelo padre David, de Ruílhe e Aveleda, localidades perto de Braga. Invariavelmente, o sacerdote explicava que tinha iniciado a construção de casas para famílias pobres, que já tinha as fundações, mas que precisava de dinheiro para todo o resto da construção. Até aí tudo bem, porque era obra altamente meritória. Só que, no arrazoado argumentativo, o padre David adiantava que, se não contribuíssemos, o projeto não avançaria, pelo que a responsabilidade de um eventual insucesso ficava exclusivamente nas nossas mãos. Eu era criança e esta pressão pouco subliminar, que vinha embrulhada numa linguagem religiosa que prenunciava retaliações divinas para quem se mostrasse relutante a cooperar, impressionou-me então muito. E sempre me interroguei por que diabo havíamos nós de ficar com o odioso da obra incompleta, só porque o padre David haviam colocado o carro à frente dos bois. Com as melhores intenções do mundo, o qual, como é sabido, está cheio delas.

O nosso homem - em lugar de se sentir elogiado com a equiparação ao generoso padre... - ficou furioso, disse que se ia queixar de mim, saindo pela porta fora. Se o fez ou não, não sei. Nunca ninguém me disse nada, tendo eu cumprido a promessa de relatar, por escrito e com gozo, o episódio. Desde então, nunca mais o encontrei. Terão feito a obra?

Ontem, cumprindo um desejo há muito alimentado, fui a Ruílhe, ver a obra do Padre David, figura justamente venerada por lá. As tais casas para pobres ainda hoje lá estão, hoje um pouco descaraterizadas pelos novos proprietários, misturadas com outras - como se vê na imagem, onde surge o busto do empreendedor sacerdote. Finalmente - algum dia havia de ser - encontrei-me com a minha metáfora...

sábado, abril 13, 2019

Braga


Braga é uma cidade que está na origem de várias expressões. Creio que nenhuma outra localidade portuguesa terá tantas. Mas qual será a origem delas? Vejamos.

Ver Braga por um canudo”, isto é, acabar por perder as oportunidades, um pouco como “ficar a ver navios”. Parece ter origem no monóculo existente no Bom Jesus, através do qual se vê a cidade, mas à distância.

Ir abaixo de Braga”, que é como “ir à fava” ou ainda a lugar pior. Dever-se-á ao facto de, para uma zona então mais baixa do que o centro da cidade, escoarem no passado os lixos e dejetos urbanos, tornando empestado e desagradável o lugar.

É de Braga!”, diz-se de alguém que deixa as portas abertas atrás de si. A doutrina aqui divide-se. Há quem diga que tal se deve ao facto da cidade, contrariamente a outras, não ter tido nunca uma porta física na sua entrada principal, a Porta Nova, outros dizem ser uma expressão papal à chegada de um arcebispo a Roma.

Isso é mais velho do que a Sé de Braga!”, significa que é muito antigo, porque a sé, na cidade, é dos edifícios construídos há mais tempo.

Finalmente, o leitor já ouviu dizer “chove em Braga”? Não? Mas olhe que, embora não muito, está mesmo a chover em Braga!

Os contabilistas


Há estadistas e há contabilistas. Paulo Guedes, ministro da Fazenda do Brasil, parece estar a alimentar a ideia de vender algumas embaixadas daquele que ainda é considerado um dos mais prestigiados serviços diplomáticos do mundo. 

Não se trata de uma atitude inédita. Na história política portuguesa contemporânea, também tivemos algumas luminárias que pretenderam desfazer-se de alguns dos mais importantes edifícios que o Estado, desde há muito, possui. Passá-los “a patacos” reduziria pontualmente uns centésimos de dívida, mas privaria o país de um património dificilmente recuperável no futuro. Além de que faria com que o país perdesse definitivamente valores que só se reforçam com o tempo e cuja posse é um fator de prestígio a que só essas simplórias figuras não são sensíveis. 

Por uma sorte de que felizmente nos podemos felicitar, os prédios de Belgrave Square, da rue de Noisiel e um dos belos edifícios que Portugal possui em Roma não foram, numa certa fase, “à vida”. Até o próprio Palácio das Necessidades, segundo vim há tempos a saber, correu sérios riscos! 

Em tempos mais recentes, dois secretários do Estado (a que isto chegou) conseguiram mesmo o feito de delapidar algum património. Um deles conseguiu dar cabo do fantástico apartamento que existia no Dakota Building, em Nova Iorque. Outro, com toques de Torquemada, levou à prática, na Europa, algumas patifarias de idêntico jaez. Este último, um dia, na casa de um diplomata, olhou as estantes e perguntou: “para que é que você quer tanto livro?”. O nosso colega, amável, deu-lhe uma resposta educada. Foi pena. 

É isso: às vezes, lá pela nossa (no meu caso, antiga) casa, passam uns contabilistas, trevestidos de estadistas.

sexta-feira, abril 12, 2019

Mário Vilalva


Há algumas semanas, li nos jornais a notícia da nomeação de Mário Vilalva para dirigir a Apex Brasil, a agência de promoção económica brasileira. 

