Ontem, no rio Douro, ao passar em frente ao restaurante DOC (como registo na foto), na Folgosa, entre a Régua e o Pinhão, recordei-me de ter escrito, já há quase três anos, um texto num blogue ("paralelo") que não tenho alimentado muito e que se chama Ponto Come. Tratou-se de uma "estranha" experiência ocorrida nesse mesmo DOC. Nestes tempos de assumida preguiça, e com uma ainda mais assumida publicidade a essa bela mesa gastronómica, aqui fica o texto (ainda antes do AO, para os saudosos):
O entusiasmo com que partira a caminho do DOC foi de tal forma afectado pelo choque da informação recebida que abrandei a velocidade e quase parei o carro. Um jantar no DOC, sem vinho?!
Pois era essa a proposta, nem mais nem menos: uma refeição de degustação, só com águas e total ausência de alcoóis. Confesso que a hipótese de desistir chegou a passar-me pela cabeça e que só o facto de haver um compromisso fixado com antecedência, e não querendo ofender o autor do alvitre – um arquitecto de “primeira água” –, fez com que a minha relutância fosse atenuada.
A imagem que eu mantinha do DOC era muito positiva, pela boa memória de uma visita passada. Críticas lidas ao longo do ano haviam-me alimentado o desejo de regressar e rever a cozinha de Rui Paula, que me diziam estar cada vez mais imaginativa, com uma rara sustentação de qualidade. Mas, tenho de confessar, desse desejo também fazia parte integrante a possibilidade de acompanhar a comida com algum ou alguns dos excelentes Douros que integram a magnífica lista de vinhos que o restaurante sempre apresenta.
O DOC tem uma situação privilegiada, na margem esquerda do Rio Douro, a meio desse percurso mágico que é a sinuosa estrada entre a Régua e o Pinhão, bordejada de vinhas e nomes de quintas, algumas a fazerem-nos recordar rótulos de belas produções vinícolas. O local é magnífico, em dia ameno pode-se utilizar o deck exterior. Dentro, telas de plasma na sala permitem seguir os trabalhos na cozinha, um exercício de transparência que nos aumenta a confiança. Uma área para amenizar a espera foi entretanto criada, com um piano a sugerir interessantes potencialidades e a assegurar que nunca o espaço virá a ser perturbado por uma qualquer “musak” ambiental. E, sobre tudo isso, a certeza de podermos beneficiar de um cenário deslumbrante, no centro de uma paisagem de uma serenidade única.
Tudo bem, tudo isso era verdade, mas a minha perplexidade mantinha-se. A ideia continuava a ser verdadeiramente bizarra: um jantar degustação, sem vinhos, só com águas?! Não sou fundamentalista, não sou um ansioso de vinho, passo imensos dias sem provar uma gota de álcool. Mas no DOC, no coração do Douro, um jantar sem vinho soava-me como que ofensivo a esses “montes pintados” que Araújo Correia nos descreveu.
Foi num misto de perplexidade e curiosidade, com a primeira a superar em muito a segunda, que entrei no restaurante. Ainda lancei, sem sucesso, a ideia de, pelo menos, “abrir” com um gin tónico, como que a criar lastro etílico para sustentar o que aí viria. Fui logo desiludido por vozes suavemente reprovadoras, que me alertaram para os riscos de afectação da pureza gustativa, a qual deveria ser mantida numa espécie de virgindade profiláctica, indispensável ao acolhimento dos gozos que se seguiriam.
E, pronto, lá fomos para a mesa, uma dúzia de convivas, a maioria desconhecidos, uns aparentemente mais convictos das virtualidades do exercício que outros – comigo, francamente, bem ancorado no campo dos últimos.
Tudo começou por um período inicial de carência psicológica, em que um ou outro lá ia recordando a falta do vinho à mesa. A sólida constatação de que o único líquido permitido seria a água provocou então graçolas nervosas, com os mais imaginativos a aventarem o recurso limite a uma “aguardente” ou a uma “água-pé”.
É que, de facto, eram as águas as rainhas da noite. Águas diferentes, umas lisas outras gasosas, umas mais “planas” outras mais “profundas”, algumas algo “agressivas”. Tivemos até o privilégio de provar umas nórdicas de belo design, mais frescas umas que outras. Sempre águas, claro! Apenas uma água era portuguesa e, para mim, totalmente desconhecida.
Durante o repasto, as águas sucediam-se, em copos diferentes, cada uma a acompanhar as (creio!) oito propostas gastronómicas, que não estavam sequer listadas à partida. Um simpático “expert” – reputado conhecedor de vinhos, imaginem! – procurava ajudar-nos a identificar, não apenas a singularidade de cada uma das águas experimentadas (sobre cujas qualidades comparadas alguns dos convivas já ousavam, a medo, “mandar bitaites”), mas igualmente a razão pela qual essa mesma água fora seleccionada para acompanhar tal prato, em função do seu potencial para combinar, por contraste ou complemento, o produto cozinhado.
