O governo decidiu dar ao aeroporto da Portela o nome de Humberto Delgado. Uma excelente decisão, consagrando alguém que foi o fundador da TAP e diretor-geral da Aeronáutica Civil, uma das pessoas que impulsionou, como ninguém, a aviação comercial em Portugal. Mas há mais razões para além disso.
Depois de ter sido um grande apoiante da Ditadura Nacional, no período imediatamente subsequente ao golpe militar de 28 de maio de 1926, o general Humberto Delgado viria, nos anos 50, em especial depois da sua passagem por Washington como adido militar, a manifestar um afastamento crescente face ao regime salazarista. Pouco antes das eleições presidenciais de 1958, chegou a setores da oposição democrática a informação de que um general, antes ligado ao regime, se mostrava crítico de Salazar. Foi António Sérgio quem canalizou essa informação para o seio das forças oposicionistas mais moderadas, que então buscavam um candidato presidencial, depois de terem pensado em Jaime Cortesão e Mário de Azevedo Gomes. Aproximado por esses democratas, Delgado decidiu arriscar a aventura.
Mais à esquerda, o PCP mostrou-se inicialmente cético. Curiosamente, os comunistas tinham chegado a encarar a possibilidade de apoiar uma figura clássica do anti-salazarismo, Cunha Leal, personalidade da Primeira República que tivera uma posição algo equívoca no 28 de maio, mas que cedo se confrontara com Salazar. Ao conhecerem a hipótese Delgado, e sabedores das ligações deste aos EUA, os comunistas logo o rotularam, no "Avante!", de "general Coca-Cola", avançando como seu candidato com o nome de um advogado que era seu "compagnon de route", Arlindo Vicente. Porém, percebendo o potencial de mobilização de Humberto Delgado, o PCP acabaria por aceitar apoiá-lo, num acordo que ficou conhecido como o "pacto de Cacilhas".
A campanha de Humberto Delgado assustou o regime, com nunca antes tinha acontecido. As cidades por onde o general passava enchiam-se de adeptos e houve, no Porto e em Lisboa, manifestações públicas de uma dimensão nunca vista. A repressão policial acabou por se exercer, o que não deixou mesmo de provocar tensões fortes no seio da "situação" - como era designado então o ambiente do regime.
A imagem que ilustra este texto foi tirada na minha terra, em Vila Real, em 22 de maio de 1958, em frente ao antigo Hotel Tocaio, julgo que depois de um almoço oferecido ao candidato oposicionista. Antes disso, Delgado depositara um ramo de flores no monumento ao herói republicano Carvalho Araújo. A uma centena de metros de distância, com os meus 10 anos, recordo vivamente ter estado ao lado do meu pai, cujo "republicanismo" (à época um sinónimo de partilha de ideias democráticas), foi superior à prudência que sempre aconselharia um funcionário público a não ser visto nesse contexto.
Delgado viria a perder umas eleições marcadas por imensas fraudes, as quais, mesmo que não tivessem tido lugar, talvez não tivessem obviado à sua derrota, atento o forte condicionamento da opinião pública que então existia. Na sua campanha, ficou famosa a frase que pronunciou no Café Chave d'Ouro, no Rossio, quando perguntado o que faria com Oliveira Salazar, se acaso fosse eleito: "Demito-o, obviamente demito-o!". Muitos são de opinião de que o destino de Delgado, que veria vários dos seus momento públicos fortemente reprimidos, ficou selado naquele instante. Creio que se enganam: Salazar sabia bem que, em caso de vitória de Delgado - o seu opositor e vencedor do sufrágio foi o contra-almirante Américo Tomaz, uma figura risível do refugo do regime - seria, com toda a naturalidade, afastado. E há muito que decidira não arriscar.
O período posterior às eleições foi complexo para Delgado. Demitido das funções oficiais que desempenhava, procurou manter o movimento que estivera na base da sua campanha, o que motivou uma constante atenção da polícia política. Tendo sido advertido de que estaria iminente a sua prisão, pediu asilo político na embaixada brasileira em Lisboa, ironicamente instalada num edifício ao lado da polícia política, a PIDE. Depois de meses de negociações, o embaixador brasileiro, o intelectual e democrata Álvaro Lins, conseguiu negociar a saída de Delgado para o Brasil.
Atravessado o Atlântico, o general, em lugar de ser um fator de união dos democratas portugueses, acabou por criar imensos conflitos no seio dos exilados lusos, sobre os quais pretendia manter uma chefia, num modelo algo autoritário, que muitos não aceitavam. Humberto Delgado, muito simplesmente, entendia ser o "presidente" legítimo do país, cuja vitória fora usurpada.
Do Brasil, Delgado partiria tempos mais tarde para a Argélia, onde se tornaria a figura de topo de uma organização que federava a oposição ao regime de Lisboa: a Frente Patriótica de Libertação Nacional. Descontente com o funcionamento da organização, que acusava - não sem alguma razão - de estar dominada por alguns egos e tutelada politicamente pelo PCP, o general cedo entrou em dissídio com a maioria dos exilados portugueses na Argélia. Isolado e vulnerável, alguns serventuários da polícia política portuguesa viriam a montar-lhe uma armadilha numa aldeia espanhola próxima de Olivença. sendo morto a tiro. Faz hoje precisamente 51 anos.
Humberto Delgado foi uma figura politicamente controversa, e até frequentemente contraditória, dotado de um temperamento impulsivo, algo arrogante e muito conflitual. Porém, representou para os democratas portugueses dessa passagem dos anos 50 para os anos 60, um sopro de esperança de uma dimensão nunca antes atingida. Por tudo isso, que o consagrou na História contemporânea, e pelo que fez pela aeronáutica portuguesa, merece amplamente que o aeroporto de Lisboa passe, de futuro, a ter o seu nome.
Um belo gesto que honra o governo de António Costa.