domingo, julho 22, 2012

Comida e cultura

Por mais que, com alguma frequência, dela discorde, não deixo de ser leitor fiel de Clara Ferreira Alves, que tem uma escrita limpa, inteligente e em bom português, que já começa a rarear na nossa imprensa - a par com poucos, como Ferreira Fernandes, Vasco Pulido Valente, Miguel Esteves Cardoso e José Manuel dos Santos, este último até que a "Atual", do hebdomadário balsemónico, lhe tirou misteriosamente o espaço (*).

Na "Revista" do "Expresso" de ontem, Clara Ferreira Alves analisava a pobreza cultural dos nossos meios políticos e de imprensa. E, definitiva e tremendista como é do seu estilo, acabava o texto dizendo: "Como bem disse Vargas Llosa, em vez de discutirmos ideias discutimos comida. A gastronomia é uma nova filosofia. Ferran Adriá é o sucessor de Cervantes e Ortega y Gasset" (o "Expresso" colocou o Y em maiúscula, porque o revisor deve ter pensado que era a inicial de um outro apelido...).

Reconheço que, por vezes, as nossa imprensa exagera um pouco na exploração do tema gastronómico. Mas faço notar que ele não é, de forma alguma, incompatível com a cultura, como o António Mega Ferreira e eu tentámos provar, há uns tempos, numa divertida conversa com a Paula Moura Pinheiro, na "Câmara clara".

Nestas curtas férias, aliás, vou entreter-me a tratar um pouco de ambas. Da comida, no meu blogue "Ponto Come", onde tenciono ir dando despretensiosa conta de algumas experiências de "restauração" feitas pelo país. Da cultura, mano-a-mano com Isabel Pires de Lima, no final desta semana, charlando sobre a cultura portuguesa e da Europa, numa iniciativa integrada na Feira do Livro de Viana do Castelo.

(*) Em tempo: como bem lembra um comentador encartado, há também o Manuel António Pina

sábado, julho 21, 2012

Ora Eça!

"Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo", dizia Jacinto, encantado com a feliz descoberta da simplicidade. Lá estive hoje, em Tormes, a ver a mesa onde Eça/Jacinto comeu um dia o celebrado arroz que o reconciliou com as favas.

Para quem possa fazê-lo, recomendo vivamente uma visita à casa de Tormes, onde hoje está a Fundação Eça de Queiroz, perto de Baião, se possível acompanhada por uma leitura calma, no local, das páginas que, em "A cidade e as serras", o escritor dedicou à paisagem e ao ambiente rústico que o terá impressionado, há quase um século e meio. Eça ter-se-ia porventura indignado com muitas edificações de discutível gosto que hoje pontuam a serra, mas, mesmo assim, a vista permanece soberba. Dê-se também um salto à estação de Aregos/Tormes, onde já não pontifica o Pimentinha e onde o Silvério, pela certa, nos não esperará. E, por gratidão e respeito por quem nos proporcionou o prazer dessa escrita ímpar, não se esqueça de deixar uma flor na campa de Eça de Queirós, no pequeno cemitério de Santa Cruz do Douro.

Tenho um amigo que costuma dizer, com alguma sobranceria, que gostar de Eça de Queirós é uma das mais banais expressões culturais de qualquer português. Pode ser que assim seja, mas, nesse caso, eu vergo-me sem custo a "eça" banalidade.

(Este post é dedicado ao meu amigo e incomparável queirosiano Luis Santos Ferro)  

sexta-feira, julho 20, 2012

José Hermano Saraiva

José Hermano Saraiva, que acaba de desaparecer, foi um improvável ministro da Educação do último governo de Oliveira Salazar. Simples professor liceal, terá sido a sua fidelidade ao Estado Novo, aliada a uma inteligência viva e uma inegável capacidade de ação, que lhe assegurou a ascenção política. Ainda estou a ver a fotografia da tomada de posse, em Belém, ao lado de Américo Tomás, de fraque e calças de fantasia, em Agosto de 1968, na qual, recordo, surge também uma outra personalidade que há dias faleceu, embora num relativo silêncio mediático, Justino Mendes de Almeida.

Dias depois, Salazar cairia da cadeira de lona e, semanas mais tarde, os equilíbrios do regime fizeram com que Marcello Caetano confirmasse José Hermano Saraiva no cargo.

Não foi nada fácil a tarefa do ministro. Como ponto "alto" das questões que teve de gerir, recorde-se a "crise de Coimbra", em 1969. Quem viveu esse período lembra-se bem dele, ao lado do presidente Tomás, na inauguração do edifício das Matemáticas, em Coimbra, nesse tenso e verdadeiramente único momento em que Alberto Martins teve a coragem de pedir a palavra, em nome da academia, naquele que viria a ser o início de um dos maiores protestos de contestação universitária vividos em Portugal.

A agitação universitária propagou-se a Lisboa. No ISCSPU, José Hermano Saraiva decidiu não "homologar" a lista eleita da Associação académica, de cuja direção eu fazia parte (ver aqui um relato do nosso encontro com o ministro). Ficou claro que Marcello utilizou então Hermano Saraiva para afastar, do ISCSPU, o seu rival político Adriano Moreira, personalidade com a qual, à época, as lideranças académicas decidiram, taticamente, solidarizar-se. Isso veio a redundar numa invasão do Instituto pela "polícia de choque", chefiada pelo capitão Maltez, e pela dissolução dos órgãos legítimos da Associação, que passou a ser dirigida por uma complacente "comissão administrativa".

Com o tempo, Marcello Caetano substituiu Saraiva por Veiga Simão. No que me toca, devo dizer que a mudança não ajudou muito, porque não tive o ensejo de apreciar, em excesso, as credenciais, ditas liberais, do novo ministro: em 1972, como presidente eleito da Assembleia geral dos estudantes do ISCSPU, voltei a ver a minha escolha não "homologada" pelo novo ministro. Mas isso deve ser sina pessoal...

Usufruindo da oportunidade dada pela Democracia, José Hermano Saraiva viria a fazer escola como divulgador televisivo, e não só, da História pátria, confirmando a perceção de que a historiografia permanece como um dos poucos domínios culturais onde o pensamento conservador preserva uma certa notoriedade pública. A sua capacidade de "contador de História" era inegável e, embora muitos achem que isso foi muitas vezes feito em detrimento de algum rigor científico, a verdade é que ele terá contribuído para despertar o interesse pela História de Portugal - e esse será um importante serviço que o país, sem a menor dúvida, lhe ficou a dever.

Em tempo - Não notei, como devia ter feito, que José Hermano Saraiva foi embaixador "político" em Brasília, nos tempos que antecederam o 25 de abril.

Guimarães

No meio de um verão queirozionamente "de ananazes", estive presente em mais uma reunião do Conselho geral de "Guimarães 2012 - capital europeia da Cultura".

A meio do percurso temporal de execução, foi excelente poder constatar que o projeto vai de vento em popa, não obstante os constrangimentos provocados por algumas surpresas (ou não) financeiras, graças a uma equipa motivada e serena na gestão do projeto.

Vale a pena andar por Guimarães por estes dias, assistir à dinâmica no comércio provocada pelo eventos, atentar na surpresa positiva provocada em quem visita a cidade, muitas vezes vindo de muito longe. É muito interessante cruzarmo-nos nas ruas com animadores, em inesperados eventos, poder usufruir da multiplicidade e diversidade das ofertas culturais existentes e, "last but not least", gozar da cozinha minhota que ali se pratica.

