A cena passou-se num país com o qual as nossas relações bilaterais não estavam a ser fáceis, nos anos 80 do século passado.
Era sábado e o encarregado de negócios de Portugal, que chefiava a missão diplomática na ausência do embaixador, havia sido chamado de urgência pelo ministro dos Negócios Estrangeiros local.
A conversa começou tensa. O ministro colocou sobre a mesa uma carta, da qual saíam três notas de 100 dólares: "Esta carta ia ser enviada pelo vosso cônsul na cidade de X para a família, em Portugal. Contém dinheiro em "cash", o que vai contra todas as regras. Além do mais, pressupõe ser produto da obtenção de divisas estrangeiras por meios ilegais, porque, como é sabido, há neste país um controlo muito forte da circulação de moeda estrangeira e não temos registo do cônsul ter adquirido os dólares no banco central. Exigimos uma explicação urgente por parte da Embaixada."
O nosso diplomata foi apanhado de surpresa. De facto, era uma situação estranha mas, pensou, era importante falar primeiro com o cônsul e obter a sua versão do assunto. A posse de moeda estrangeira era muito vulgar no país, até porque os diplomatas eram pagos em dólares e havia serviços e aquisições locais que exigiam essas divisas. Já o seu envio por carta parecia muito imprudente. Mais para ganhar tempo do que por qualquer outra razão, inquiriu: "E esta carta ia pelo correio?".
Nesse instante, notou que o ministro hesitou um pouco, antes de esclarecer: "Não, ia na mala diplomática para Lisboa".
O nosso encarregado de negócios teve então um lampejo, recuperou o comando da conversa e retorquiu firmemente ao ministro: "A Embaixada está totalmente disponível para prestar todos os esclarecimentos sobre este assunto mas, antes que isso aconteça, as autoridades do seu país vão ter de explicar a razão pela qual violaram a nossa mala diplomática, contra todas as regras internacionais. E, ainda hoje, vou fazer chegar uma nota de protesto por este acto que, de forma ostensiva, infringe as regras da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas".
O ministro não estava à espera da resposta e foi apanhado de surpresa. Voltou à carga com a ideia da necessidade de obter uma posição sobre a questão dos dólares na carta, mas o encarregado de negócios foi definitivo: "Antes de obtermos, da vossa parte, uma explicação sobre a razão pela qual a nossa mala diplomática foi violada, não diremos rigorosamente nada sobre o seu conteúdo. Aliás, peço, formalmente e desde já, a devolução do resto da correspondência que seguia na mala diplomática, a maioria, aliás, de natureza oficial. Não sei se se dá conta que isto é de uma extrema gravidade, senhor ministro! Os senhores violaram a mala diplomática portuguesa! Isto pode vir a ser um escândalo!".
O interlocutor começou a ter consciência de que a sua posição abandonava um terreno confortável e mostrava-se já um tanto embaraçado. O nosso diplomata saiu da reunião entre o satisfeito e o preocupado, mas sem plena certeza sobre o que se seguiria.
No dia seguinte, o conteúdo da mala diplomática chegou, discretamente, à nossa Embaixada. A carta do cônsul vinha junta... sem os 300 dólares. O encarregado de negócios não chegara a mandar a nota de protesto, até porque, para o fazer, necessitava de uma autorização de Lisboa, que nem sequer obtivera. O "bluff" compensou, ou melhor, custou 300 dólares ao pobre cônsul. E o assunto morreu...
Cenas da vida diplomática, como diria o Lawrence Durrell.
Nota: há bem mais de quatro anos, publiquei esta história no blogue. Hoje, ao ler uma notícia no "Jornal de Negócios", lembrei-me dela.