E foi então que se foi passando essa coisa extraordinária que foi o facto de, sem disso termos real consciência, a ausência do vinho ter deixado praticamente de constituir tema da conversa, muito menos de qualquer angústia. A refeição, regada a águas, ia-se impondo naturalmente, perante o deslumbre dos sentidos, a variedade das escolhas propostas, a riqueza das combinações que nos eram oferecidas.
Duas evidências ficaram claras, na minha perspectiva.
A primeira foi o facto da ausência do vinho nos ter tornado, a todos, muito mais atentos aos sabores do que nos ia sendo apresentado, não nos “distraindo” da essência dos paladares, obrigando a que nos concentrássemos, de forma mais profunda, em cada componente do que nos era sugerido. Por mim, pude constatar que o vinho, em toda a sua imorredoura glória de factor criativo e de qualificador global do gosto, pode ter o “defeito” colateral de nos afastar do esforço de procura de construção/desconstrução do que estamos a saborear, da especificidade de um molho, da ténue diferença gustativa de um vegetal, da “nuance”, quase imperceptível, de um produto sujeito a um tratamento muito sofisticado. Digo isto porque, talvez pela primeira vez desde há muito, consegui descortinar e isolar, combinando-os depois muito melhor, os componentes que o Chefe ia indicando como constituintes das propostas gastronómicas que surgiam.
Quererei dizer, com isto, bem no coração deste nosso Douro, que o vinho passou a ser algo dispensável? Longe disso: o vinho é, cada vez mais, o grande “sublinhador” criativo dos paladares, o provocador de efeitos que se acrescentam aos alimentos e deles consegue extrair novos e decisivos matizes. E tem, além disso, uma importante carga eufórica, que excita as almas e alegra os tempos, particularmente se for de qualidade e se tomado com conta, peso e medida – e, claro, se as garrafas forem abertas com antecedência adequada e se servido à temperatura requerida.
Mas esta interessante experiência teve a virtualidade de nos mostrar que, numa refeição, há mais vida para além do vinho, se bem que a vida e a refeição sejam sempre muito boas com ele à frente.
Uma segunda constatação também se impõe: a virtualidade desta prova, sem o recurso ao complemento do vinho, só teve o sucesso que teve pelo facto de ter sido apoiada na qualidade excepcional de todos os pratos apresentados, que a ausência do álcool permitiu que ganhassem autonomia própria, deixando-os “brilhar” por si mesmos. E foi a circunstância dessa qualidade nunca ter decaído ao longo do jantar, de prato para prato, que conseguiu garantir um apego contínuo e sustentado do nosso paladar àquilo que íamos degustando, sem fazer ressaltar a “saudade” do travo adjectivo do vinho. Com uma refeição banal, por melhores que fossem as águas, tudo não teria passado de uma grande “seca”… E eu, tenho de admitir, fui menos capaz do que outros companheiros desta agradável jornada de ser sensível a algumas características específicas que eram atribuídas e identificadas em cada uma das águas provadas.
Dito isto, vamos ao principal: Rui Paula provou-me definitivamente, nesta memorável noite, que é hoje um dos chefes portugueses com maior criatividade, que consegue aliar a sofisticação de uma cozinha contemporânea de grande nível e excelente apresentação com algumas notas de rodapé gustativo, em que faz orgulhosa questão de trazer-nos à lembrança sabores regionais, na maioria dos casos tipicamente nortenhos, umas vezes de forma subliminar, outras de modo plenamente assumido. Rui Paula consegue assim demonstrar-nos – e entendo que outros deveriam aprender com isso – que o cosmopolitismo sofisticado de uma cozinha não é incompatível com o recurso a citações sensoriais ligadas às raízes geográficas de onde se opera. Pelo contrário, a originalidade do que nos propõe no DOC só ganha com a chamada à mesa desses mesmos elementos.
Num circo, trabalhar sem rede é um risco que enobrece a arte. Num restaurante, ousar um menu sem o recurso ao complemento de vinhos será talvez a prova mais provada de que a grande gastronomia também se constrói na autoconfiança e na certeza de que a qualidade se imporá sempre por si própria. Quando exista no trabalho de um grande Chefe, como é o caso de Rui Paula.
A boa disposição com que saí deste exercício – que, a bem dizer, deveria ter o “mecenato” da Brigada de Trânsito da GNR – leva-me a ecoar a já célebre frase de um velho oficial de Marinha, pouco navegado nas especificidades da gramática, que a nossa História acolheu como uma patética anedota política, quando um dia quis qualificar uma sua qualquer alegria pública: “só tenho um ‘adjectivo’ para expressar o que hoje aqui senti: gostei!”.