Fico com a sensação de que Guimarães deu uma bela lição a muitos - e talvez seja essa a razão que motiva o estranho silêncio de alguns plumitivos que, "em condições normais de pressão e temperatura", já normalmente se teriam dedicado a desdenhar em algo que corre bem. Não embandeiremos em arco: ainda restam seis meses. Por ora, Guimarães vai dando música à crise...

quinta-feira, julho 19, 2012

Os diplomatas e as viagens

No passado domingo, no 4º Festival das Artes da Fundação Inês de Castro, em Coimbra, falou-se de "As viagens dos Portugueses cinco séculos depois: Ásia, Brasil, África". Por lá estive, com os meus colegas Marcello Mathias e António Monteiro, recordando experiências e refletindo sobre o que aprendemos nas andanças profissionais da nossa vida. Cada um tinha a sua perspetiva, mas todos tínhamos a consciência de ser os herdeiros coletivos das viagens que outros, em nome de Portugal, fizeram no passado, deixando marcas diversas pelo mundo.

O tema das viagens está, no imaginário público, ligado à vida dos diplomatas. O António Monteiro deixou, aliás, uma história, curiosa e verdadeira, ligada aos concursos de entrada para o Ministério dos negócios estrangeiros. Como ele recordou, na "prova de apresentação" - uma conversa informal entre o candidato e os membros do júri, chefiados pelo secretário-geral, que sempre tem lugar -, havia sempre uma recomendação que era feita aos putativos diplomatas: nunca se "descaírem", dizendo que uma das principais razões que motivava a sua candidatura era o gosto pelas viagens. Uma frase dessas, porque indiciadora de uma motivação lúdica, podia arruinar em definitivo a prova. 

quarta-feira, julho 18, 2012

Viana

Viana do Castelo é uma terra à qual o nome de Pedro Homem de Melo ficará para sempre ligado, quanto mais não seja pelo poema que Amália cantou e que a imagem mostra.

O poeta tinha uma casa em Cabanas, perto de Afife, a poucos quilómetros da cidade. Hoje, ao passar na praça da República, lembrei-me de uma história que o meu pai, testemunha presencial, sempre contava.

Pedro Homem de Melo passeava-se com amigos. Do outro lado da praça surgiu José "Rancheiro", uma figura conhecida da cidade, senhor de palavra fácil e de uma voz forte. E que, alto e bom som, fez ecoar pela praça o seguinte poema (cito de cor), que está num azulejo em Cabanas, junto à casa de Homem de Melo:

"O rio passa em Cabanas
por entre fragas
tão lindo
que mesmo que vá descendo
parece que vai subindo".

Acabada a curta declamação, José "Rancheiro" acrescentou, também bem alto: "Belo poema!". Ao que Pedro Homem de Melo, visivelmente lisonjeado, reagiu, com aquela voz rouca que tinha: "... dito por Vossa Excelência!".

Não deixava de ser bonito um certo cavalheirismo de um outro Portugal. 

terça-feira, julho 17, 2012

Governantes e governantes

Um dia, bem à minha custa, aprendi que, em Portugal, há dois tipos de membros do governo: os que já foram deputados e os que, emergindo da sociedade civil, sendo ou não militantes de partidos, nunca antes se sentaram nas cadeiras parlamentares. E há um mundo de diferenças entre eles.

Embora o não digam alto, os partidos políticos veem com maus olhos a escolha, pelos primeiros-ministros, de personalidades oriundas da "sociedade civil" que, por virtude de alguma especialização temática, são alcandoradas a postos governamentais.

Pode haver alguma razão nesta atitude: quem se dedica à política tem a legítima expetativa de, subindo o seu partido ao poder, poder ter direito a ocupar lugares no executivo. Ver uns "paraquedistas" ultrapassarem-nos, não deve agradar a quem se considera ungido pelo voto popular e, por essa razão, tem muito mais legitimidade para governar. Só que os partidos não desconhecem que a inclusão desse tipo de personalidades acaba por credibilizar os próprios governos, porque lhes garante uma componente técnica valiosa, com reflexos na sua imagem junto da opinião pública. No outro prato da balança, verifica-se que a falta de "calo" político faz com que, muitas vezes, essas figuras de perfil demasiado técnico, quando sujeitas às tensões da vida política e, muito em particular, às exigências da vida parlamentar, possam derrapar. Foi o que me aconteceu, um dia, em 1996.

Eu tinha ido à Assembleia da República para defender já não sei bem o quê, na minha qualidade de secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Ao meu lado, na bancada do governo, estava o então secretário de Estado dos Assuntos parlamentares, António Costa.

Fiz a apresentação que tinha preparado e, como é de regra, preparei-me para a chuva de perguntas que se seguiria. Fui tomando notas, para lhes responder em conjunto, no final. 

Uma das intervenções, de um deputado da oposição, tinha apenas uma questão irrelevante, que era um evidente pretexto para um discurso doutrinário de oposição geral, e a meu ver gratuita, à política europeia do governo. Logo que acabou de falar, saiu da sala, sem sequer aguardar pela minha resposta. Fiquei furioso.

No meu período de respostas, deixei para o fim a resposta a esse deputado, que tinha muito baixa estatura. Fazendo-me surpreendido, disse: "Relativamente à questão colocada pelo senhor deputado Fulano - que eu não consigo vislumbrar atrás da sua bancada... - devo dizer que fiquei perplexo, porque não me ficou claro o que pretendia com a sua intervenção. Por isso, e porque considero que não há nada de concreto a que eu possa responder, talvez seja legítimo concluir que o que disse se insere na preparação de curriculum para aquilo que consta serem as suas ambições a futuro líder parlamentar do seu partido".

Mal eu tinha acabado a frase e logo o António Costa, ao meu lado, me disse, alarmado: "No que você se foi meter! Agora, isto vai ser bonito". E foi. Ouvi logo um bruá vindo do lado do grupo parlamentar do partido do tal orador, um evidente mal-estar nas caras dos deputados do partido que apoiava o governo e, de imediato, um pedido urgente de palavra de um deputado ao presidente da Assembleia para "defesa da honra da bancada".

Fui "desancado" pelo deputado interpelante, que considerou que só podia levar à conta da minha "falta de experiência política" o que acabara de passar-se e que exigia um pedido de desculpas da minha parte. O António Costa perguntou-me o que eu queria fazer. Respondi-lhe que desculpa não pedia, porque considerava que a saída da sala do deputado que eu criticara era um gesto deselegante e que a minha reação fora motivada por isso mesmo. Com a sua maior experiência, o António Costa levantou-se, tomou a palavra e deu, com grande habilidade, a volta à situação, deitando "água na fervura", para meu grande sossego.

Na realidade, eu cometera uma grande imprudência e fora vítima do meu estatuto. A imprudência foi, desde logo, ter-me imiscuído na vida interna de um outro partido, o que fiquei a saber não ser aceitável pelas regras parlamentares consuetudinárias. Mas também aprendi que o facto de nunca antes ter sido deputado me criava uma posição "diminuída" perante os eleitos presentes na sala. Eu não era "um deles", pelo que estava longe de poder ter um estatuto para poder enveredar por graçolas que, se porventura fossem ditas por antigos colegas, teriam sido muito melhor toleradas.

domingo, julho 15, 2012

Credenciais

A apresentação de credenciais por um embaixador, junto de um chefe de Estado estrangeiro, é um ato protocolar que difere bastante de país para país, dependendo dos usos e costumes locais, muitos deles marcados pela respetiva história. Em muitos casos, o próprio chefe de Estado introduz alterações às práticas nacionais, de acordo com a sua personalidade.

Foi o que sucedeu, aqui em França, com o presidente Nicolas Sarkozy. Sendo Paris uma das capitais do mundo com maior número de embaixadas, e tendo alguns países a propensão para não deixarem os seus embaixadores "aquecer o lugar", o ritmo de apresentação de credenciais acaba por ser muito intenso. Ao que me dizem, o presidente Jacques Chirac, não obstante o peso desse formalismo, fazia questão de falar uns minutos com cada novo embaixador, deixando perguntas ou comentários que tocavam as relações bilaterais. O seu sucessor, Nicolas Sarkozy, tinha optado por um fórmula mais "leve". Cerca de 20 novos embaixadores eram colocados, lado-a-lado, numa sala e o presidente cumprimentava-os sucessivamente, recebendo as respetivas cartas credenciais, as quais, de imediato, passava para o lado, para um seu colaborador, deslocando-se para frente do diplomata seguinte, até concluir a vintena de cumprimentos.  Nessa altura, os embaixadores eram chamados a colocar-se numa espécie de semi-círculo em frente ao presidente o qual, por escassos minutos, trocava com alguns deles umas palavras de circunstância. Alguns colegas entenderam sempre este método demasiado expedito e menos conforme com a dignidade da sua função como representantes de um Estado estrangeiro. Outros compreendiam que, com uma agenda política carregada e com as relações diretas entre os chefes de Estado e de governo a processarem-se, nos dias de hoje, muitas vezes diretamente, era pouco sensato estar a pedir ao chefe de Estado francês um maior dispêndio de tempo. 