O Mário é um amigo de há muito. Os portugueses, país onde de tornou “one of us”, conhecem-no como uma dos mais brilhantes embaixadores que o Itamaraty por cá alguma vez colocou. Com a sua competência profissional e simpatia, o Mário e a Vânia conferiram uma centralidade rara à embaixada brasileira em Lisboa. Um dia, acabado o seu tempo, como por aqui assinalei, foram destacados para Berlim, um posto maior e prestigiante, em qualquer carreira diplomática.

Eu havia cruzado bastante o Mário Vilalva em Brasília, ao tempo em que ele dirigia o departamento de promoção comercial do Ministério das Relações Exteriores, num período que foi de grande dinamismo, que o levou a ser um “globetrotter” profissional, até com custos para a saúde. Dali saiu para a embaixada brasileira no Chile, com Lisboa como destino posterior de uma carreira brilhante.

Volto agora onde comecei. O Mário aceitou - e dificilmente haveria alguém tão bem qualificado para o fazer - dirigir a Apex, naquela que foi uma das raras nomeações consensuais do governo Bolsonaro. A imprensa brasileira foi unânime sobre o acerto dessa escolha. Mas, como diria Camões sobre a sina da bela Inês, afinal tratava-se de um “engano da alma, ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito”. Há dias, depois de apenas algumas escassas semanas de exercício de funções, o Mário foi afastado da Apex. Leiam este artigo da cada vez mais indispensável “Piauí” para perceber melhor o que se passou.

Caro Mário, sei que represento alguns dos seus muitos amigos portugueses ao enviar-lhe, por esta via, um abraço de ânimo e de muita admiração.

quinta-feira, abril 11, 2019

A toalha

Decidi que, nesse dia, a embaixada não faria (ainda) qualquer declaração à imprensa, que nos batia aos telefones. Não obstante a insistência de um canal de televisão, disse estar indisponível para ir em direto à sua edição da noite, como fizera, por duas vezes, em semanas anteriores, em outros canais. Não sabia (ainda) o que dizer. Era o dia seguinte ao pedido de ajuda de Portugal. Foi há oito anos.

É talvez cedo para se saber como os outros embaixadores portugueses, nas principais capitais, viveram essas dramáticas semanas. No meu caso, em Paris, acompanhava, dia após dia, as diligências que Lisboa ia anunciando, para tentar escapar ao pedido de ajuda externa. As coisas tinham, em absoluto, deixado de passar por nós: os contactos relevantes faziam-se entre os gabinetes dos chefes de governo. Por algum tempo, cabia-nos tentar explicar a posição oficial, alheios que tínhamos de ser à tensão política que se vivia em Lisboa – os dissídios em torno do PEC IV, com o Presidente da República pelo meio.

Com o passar dos dias, ficava claro que as coisas se aceleravam. Era o tempo da coreografia declinante de Portugal na mão das agências de notação, o crescente “downgrading” da nossa dívida soberana, o disparar do “spread” dos nossos “bonds” a 10 anos. Tudo isso, com angústia, eu acompanhava, pelas manhãs, ao abrir o Financial Times.

Nessas semanas, passara a ser chamado a falar a rádios e, um pouco menos, em televisões. Nunca antes, como embaixador em Paris, me fora dada tanta “atenção”, embora neste caso não pelas melhores razões. Sem dificuldade, publicava os artigos que quisesse na imprensa francesa. A minha “narrativa” era sempre a mesma: defesa dos índices favoráveis conhecidos, denúncia do “exagero” das avaliações das agências de rating, afirmação de que ainda era possível dispensar a ajuda externa. Era a diplomacia na hora, sem rede. Como dizem os americanos: “my country, right or wrong.”

A partir de certa altura, Lisboa, como fonte de instruções, foi-se evanescendo. Telefonava a colegas portugueses noutros postos e todos comungavam do mesmo desconhecimento. Para além das declarações públicas, nada mais transpirava. Os escassos responsáveis políticos portugueses que consegui contactar também já não sabiam como ajudar. Representar um país por pressentimento é muito difícil.

Por aqueles dias do fim, senti uma estranha solidão e, em especial, a angústia de não saber o que fazer (ou se devia fazer algo), como representante de Portugal junto de um dos mais importantes países do mundo. Alguém costuma dizer que não há boa política externa sem boa política interna. Quando esta última se fragiliza a nossa capacidade de interlocução desaparece, de um dia para o outro. Foi o caso.

Recordarei para sempre uma conversa com um alto responsável do Eliseu, que, tendo-me chamado, teve a sensibilidade de não me inquirir para além daquilo que ele sabia que eu podia dizer (e saber), mas que me deixou palavras de discreto conforto, sem, contudo, as fazer soar de forma paternalista.

