Salvo para alguns leitores brasileiros, o nome de Eros Grau pouco dirá. Um dia, na embaixada francesa em Brasília, fiquei sentado num jantar perto dessa figura imensa, de barba inesquecível, que eu já tinha visto na televisão. Mas nunca tinha encontrado pessoalmente o juíz do Supremo Tribunal Federal, um dos onze que compõem a instituição. Recordo-me de ter-lhe dito que, na madrugada anterior, estivera deliciado a ouvi-lo, num animado debate jurídico em que ele interviera. Citei mesmo uma frase curiosa, que ele pronunciara nessa circunstância. Eros Grau olhou para mim, surpreendido com a inesperada atenção que eu dava à vida do judiciário brasileiro: "Nem minha sogra viu! Você, embaixador, perde tempo com isso?". E deu uma imensa gargalhada. Foi o início de uma primeira longa conversa.
Eros Grau é um distinto jurista e intelectual brasileiro, professor universitário, autor de dezenas de obras, especialmente na área do Direito económico. Tem em Tiradentes uma fantástica biblioteca de mais de 30 mil volumes. Gosta da vida e gosta dela com a Tânia, com a família, com os amigos, alguns criados ao tempo da luta contra a ditadura brasileira, período em que esteve preso. Entusiasma-se por causas, é um furioso defensor da ética na política, o que lhe tem valido, nos últimos anos, remoques de antigos amigos. É uma das pessoas mais divertidas que conheço, culto "à bessa" (como dizem os brasileiros), com limite curto de paciência para os "chatos de galocha" que o mundo às vezes nos coloca à frente.
Desde essa noite de Brasília, passou entre nós uma corrente de simpatia, que viria a ser cimentada por visões comuns da vida. Com os anos, Eros passou de um conhecido a ser um grande amigo meu. Hoje é um amigo íntimo, como tenho muito poucos, daqueles quecse contam pelos dedos de uma mão. Longas noites passámos na charla, acompanhada de álcoois, histórias e gargalhadas, primeiro no Brasil, depois muito em Paris, onde Eros Grau, hoje aposentado do judiciário, mas bem ativo, tem uma residência e também trabalha. Viajámos juntos pela Europa. Comungamos paixões por muitas coisas, somos cúmplices de outras, trocamos alguns segredos.
Eros escreveu um livro de que já
aqui falei um dia e que faz furor junto dos muitos brasileiros que amam Paris: "Paris - Quartier Saint-Germain-des-Prés". Uma noite de domingo, na brasserie Lipp, uma brasileira aproximou-se da nossa mesa, volume em punho, para lhe pedir um autógrafo. Enquanto o Eros laborava na dedicatória, a senhora voltou-se para mim e perguntou: "Você deve ser o Francisco, não?". É que o Eros começa um dos seus capítulos do livro dizendo que, aos domingos, ele e a Tânia juntavam invariavelmente conosco na Lipp...
Hoje à noite, domingo, nessa mesma Lipp, o Jean-Louis "arrumará" uma mesa para a Tânia e para o Eros, naturalmente do lado direito da sala. Aposto que o Eros começará por pedir o arenque Bismark (que não sai da lista desde dos anos 20), seguir-se-á a "leve" choucroute, para tudo acabar num "mille feuilles au kirsch", a partilhar com a Tânia. Ah! tudo regado com um Chablis. Atravessado o boulevard, o café será servido no "Flore" (na mesa à esquerda da porta que, para si, leitor, terá um inultrapassável "reservée" metálico), com o Francis a ordenar a saída do "médicament", nome com que o Eros crismou para sempre uma "poire william" que o meu fígado já não ousa há décadas.
Porque falo nisto hoje? Porque acabo de me dar conta que, no dia 20, segunda-feira, chegamos nós a Paris, vamos jantar à Lipp e nela não estarão a Tânia e o Eros, já então de abalada para o Brasil. Caro Eros, contrariamente ao que dizia o teu querido sósia de Trier, nem sempre a História se repete. Ou melhor, sem ti, como ele também afirmava, é tudo uma farsa.
Em tempo: o Eros e a Tânia acabaram pir alterar a sua partida para o Brasil para jantar conosco, um dia na Lipp (o Eros diz "o Lipp", eu digo "a Lipp", por respeito ao género da "brasserie") e outra na Closerie de Lilas. Noites bem divertidas, que invariavelmente acabaram no Flore, com o Francis a mostrar-nos retratos da sua neta "moitié portugaise".