Em 2009, na minha apresentação de credenciais, testemunhei uma cena curiosa. Eu tinha acabado de saudar o presidente francês, deixando-lhe, em brevíssimos segundos, uma palavra de identificação de quem eu era e entregando-lhe as minhas cartas credenciais. Nicolas Sarkozy passara, de imediato, para o diplomata seguinte, uma senhora, representante de um país africano, que procedeu de forma idêntica à minha. Ou quase. Mal o presidente havia seguido para a cena com outro embaixador, senti um toque no braço, por parte da minha colega, que, em voz baixa e preocupada, me disse: "Que acha que devo fazer? Esqueci-me de entregar ao presidente as minhas cartas credenciais!", mostrando-me, com uma cara algo angustiada, o seu envelope. A cena fora tão rápida que o presidente nem notara que, além do cumprimento, não recebera o documento que oficializava a qualidade da embaixadora. Sosseguei-a: "Não se preocupe, dá isso depois a alguém...". E tudo se resolveu, acabada a cerimónia, com a discreta entrega do envelope ao chefe do protocolo, que sorriu, divertido, perante o relato do sucedido.

Noutros quadrantes, as cenas podem ter outro sabor e picante, como, há anos, contei aqui

sábado, julho 14, 2012

Elvas

Como já aqui se referiu, Elvas e as suas fortificações passaram, há poucos dias, a ser considerado pela UNESCO como "património mundial".

Para quem não conheça (e deve conhecer!) aquela que é uma belíssima cidade de Portugal, aqui fica esta "visita" virtual, que as novas tecnologias permitem.

sexta-feira, julho 13, 2012

Hoje

(Aqui se prova como um equívoco se pode criar, com facilidade. Nem a bela foto é minha, nem sei se isto é ou não Serralves. Só sei que vou viajar de avião, de férias. Foi tudo quanto pretendi "dizer". Pelos comentários registados, falhei, claro!)

Grandes e pequenos

Ontem, durante um almoço de trabalho de alguns embaixadores europeus com a nova presidente da Comissão de Negócios estrangeiros da Assembleia Nacional francesa, Elisabeth Guigou, falou-se, como recorrentemente acontece, do conceito de "países grandes" e de "países pequenos" na União Europeia, a propósito da necessidade da gestão europeia não aparecer dominada por qualquer "diretório" auto-assumido, que afaste alguns das decisões que a todos importam.

O meu colega luxemburguês, George Santer, com a sua proverbial boa disposição, que muita falta vai fazer em Paris, quando, daqui a dias, trocar esta capital por Berlim, citava alguém, dizendo que, em rigor, só há dois "grandes" países na Europa: "La Grande-Bretagne et le Grand-Duché du Luxembourg..."

quinta-feira, julho 12, 2012

Cova da Moura

Há semanas, em Lisboa, no Chiado, em frente à FNAC, entrei num táxi (para responder a um comentador: é verdade que ando muito de táxi, em Portugal) e disse ao motorista: "Leve-me à Cova da Moura, por favor". O homem voltou-se, olhou para mim com um ar de surpresa, e retorquiu: "À Cova da Moura? Desculpe, mas para aí não vou!".

Por um segundo, fiquei suspenso. O equívoco desfez-se quando percebi que o homem tinha entendido que o meu pretendido destino era um subúrbio com o mesmo nome, para lá de Benfica, na periferia de Lisboa, tido como um lugar altamente perigoso. Mas, afinal, eu estava a referir-me ao palácio da Cova da Moura, perto da avenida Infante Santo.

O palácio da Cova da Moura é um belo edifício, prémio Valmor em 1921, construído para moradia, que passou, em data que não posso precisar, a ter serventia pública. Em 1961, era aí que se instalava o Ministério da Defesa Nacional e nele teve então lugar a tentativa de "pronunciamento" titulada pelo general Botelho Moniz, que pretendeu, em abril desse ano, substituir Salazar na chefia do governo. Em 25 de abril de 1974, o espaço acolhia o Secretariado-geral da Defesa Nacional e foi escolhido para sede da Junta de Salvação Nacional. Como militar, nomeado assessor de um dos membros dessa estrutura de liderança formal da Revolução, aí estive por alguns meses, até que a Junta desapareceu, na ressaca do chamado "28 de setembro", nesses tempos "quentes". Mais tarde, julgo que alojou a Direção-geral da Administração Pública, para, nos anos 90, passar a ser a sede da Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus. Aí trabalhei - bem! -  por seis anos e meio e por aí ainda tenho muitos e bons amigos - principalmente amigas, porque há muito mais mulheres que homens a tratar das questões europeias, vá-se lá saber porquê.

quarta-feira, julho 11, 2012

Contraditório

Por via de uma vida que me obriga regularmente, com algum gosto, a expor e debater ideias, fiz e continuo a fazer parte de painéis de um imensidão de colóquios, congressos, seminários ou coisas similares. Às vezes bem interessantes, outras vezes nem por isso.

Nesse mundo, há uma figura pública portuguesa, que já teve experiência governativa, com quem me cruzo, desde há muito. Temos visões políticas opostas, olhamos as coisas de maneira muito diferente, raramente coincidimos no modo de abordar as questões. Conhecemo-nos há mais de quase quatro décadas, temos modos muitos diversos de estar na vida e, por coisas que não vêm para o caso, cultivamos ambos uma espécie de insustentável tendência para nos "picarmos" em público. No meu caso, entretenho-me a procurar descortinar pontos que considero fracos no seu argumentário para depois os tentar desmontar de uma forma crítica, quase sempre sem me poupar a alguma ironia. No caso dele, julgo que é pior: quase nem precisa de ouvir o que eu digo para logo me atacar. Andamos neste "jogo" há anos.

Um dia, numa universidade americana, onde ambos éramos convidados para uma conferência, estávamos colocados em painéis diferentes, o que reduzia as hipóteses de um aberto conflito público. Eu fiz a minha apresentação, após o que a pessoa que dirigia a sessão abriu o debate ao auditório. Desse mesmo auditório, levantou-se então esse meu contraditor de estimação que, com ênfase, deixou logo claro que não concordava com o essencial do que eu tinha afirmado e com a perspetiva que eu defendera. E partiu daí para uma longa intervenção, disfarçada em pergunta, na qual, devo confessar, eu reconhecia muito pouco daquilo que tinha dito. Nada que fosse novo.

A meio dessa intervenção, sempre bem articulada e até com alguma graça, um colega de painel, creio que francês, disse-me ao ouvido: "Não percebo por que razão ele o está a contestar!". Divertido, respondi: "Não se surpreenda. É sempre assim. Já é uma velha história, entre nós". Ao que ele esclareceu: "Não é isso! É que ele não ouviu nada do que você disse. Ele entrou na sala no momento em que você estava precisamente a terminar a sua intervenção..."

Ontem, em Lisboa, cruzámo-nos, por acaso, e, naturalmente, saudámo-nos com a cordialidade conflitual que nos torna eternos adversários de estimação. 

Agostinho

Nestes tempos de "Tour de France", o jornal "Le Parisien" tem trazido memórias das canções criadas em torno da maior prova ciclística do mundo.