Depois, a toalha caiu no ringue. E o discurso mudou. É assim a vida de um diplomata, em democracia.

quarta-feira, abril 10, 2019

A nortada


Creio que nunca como nos nossos dias falamos tanto do clima. Verdade seja que poucas vezes houve razões tão ponderosas para que isso sucedesse. A consciência de que a vontade dos céus, por milénios tida como imprevisível e decisiva, afinal pode ser modulada, para o bem ou para o mal, pelos comportamentos terrenos foi ganhando progressiva atenção entre nós.

Todos nos recordamos como, há uns anos, as reflexões sobre alterações climáticas, tituladas por alguns, eram objeto de troça e tidas como coisas de "maluquinhos". O decorrer dos tempos, se alargou a consciência nesse domínio, não sustentou, em absoluto, como se pode observar na atual atitude oficial americana e de outros atores marginais ao bom senso, uma mobilização internacional de vontades capaz de travar o percurso para um desastre que, afinal, parece bem anunciado. Mais do que isso: que é prenunciado à saciedade pela gravidade crescente nos fenómenos climáticos extremos que teimam em repetir-se, alguns em registo de tragédia. Ver a juventude, à escala global, consciente da necessidade de travar essa batalha é um motivo de esperança, mas a esperança ainda fica à porta de uma vontade coletiva capaz de se impor.

Por cá, o mínimo que pode dizer-se é que os portugueses andam "intrigados" com o seu clima. Já perceberam, pelo passado recente, que podem vir a ter de suportar meses seguidos de seca, com o "bom clima" a chamar os turistas mas a fazer desesperar os agricultores. É o "sol na eira e a chuva no nabal", no seu modelo mais contemporâneo. Como a memória climática é uma das coisas frágeis no consciente coletivo, os clamores de que "há sol a mais" ou de que "esta chuva nunca mais para" alternam na conversa, sem racional nem equilíbrio.

Já não vivemos, contudo, no tempo do senhor Anthímio de Azevedo, que nos dava bitaites televisivos, assentes numa leitura tendencial do que aí vinha, produzida pela observação feita pelos barcos no Atlântico e pelos expectáveis humores desse arredondado património de ventos, nuvens e chuva que é o nosso - sim, porque é "nosso" - anticiclone dos Açores. Os satélites permitem hoje prever, com maior certeza, se devemos sair com guarda-chuva ou se um sobretudo se recomenda. Em tese, só se molha quem quer.

Sei isso bem. Porém, às vezes ainda dou comigo a medir mal os sinais do tempo. E, ao não atentar devidamente nesses avisos, ao decidir avançar impetuosamente contra o vento, numa esquina noturna da vida, convoco os demónios do tempo e levo com uma nortada forte. É a vida ou, como diz o outro, quem anda à chuva molha-se.

terça-feira, abril 09, 2019

Europa e não só


Hoje, no suplemento especial sobre a Europa que a Sapo edita, está uma entrevista que dei a Isabel Tavares, que pode ser lida aqui.

segunda-feira, abril 08, 2019

Miguel Esteves Cardoso

                                       

É uma edição “pobre”, talvez para assim ser possível o livro ser vendido ao preço a que se apresenta. Divide-se em duas secções: comes e bebes. Recolhe as crónicas que Miguel Esteves Cardoso publicou no suplemento Fugas, do “Público”. É o tipo de volume para “ir lendo”, em muitos casos para recordar o que já tinha sido lido.

Conheço poucas pessoas a quem melhor se possa aplicar, com rigor, a expressão “epicurista” do que a Miguel Esteves Cardoso: alguém que tem um sábio usufruto dos prazeres, numa versão sintética do termo. Desde há anos que sigo a sua escrita (não o conheço pessoalmente), o magnífico uso que faz da língua portuguesa, o modo como olha a vida e sabe tratar os pormenores do quotidiano que a outros podem escapar. 

Imagino que aquilo que escreve possa ser irritante para alguns (às vezes, eu próprio também me irrito), surgir até um pouco pretensioso, mas acho fantástico o equilíbrio que quase sempre consegue obter numa escrita que combina uma óbvia erudição com a abordagem, mais ou menos feliz, de coisas frequentemente simples, que outros não teriam notado. Às vezes, pode ser visto como demasiado ligeiro, em outras envereda por terrenos que se podem tornar algo crípticos para leitores não iniciados. No saldo final, a qualidade da sua intervenção é quase sempre indiscutível. 

(Não é minha intenção trazer a terreiro de discussão os seus polémicos tempos de “O Independente” e de outras suas aventuras da época, porque as idades têm-se na altura própria.)

Miguel Esteves Cardoso é filho de uma senhora britânica, cujos genes parece estarem bem presentes no seu poder de observação distanciada, às vezes cruel, da realidade lusitana. O seu pai foi um quadro superior do Estado, que cheguei a encontrar em tramitações negociais no âmbito diplomático. Lembro-o como uma figura grande, muito interessante, inquieta, criativa, muito pouco burocrática para os padrões desses anos 70 do século passado. Miguel Esteves Cardoso é talvez a síntese dessas duas personalidades. Lê-lo é sempre um prazer.

Tarde do dia de Consoada