Sou hoje surpreendido com uma canção dedicada, em 1989, a Joaquim Agostinho, cinco anos depois da sua trágica morte em 10 de Maio de 1984. Confesso que nunca tinha ouvido falar da existência dessa canção. É uma bela homenagem de uma França que nunca esqueceu os dois terceiros lugares conseguidos no "Tour" (entre oito classificações nos dez primeiros lugares em vários outros anos) e a sua famosa chegada vitoriosa ao Alpe-d'Huez, em cuja famosa curva 14 está um marco a lembrar o feito.

Ouçam aqui a canção.

A crise

Comentário de um taxista lisboeta, esta manhã, notando que o trânsito está mais fácil:

"Os que não sentem a crise estão de férias e, por isso, não andam de carro na cidade. Os que estão em crise também deixaram de andar de carro e nem têm dinheiro para fazer férias".

É capaz de ter razão...

segunda-feira, julho 09, 2012

O poder dos intérpretes

É uma rua "paralela" à Étoile: rue de Presbourg. Passei por lá há pouco. O tempo de um semáforo deu-me oportunidade de atentar na explicação de ser o antigo nome de Bratislava, hoje capital da Eslováquia.

Fui a Bratislava, pela primeira vez, como turista, ainda no tempo da Checoslováquia. Em termos de beleza, não se compara com Praga, sendo embora uma cidade bastante agradável para viver, ao que me dizem. Um choque de modernidade provocado no tempo do "socialismo real" construiu-lhe, no centro, uma sinistra ponte sobre o Danúbio, que rasgou o coração histórico da cidade, arrasando um bairro judaico, destruindo uma zona que deve ter tido uma apreciável unidade arquitetónica. Agora que ando pela UNESCO, refletindo nos atentados ao património, tenho pensado nisso com alguma frequência.

Desde então, fui várias vezes a Bratislava, em especial quando vivi em Viena. Em fins de semana, ia por lá à ópera, para simples passeio ou para a feira de antiguidades. E tenho hoje por lá amigos eslovacos.

Um dia, creio que 1997, recebi em Lisboa o presidente do parlamento eslovaco, Ivan Gašparovič. O país era então candidato à União Europeia, mas o governo autoritário eslovaco, chefiado por Vladimir Mečiar, era execrado pelos países comunitários, sensíveis aos justos protestos da oposição sobre as limitações colocadas à liberdade da comunicação social, às inaceitáveis pressões sobre a vida política e aos métodos brutais da sua polícia. 

No encontro que tive com o meu interlocutor eslovaco, para além de expressar a simpatia de princípio de Portugal pelas aspirações europeias do país, repeti, com a necessária delicadeza de termos que a ocasião e o seu elevado estatuto impunham, as preocupações que o estado de coisas que se vivia no país a todos criavam - e neste "todos" incluía outros países candidatos à adesão, que viam o seu processo sofrer atrasos pela singularidade negativa do exemplo eslovaco.

A conversa foi feita por intermédio de um intérprete eslovaco, que insistiu em que eu falasse português. À medida que ia ouvindo a versão que lhe era dada das minhas palavras, notei que o meu interlocutor ia ficando nervoso, crispado e muito tenso. O que eu dizia, porém, bem como a forma que eu utilizava para o dizer, não justificava minimamente esse estado de espírito. Na resposta que deu à minha intervenção, contestou, com alguma rudeza, o que acabara de ouvir. E, de forma um tanto inopinada, apressou o fim da reunião. Fiquei algo perplexo, mas não liguei muito ao assunto.

Dias mais tarde, ao nosso embaixador em Viena, acreditado em Bratislava, chegou um protesto informal das autoridades eslovacas, reclamando pelo modo, tido por menos cordial, como eu tinha interpelado a segunda figura da hierarquia do país. Lembro-me de ter reagido e, já não sei bem como, fiz chegar a minha maior estranheza pela ocorrência ao meu contraparte no governo eslovaco, que conhecera brevemente numa reunião em Bruxelas. Se há tradição que a diplomacia portuguesa tem é a preservação do diálogo e uma constante prática de cordialidade, mesmo em momentos mais tensos, onde a firmeza se impõe. Eu sabia muito bem o que tinha dito, e que diria de novo, e se havia alguém que era culpado de qualquer "misunderstanding" essa pessoa era o intérprete eslovaco. Mas como me era possível provar isto?

Pouco tempo depois, percebi que algo tinha mudado: recebi um convite oficial para me deslocar à Eslováquia. Era uma visita com algum risco, porque não se podia permitir que fosse aproveitada pelo regime como traduzindo um gesto que indiciasse qualquer fragilização da atitude crítica que prevalecia na Europa sobre o comportamento do regime. Insisti, por isso, em encontrar os principais partidos políticos de oposição, tendo visitado a sede de um deles e recebido dois outros responsáveis oposicionistas no hotel. Esta é uma prática que nunca agrada aos nossos anfitriões oficiais, mas coloquei-a como condição sine qua non para a realização da visita. E, para evitar declarações isoladas à imprensa, proferi uma conferência sobre o processo de integração num instituto dedicado aos estudos europeus, com uma surpreendente enchente e um animado debate.

Apenas um pormenor mais. No programa da visita, pedi que fosse incluído um encontro com o interlocutor que encontrara em Lisboa, para lhe apresentar cumprimentos. Não tinha disponibilidade, como eu imaginava. Ivan Gašparovič é hoje presidente da República da Eslováquia.

Várias vezes me tenho interrogado sobre a quantidade de confusões políticas que os intérpretes já devem ter provocado por esse mundo fora.

domingo, julho 08, 2012

Eclipse

Há qualquer coisa de trágico na saída de cena de um político que, de um dia para o outro, deixa de ser uma personagem mediática constante para se tornar uma figura distante do centro das atenções públicas. 

François Bayrou, o político centrista que, nas eleições presidenciais de 2007, havia obtido o apoio de quase um quinto do eleitorado francês, viu-se relegado para uma percentagem bem mais modesta no escrutínio deste ano e, após isso, não conseguiu sequer ser eleito deputado. Devo dizer que achei de uma nostálgica sobriedade a sua frase de que, agora, iria "visitar o país do silêncio".

Noutro registo, mais humorístico, um antigo ministro, Renaud Donnedieu de Varbes, deixou, há uns anos, uma excelente frase qualificadora desse apagar das luzes da ribalta (que deixo em francês, para melhor ser apreciada): "Passer de ministre à promeneur de son chien suppose un énorme travail sur soi-même".

sábado, julho 07, 2012

O senhor comandante

Aquelas longas noites do Hotel Trópico, em Luanda, nos primeiros meses de 1982, há precisamente 30 anos, eram uma verdadeira "seca". Eu sofria o choque cultural de uma mudança direta, do meu posto na organizada Noruega. para a então caótica Angola. Por quatro longos e não saudosos meses, por ali me instalei.

Pelas salas do Trópico, fui conhecendo alguns portugueses, grande parte deles expatriados por razões empresariais, por semanas ou meses, que atenuavam a sua solidão na leitura de alguns jornais (que não se vendiam localmente mas que me chegavam por mala diplomática, e que frequentemente lhes emprestava), na conversa, a ouvir música ou em jogos de cartas.

Um dos bons amigos que fiz nesse ambiente, e que infelizmente perdi de vista desde então, era o Hélder Martins, funcionário da STAR. Numa dessas noites, o Hélder convenceu-me a alinhar numa mesa de sueca que se criara entre alguns clientes. Sou um completo incapaz para toda e qualquer espécie de jogos de cartas, mas, até à sueca, consigo "chegar". A única atividade lúdica alternativa - o visionamento, numa minúscula televisão a preto-e-branco, de alguns jogos do campeonato do mundo de futebol, que então estava a ter lugar em Espanha - tinha-se esgotado, pelo que me decidi a entrar na jogataina. 

No grupo, havia um homem jovial, falador, bem mais velho do que nós, de S. João da Madeira, que representava uma empresa de calçado. A meio do jogo, ao pedir uma rodada de bebidas, vi que, apontando-me, disse para o empregado: "Ali para o senhor comandante, é uma cerveja". De facto, eu tinha falado, instantes antes, que me apetecia uma "Cuca", mas estranhei ser qualificado de "senhor comandante". Olhei para o Hélder Martins, que sabia perfeitamente que eu era diplomata na nossa Embaixada, mas não notei na cara dele nenhuma surpresa pelo título com que eu tinha sido brindado. Optei por não reagir.

No dia seguinte, no almoço no Trópico, perguntei ao Hélder: "Você não achou estranho que aquele tipo, ontem, me tivesse tratado por 'senhor comandante'?". O Hélder retorquiu-me que não. É que, sabendo que eu tinha feito o serviço militar, por conversas anteriores entre nós, presumiu que, nessa qualidade, eu tivesse servido na Marinha, pelo que havia deduzido que o homem de S. João da Madeira sabia disso. Expliquei-lhe que a minha "arma" era bem mais prosaica, que eu havia sido oficial de "administração militar" no Exército, onde a minha especialidade era "ação psicológica", que nunca havia sido sequer "comandante de pelotão". Rimo-nos um bom bocado, pelo que permanecia o mistério do "comandante". Mas ambos esquecemos o assunto.

Passou, talvez, um mês. Por diversas razões, deixei de frequentar as salas de estar do Trópico com tanta frequência. Uma noite, voltei a ver por lá o homem de S. João da Madeira, que me saudou, ao longe. No dia seguinte, o Hélder Martins foi abordado por ele. Queria que me "metesse uma cunha": não tendo confiança comigo para me colocar, pessoalmente, o pedido, aproveitava a intercessão do Hélder, para, junto de mim, conseguir um "OK" para o voo da TAP para Lisboa, no dia seguinte. O avião estava cheio e "aquele seu amigo pode ajudar, como ninguém, a desenrascar-me o lugar", disse ele. 

O Hélder surpreendeu-se. "Mas porquê ele?", perguntou. "Então, sendo ele comandante da TAP, deve poder conseguir isso, não?". "Comandante da TAP? Ele é diplomata na Embaixada de Portugal!", reagiu o Hélder. "Ai é?! É que, há dias, vi-o à conversa com uma hospedeira da TAP, no bar do hotel, e fiquei com a ideia que ele fazia parte da tripulação, que sempre ali se aloja...". 

("For the record", que fique claro que a minha conversa com a hospedeira foi casual e bem inocente, não me recordando de ter assumido nenhuma particular familiariedade com a "colega"...)

Ainda há dias, ao viajar na TAP e ao ouvir, pelo altifalante do avião, aquela "rassurante" mensagem com que os comandantes se dignam saudar os passageiros, a meio do voo, veio-me à memória que também "fui", um dia, "comandante" da companhia.

Maria José

A Maria José partiu há um ano, mas parece que nos faz falta há já muito mais tempo.

Tanto mar?

Leio no "Expresso" de hoje:

"Pedro Adão e Silva e João Catarino lançaram o livro "Tanto Mar", que partiu de um conjunto de textos publicados no Expresso".

Vou ler este livro com atenção, até porque, sei lá bem porquê!, o título diz-me, de forma interrogativa, qualquer coisa:



Imprensa de referência

Vi, há pouco, na televisão, um velho amigo de Portugal e dos portugueses, Xanana Gusmão, por ocasião de um ato eleitoral em Timor-Leste.

Recordei-me que, outubro de 1999, Xanana fez uma triunfal visita a Portugal. Com o país ainda a viver a ressaca da emoção que o mobilizara pela causa timorense, a chegada do líder histórico da Fretilin provocou uma onda de grande mobilização. A simpatia e a genuinidade de Xanana Gusmão fizeram o resto.

Nessa ocasião, foi-me pedido que, em representação do governo, me fosse despedir dele ao aeroporto militar de Figo Maduro, de onde partiria para um qualquer destino europeu, num Falcon na nossa Força Aérea. Vi que estava exausto, embora feliz, com o fraternal acolhimento que Portugal lhe proporcionara, em que pudera testemunhar a profunda sensibilização do povo português para com a questão timorense.

Saímos a pé do edifício da base aérea para o avião, situado a umas escassas centenas de metros. Ao longe, dei-me conta que um grupo de jornalistas, colocados junto a uma barreira, fazia sinais e gritava "Xanana", desejosos de poder obter as últimas palavras do visitante.

O avião estava já atrasado, o "slot" para a descolagem podia perder-se, como nos tinha dito o comandante da base. A primeira reação de Xanana foi dizer: "Vou já para o avião". Olhei os jornalistas e, apontando-os ao líder timorense, fui de opinião contrária: "Eu acho que devia dar-lhes umas curtas palavras. A imprensa portuguesa tem sido fantástica consigo". Xanana hesitou um segundo, mas acabou por seguir a minha sugestão, com os militares das Força Aérea, junto dos quais eu ficara, pouco contentes com o meu alvitre.

No dia seguinte, um bem informado jornal escrevia mais ou menos isto: "Contrariando abertamente a vontade do secretário de Estado português que o acompanhava, que procurou, sem êxito, dissuadi-lo de ir falar com os jornalistas, Xanana fez questão de prestar declarações à imprensa portuguesa".

Enfim, é o que se chama imprensa "de referência".

sexta-feira, julho 06, 2012

Os tempos e os poderes

Não há poder sem simbologia. E alguns sinais são, eles mesmos, a própria e deliberada expressão desse mesmo poder. 

Há uns anos, em fins de julho de 1999, teve lugar em Serajevo, na Bósnia-Herzegovina, a reunião de lançamento do Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu. Com as delegações instaladas, o presidente finlandês, Martti Ahtisaari, que dirigia a sessão, iniciava o seu discurso de introdução quando a sala foi surpreendida pela entrada isolada do presidente Bill Clinton. O líder americano dirigia-se, pausadamente, para o lugar que, na grande mesa quadrada, estava destinado aos EUA. Pelo caminho, foi-se entretendo a parar junto de alguns dentre os 50 presidentes e chefes de governos, saudando-os, deixando-lhes uma breve palavra e, com a acumulação desses gestos, foi provocando um movimento de imparável agitação, que concentrou as atenções coletivas. A face de Ahtisaari mostrava um evidente e compreensível desagrado com a estudada coreografia de Clinton, a ponto de se ver obrigado a suspender o seu discurso, até que o presidente americano finalmente sossegasse na sua cadeira. Ao nosso lado, o presidente francês, Jacques Chirac, assistia à cena e rumorava onomatopeias de óbvio incómodo pelo comportamento de alguém que habilmente "roubara a cena" aos poderes europeus presentes. 

Lembrei-me disto, esta manhã, durante a reunião dos "Amigos do Povo Sírio", que decorreu aqui em Paris. O presidente François Hollande, que abriu a reunião, iniciara já o seu discurso perante delegações de 102 países quando surgiu, mas neste caso num passo mais natural e sem quaisquer pausas, uma figura que se dirigiu ao centro de uma sala onde já não havia ninguém de pé, salvo o chefe de Estado francês, no seu podium. O discurso não foi interrompido, mas todos os olhares divergiram, por instantes, para a secretária de Estado Hillary Clinton, que logo se sentou, sem gestos dilatórios. A entrada da representante dos EUA ficou bem registada. E gravada ficou também, no subconsciente coletivo, esta evidente coreografia temporal dos poderes de facto neste mundo.

quinta-feira, julho 05, 2012

A pasta

"Ils sont venus, ils sont tous là", fazia lembrar a canção de Aznavour. Era a conferência de Londres sobre a ex-Jugoslávia, nesse mês de agosto de 1992, vai para 20 anos. À volta de uma longa mesa no Carlton Tower, na Cadogan Place, estavam lá quase todos: Slobodan Milošević, o sérvio, Franjo Tudjman, o croata, Alija Izetbegović, o bósnio muçulmano, além de muitos outros, do Montenegro à Macedónia. Pelo corredores, sem assento na sala, a cabeleira desalinhada do sérvio bósnio Radovan Karadžić desdobrava-se em conciliábulos.

Era a Jugoslávia em desagregação que por ali se discutia, por esses dias. Ninguém pode falar pelos sentimentos dos outros. O meu, porém, sentado na delegação portuguesa, era o de que não havia nenhuns inocentes entre essas figuras, todas elas envolvidas numa luta de ódios ressentidos, de vinganças históricas, de contabilidades mórbidas, procurando desforra de massacres passados, naquilo a que um jornal britânico chamou, à época, as "batalhas dos avós". As potências exteriores relevantes faziam então ares de neutrais, de apaziguadores, mas, por detrás, iam alimentando ou contemporizando com aqueles que davam garantias de contribuírem para um saldo final favorável aos seus interesses estratégicos. 

O mundo multilateral de então, pelas mãos de Boutros-Boutros Gali, secretário-geral da ONU, e de John Major, o primeiro-ministro britânico, que co-presidiam à reunião, tentava o impossível para gerar um acordo formal que pudesse atenuar o que já estava a ferro-e-fogo. 

A conferência de Londres foi um fracasso. À hora de almoço, fomos todos para o Queen Elisabeth II Center, onde os britânicos tentavam compensar com um sofrível "catering" o parco resultado de umas conversas de onde cada um julgava ter saído com uma fatia da vitória. 

Eram mesas redondas, com "self-service". Coloquei a minha pasta junto de uma cadeira e fui servir-me. Quando voltei, encontrei o lugar ocupado pelo então diretor político do MNE, o embaixador Pedro Ribeiro de Menezes. Fui sentar-me noutra mesa. 

Passou uma boa meia hora, comigo à conversa com um parceiro do lado. Num certo momento, vi passar junto à minha mesa, em andar apressado, dois ou três figurantes com ar de seguranças, com um tom que se adivinhava de algum alarme. Pensei que fossem atenuar um qualquer conflito, num ambiente político de tensão que só o podia estimular. Vi-os parar junto da mesa onde estava o Pedro, cuja figura alta se destacou então, para, segundos depois, se afastar com alguma pressa. À volta desse lugar, fez-se então um grande vazio de gente, uma espécie de cordão "sanitário". Do meio desse espaço de segurança, nas mãos de um dos polícias, que vejo eu emergir? A minha velha pasta, rotunda de papeladas, lenta e prudentemente transportada ao longo da sala. 

Comprada nos anos 60 na rua da Trindade, no Porto, era do tipo "de engenheiro" e tinha-me custado o suor das minhas economias. Estava sempre atulhada de livros e jornais, pesava "toneladas", como as minhas costas aprenderam. Já fora preta, agora estava descolorada, os seus fechos eram pré-históricos, mas tinha (e tem) um ar decadente ainda hoje me encanta. 

No silêncio que entretanto se criara, quebrado por sussurros, eu disse alto: "It's mine! That briefcase is mine!". Dezenas de olhos voltaram-se então para mim, para o imprudente e descuidado proprietário de uma pasta velha, abandonada junto de uma mesa, no meio de uma reunião internacional onde toda a segurança era pouca. Pensava-se que seria uma bomba e, afinal, foi apenas um momento de grande embaraço para mim. 

quarta-feira, julho 04, 2012

Verbos irregulares

Há quase dez anos, naquela que era então uma das duas livraria inglesas de Viena (hoje mesmo, em visita à cidade, constatei que já só há uma), deparei com um livro intitulado "Portuguese irregular verbs". A minha vocação para um conhecimento renascentista do mundo não vai ao ponto de me levar a interessar por um tema tão gramaticalmente especializado como aquele que o título indiciava. Mas a curiosidade de bibliófilo foi mais forte. E dou hoje graças por isso.

O livro, de Alexander McCall Smith, relata a divertida história (conto de memória) de um filólogo alemão que, com um zelo notável, terá empreendido um estudo aprofundado sobre tão escaldante temática. Segundo a novela, a edição do livro, em que espelhava toda a sua sabedoria sobre o assunto, não se terá consagrado num êxito estrondoso, se nisso descontarmos a satisfação proporcionada ao seu próprio ego. O estimado professor lusófilo, de que o volume acolhe pormenores deliciosos de um seminário passado na Índia, e cujo grande objetivo de vida era ser agraciado com uma condecoração portuguesa, tinha como hábito procurar saber do destino das escassas centenas de exemplares da edição da sua obra-prima. E, por essa razão, sempre que se deslocava a casa de um amigo, procurava perceber o destaque dado nas respetivas estantes ao seu monumental e volumoso estudo, incontroverso referencial sobre a matéria no mundo gramatical da lusofonia. E algumas desilusões teve. Complexa foi, porém, a sua relação com uma namorada, dentista de profissão, a quem, como era natural, oferecera um exemplar dedicado da sua tão estimada obra. O único imponderável foi, contudo, o facto desse laço afetivo se ter entretanto desfeito, com a antiga afeição, por vingança, a decidir destinar a utilização do volume como apoio para o seu pé, no arranque de dentes aos clientes.

Será que este divertido livro teve uma edição portuguesa? Não faço a mínima ideia.

terça-feira, julho 03, 2012

A palavra

Portugal esteve hoje presente naquele que é o "exame" anual a que a sua economia é sujeita no âmbito da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), uma instituição multilateral sedeada em Paris, que acolhe 34 Estados democráticos e economias de mercado. Portugal foi um dos países fundadores da OCDE, em 1948, embora o seu regime estivesse então longe de ser democrático, mas a realpolitik da "guerra fria" a isso ajudou. Pode dizer-se, com algum rigor, que foi no âmbito da OCDE que algumas elites político-diplomáticas portugueses iniciaram a sua aculturação àquilo que viria, muitos anos mais tarde, a abrir o nosso caminho a uma integração plena nas instituições europeias.

Por alguns anos, estive ligado à representação governamental portuguesa nas reuniões da OCDE. Foi numa dessas presenças que aconteceu a historieta seguinte.

Naquele mês de abril de 1998, Portugal presidia à reunião ministerial anual da organização. No primeiro dia, o ministro das Finanças, Sousa Franco, dirigira a sessão plenária. Eu ainda lhe "dei uma mão" na respetiva sessão, chegado a meio do dia de Estrasburgo, onde estivera retido por uma qualquer razão.

No dia seguinte, coube a Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, para além de conduzir a sessão, orientar o almoço de trabalho, o qual é sempre é feito em torno de um determinado tema. Dessa vez, tratava-se do AMI (Acordo Multilateral de Investimentos), uma questão muito controversa, tão divisiva que o acordo nunca chegou a passar do papel. Sobre o assunto, eu havia mantido uma polémica, nas páginas do "Diário Económico", com o saudoso deputado do PCP, João Amaral. Creio que nunca lhe cheguei a dizer que vim a concluir que, afinal, era ele, e não eu, quem tinha razão sobre o assunto.

O ministro português dos Negócios Estrangeiros assumiu o seu lugar na presidência dos trabalhos, no topo da grande mesa quadrada, tendo ao seu lado o secretário-geral da organização e, à sua frente, a sofrível refeição que os integrantes têm direito a digerir durante essa hora e meia de exercício declaratório. Como me competia, como secretário de Estado, sentei-me na cadeira da nossa delegação, por detrás da placa onde se lia o nome de Portugal. Claro está que, com o ministro português a assumir a presidência da sessão, eu me preparei para um almoço bem calmo.

Jaime Gama abriu a sessão, fazendo uma intervenção inicial, aí com uns cinco minutos, com que introduziu o debate. Conhecendo antecipadamente o texto, devo confessar que quase me não dei ao cuidado de atentar no que dizia o meu ministro. Só quando, em certo momento, "ouvi" um silêncio, é que percebi que terminara.

O presidente português da sessão convidou então os representantes dos Estados membros da OCDE a intervirem sobre o tema. Como muitas vezes acontece neste tipo de reuniões, nomeadamente em questões muito polémicas, há uma certa inércia em "abrir as hostilidades", com uma retração em fazer a primeira intervenção. E foi isso que aconteceu: ninguém se inscreveu para falar - o que é feito colocando, ao alto, a placa com o nome do respetivo país. Jaime Gama insistiu e voltou a anunciar que estavam abertas as inscrições. O silêncio manteve-se.

Foi então que o presidente da sessão olhou para mim, sentado num lugar bem distante do seu e disse, com a maior naturalidade do mundo: "Dou a palavra a Portugal". 

Julguei ter ouvido mal, mas, ao detetar um leve sorriso na cara de Jaime Gama, percebi que ele me "passara a bola", como forma de resolver o súbito impasse. E, um tanto atrapalhado, lá avancei com um: "Thank you, mr. chairman. Mr. chairman, the Portuguese delegation considers that..." - e já nem sei bem o que disse, durante três ou quatro minutos, em que procurei debitar a doutrina que à época tínhamos sobre o AMI. No final da minha improvisada intervenção, já se viam diversas placas com nomes de países colocadas na vertical. E o debate lá avançou.

À saída, comentei para o ministro: "Pregou-me uma bela partida...". Jaime Gama, irónico, retorquiu: "Mas eu achei que você tinha tinha pedido a palavra...!"

segunda-feira, julho 02, 2012

Gabardines

Leio nos jornais que a família de Humphrey Bogart está a mover um processo à Burberry's pela utilização, tida por abusiva, da foto do ator com a lendária gabardine utilizada no filme no "Casablanca". Segundo se argui agora, afinal Bogart gostava mais dos modelos da Aquascutum. Vá-se lá saber quem tem razão. Devo dizer que, quanto a mim, não sou muito dado àqueles panejamentos do modelo, mas tenho uma imensa reverência pelo filme e pelo seu herói.

E não estou sozinho. Um dia, já há muitos anos, fui numa delegação a Marrocos. Já no regresso, enquanto atravessávamos a pista a pé, a caminho do avião, um dos membros da nossa delegação, um homem bem simpático, técnico superior de um ministério, que já não está entre nós, sacou subitamente de uma pasta de um chapéu, que, até então nunca o tínhamos visto utilizar, colocou-o na cabeça e pediu-me: "posso pedir-lhe para me tirar uma fotografia, com o nome do Aeroporto atrás?" E subiu a gola da gabardine para a pose...

Era de dia, não havia nevoeiro, ninguém por perto se assemelhava à Ingrid Bergman, os guardas marroquinos tinham fardas bem diferentes da do Claude Rains e não precisávamos de visto para entrar em Lisboa. Mas o nosso homem ficou com a sua foto. No avião, sorridente, confiou-me: "Trazia esta fisgada há vários anos..."

sábado, junho 30, 2012

Pousar em Elvas?

As fortificações e o centro histórico de Elvas foram ontem designados como "património mundial", numa reunião da UNESCO, que está a ter lugar em São Petersburgo. A saudável teimosia da autarquia local, ao longo de vários anos, foi o fator propulsor deste êxito, que confere a Elvas, a partir de agora, uma visibilidade internacional bem diferente.

Desta notoriedade vai, com toda a certeza, resultar para a cidade uma muito maior movimentação na área do turismo. Ironicamente, vale a pena perguntar se será por essa razão que as Pousadas de Portugal decidiram, há tempos, fechar a mais antiga de todas as Pousadas portuguesas - a Pousada de Santa Luzia, em Elvas -, que, nomeadamente, ficou conhecida como um dos marcos da restauração nacional? 

A propósito: será que as autoridades turísticas portuguesas já fizeram a conta às unidades da rede das Pousadas de Portugal foram alienadas (ou "franchisadas") desde que o grupo Pestana assumiu posição proeminente e, pelos vistos, preeminente na empresa? Custa-me muito ter de tratar, neste registo, um grupo hoteleiro de prestigio nacional, que, em particular, desenvolveu um notável trabalho no Brasil, e que então tive o maior gosto em apoiar. Mas, como cidadão "amigo das Pousadas", vejo-me obrigado a destacar a sua evidente responsabilidade na triste liquidação que tem vindo a ser feita de um dos mais ricos patrimónios histórico-turísticos que o nosso país possuía. Desde 1942. Até quando? 

sexta-feira, junho 29, 2012

Crise castrense

Na ausência em férias do embaixador, eu estava a chefiar interinamente aquela embaixada, onde chegara apenas algumas semanas antes. Mal conhecia os cantos à casa e, muito menos, os hábitos do posto, que sempre variam alguma coisa, dependendo das culturas funcionais implantadas pelas chefias. 

O telefonema do adido militar para minha casa, bem cedo na manhã, prenunciava coisa grave. A "voz de caso" com que me perguntou se, logo que eu chegasse à Embaixada, eu podia recebê-lo, alertou-me.

Esses eram os tempos em que algumas temáticas afro-lusitanas nos mobilizavam muito, em que a questão timorense estava no auge, em que alguns delicados assuntos relacionados com o futuro da NATO estavam em discussão, em que a Europa se assustava com a surpresa balcânica e, enfim, em que as dinâmicas da "intelligence" clássica ainda andavam muito na cabeça das pessoas. Além disso, tinha havido mudanças fortes nas estruturas de defesa daquele país onde trabalhávamos, que eu me esforçava por decifrar e que era importante seguir. 

O trabalho dos adidos militares (em rigor, deve dizer-se "adidos de defesa") pode ser de importância para o funcionamento das missões diplomáticas, desde que seja bem executado e articulado com a chefia da missão. Em geral, os adidos dispõem de uma "network" de relações muito própria, que se auto-alimenta em matéria de informação. Vivem centrados em agendas que nem sempre coincidem com as do embaixador, mas tal não é necessariamente uma coisa negativa, porque isso lhes permite focalizar a atenção certas áreas que não estão na nossa ordem de imediata de prioridades. Por outro lado, pela forma corporativa como se articulam com os seus pares locais, têm frequentemente facilidade de "checkar" algumas informações que, aos diplomatas, pode ser mais delicado abordar através dos seus canais habituais. Talvez por ter feito serviço militar, e por julgar perceber alguma idiossincrasia da casta, sempre tive excelente relação com os profissionais desse setor com que trabalhei, independentemente de não serem idênticos os contributos que cada um deu para o meu trabalho. Mas adiante.

Chegado à embaixada, pedi ao adido para vir ver-me. Chegou com um largo dossiê e, com ar grave, disse-me:

- Agradeço a prontidão com que me recebeu e, desde já, queria pedir-lhe se, amanhã de manhã, posso fazer, na sala de reuniões da embaixada, uma reunião. São aí umas 40 pessoas. É que nem sabe o que nos "caiu em cima"...

Não, não sabia, nem conseguia supor a razão de tão urgente reunião. Mas, claro, logo disse que a sala de reuniões estava à disposição, embora fosse necessário reforçar o lote de cadeiras.

Resolvida a dimensão operacional da logística, o adido passou à parte substancial, à justificação da razão que motivava tão largo e urgente dispositivo de trabalho.

- Fomos apanhados de surpresa. Não sei se sabe, mas, todos os anos, uma das embaixadas onde há adidos militares tem a seu cargo a organização de um baile de gala, num dos bons hotéis da cidade. Este ano, era a vez da Polónia. E não é que o meu colega polaco me telefonou ontem, dizendo que, por um inesperado compromisso, não está em condições de poder assegurar a tarefa?! Ora, como é por ordem alfabética, a tarefa passou para nós. E só temos três semanas! Vou convocar já uma reunião de emergência, claro! Imagine a imensa responsabilidade que nos caiu em cima!

Eu imaginava, procurando conter a imensa gargalhada que tinha vontade de soltar, perante o fácies fechado do nosso homem, visivelmente esmagado pelo dever acrescido que lhe havia aterrado nos ombros. E não pude deixar de lembrar-me, na ocasião, de alguns textos de Lawrence Durrell, e, em especial, da imagem, que sempre vive comigo, da admirável figura do adido militar francês, no "Les Ambassades", do Roger Peyrefitte, cuja leitura vivamente recomendo a quem gostar de conhecer os bastidores divertidos da vida nas embaixadas, lugares onde a realidade, muitas vezes, ultrapassa a melhor ficção. Podem crer!

Ah! e para a história, diga-se que, mais tarde, me chegou, de fonte limpa, que o baile terá corrido muito bem.

Património

A igreja da Natividade, em Belém, foi inscrita, há minutos, na lista do Património da UNESCO, através de um procedimento de urgência, a solicitação do mais novo membro da organização, a Palestina. A sala da Duma de São Petersburgo desfez-se em aplausos - embora, com certeza, menos retumbantes do que aqueles que Lenine por aqui, neste mesmo local, arrancou, há umas boas décadas atrás.

No minuto seguinte, foi a vez do Monte Carmelo ser inscrito na lista, sob proposta de Israel. A sala não foi tão entusiasta, mas não deixou de aclamar o novo bem agora proclamado no seu valor universal. Salomão, com a sua justiça, não faria melhor.

As organizações internacionais são isto mesmo: espaços onde, mais do que o equilíbrio, se procura e pratica algum equilibrismo. Mas seria errado pensar que este tipo de liturgias e coreografias é, em si mesmo, negativo. Estes compromissos, às vezes cínicos, outras vezes oportunistas, são a chave da sobrevivência do mundo multilateral, refletindo as suas limitações mas, ao mesmo tempo, consagrando os pequenos passos que fazem avançar esse mundo, que muito tem feito pela paz e pelo entendimento entre os povos.

quinta-feira, junho 28, 2012

Álvaro Vasconcelos

Até há poucos dias, Álvaro de Vasconcelos foi, em Paris, diretor do Institute for Security Studies, uma estrutura promotora de estudos e reflexões que, a meu ver, a União Europeia deveria e poderia ter utilizado bem mais e melhor. Alguns dos trabalhos produzidos por este instituto têm uma qualidade e uma profundidade que mereceriam um melhor tratamento e, em especial, que fossem tidos em conta no desenho de algumas das políticas da União na sua dimensão externa. O trabalho desenvolvido pelo Álvaro de Vasconcelos e pela sua equipa, de um modo discreto mas bem eficaz, deve merecer o apreço de todos quantos se preocupam com as relações externas europeias, nas quais assenta muito do seu futuro como potência à escala global. E, registe-se, o seu papel à frente do ISS prestigiou muito Portugal.

Conheço o Álvaro Vasconcelos há muitos anos, desde que ele criou, em Portugal, o Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI), um importante "think tank" de reflexão estratégica. Com ele, e com as pessoas de grande qualidade que soube mobilizar em torno daquele instituto português, participei em muitos debates, em Portugal e no estrangeiro, em especial centrados sobre o futuro desejável para as instituições europeias e as suas dimensões externas. Ironicamente, lembro-me de ter assumido, nesses anos 90, posições bem mais "recuadas" do que as que o Álvaro, e muitos dos seus amigos, então defendíam, em especial quanto à questão do "federalismo", tema em torno do qual, curiosamente, ambos evoluimos, embora em sentidos diferentes.

Com o Álvaro, preparei o único livro editado em inglês que faz um completa cobertura sobre a postura europeia de Portugal - "Portugal, a European story" -, onde se conta muita dessa grande aventura da nossa contemporaneidade. E juntos estivemos, anos depois, num seminário sobre Segurança, no sul do Egito, num tempo em que se não sonhava ainda com as "primaveras árabes", tema de um livro que o Álvaro publicou recentemente e que muito recomendo - "Listening to unfamiliar voices: the Arab democratic wave".

Bolas!

Há países com azar? Há países com sorte? Nós temos azar e os espanhóis têm sorte? Isso só é assim na aparência. Tem azar quem não tem sorte e ter sorte é uma coisa que dá muito trabalho. As bolas não entraram, quando deviam ter entrado? Pois é, a isso chama-se futebol. Depende e não depende de nós.

Pronto, já passou! Vamos agora ao jogo do défice e da dívida. Esse é o "euro" que não quero perder.

quarta-feira, junho 27, 2012

Títulos

Faço parte, desde há semanas, de uma comissão, empossada pelo primeiro-ministro português, que tem como mandato proceder à revisão do Conceito estratégico de Defesa nacional. Preside a este grupo o professor Luís Fontoura, uma figura que passou pela política e pelo mundo empresarial, tendo sido das pessoas que, de forma mais determinada, deu um "abanão" positivo à nossa política de promoção das exportações. Homem interessado, desde há muito, pelas questões internacionais, teve nessa área um singular percurso académico, apoiado em várias reflexões publicadas. Por algum tempo, foi secretário de Estado no Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Na abertura da primeira reunião da comissão, Luís Fontoura referiu que o nosso labor seria necessariamente discreto, que não trabalhávamos para obter títulos nos jornais. Ao ouvir a palavra "títulos", na sua boca, fez-se-me luz e lembrei-me do primeiro dia em que o conheci.

Na segunda quinzena de 1973, durante o meu serviço militar, integrei uma visita de estudo ao jornal "A Capital", que se situava então nuns andares da avenida Joaquim António de Aguiar. Desse grupo de garbosos militares faziam parte António Franco, Jaime Nogueira Pinto, Manuel Cavaleiro Brandão e outros seis "soldados-cadetes" que, dentre os cerca de 500 que, em março desse ano, tinham feito a sua incorporação na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, haviam sido selecionados para serem formados como futuros oficiais de Ação Psicológica.

A Ação Psicológica era uma das mais interessantes especialidades militares, com disciplinas de Sociologia, Psicologia, Técnicas de propaganda e contra-propaganda, etc. Visitar um jornal estava, assim, no âmbito normal desse curso. E, como jornal, "A Capital" era, à época, um caso singular. Recriado em 1967, num registo de compita com o "Diário de Lisboa", perdera a matriz original e fizera, entretanto, um percurso diferente, distinguindo-se por ser, em Portugal, o primeiro jornal a adotar um estilo gráfico mais agressivo, próximo do de alguns jornais tablóides britânicos. Ao lado dos outros diários lisboetas da tarde, e do "Diário do Norte", do Porto, "A Capital" destacava-se claramente nesse domínio.

Recordo que fomos recebidos por Luis Fontoura, que presidia ao conselho de administração do jornal, e que tinha consigo, como colaborador direto, um grande amigo meu, já desaparecido, o Álvaro Magalhães dos Santos. Apresentou-nos as grandes linhas em que se fundamentava a política do jornal e, à volta disso, lançou-se alguma discussão. A certo ponto, alguém perguntou a Luís Fontoura o que é que ele considerava ser o fator distintivo do jornal, face aos outros similares - o "Diário de Lisboa", o "Diário Popular" e o "República". Sem enveredar pela questão ideológica, talvez subjacente à pergunta, Luís Fontoura retorquiu: "Qual é o único jornal português cujos títulos alguém consegue ler do outro lado da rua? Só "A Capital"."

Era verdade. "A Capital" iniciara o hábito dos títulos fortes, com escassas palavras, que "agarravam" os leitores. O jornal viria a durar mais do que o "República", do que o "Popular " e do que o "Lisboa", mas, ainda que sendo o último sobrevivente dos jornais da tarde, não conseguiu resistir à concorrência noticiosa das rádios e das televisões. Poucos meses depois daquela nossa visita, como a imagem mostra, faria, aliás, um título cuja hábil, prudente e distanciada construção é, em si mesmo, um bom tema de "ação psicológica"...     

Tarde do dia de Consoada