segunda-feira, janeiro 06, 2014

História retocada

A fuga da sinistra prisão de Peniche, protagonizada em 1960 por Álvaro Cunhal e nove outros dirigentes do PCP, foi há dias recordada por esse partido.
 
Há poucas semanas, o PCP publicou também uma interessante fotobiografia de Álvaro Cunhal, comemorativa do centenário do seu nascimento.

Não posso deixar de sentir pena que, no primeiro dos casos, durante décadas, o PCP tenha escamoteado, em todos os seus textos, que Francisco Martins Rodrigues fazia parte do grupo que integrou a audaciosa fuga. Porquê? Porque, meses após esse importante momento, Martins Rodrigues viria a abandonar o PCP e protagonizou uma dissidência de esquerda.

E lamento muito que agora, numa clara manifestação de sectarismo, os autores da oficiosa fotobiografia tenham manipulado a imagem em que Cunhal aparece sobre um tanque, na sua chegada ao aeroporto de Lisboa, em 29 de abril de 1974, dela retirando a imagem de Mário Soares, que estava igualmente ao lado do líder do PCP, e que, com esse gesto, dera um magnífico exemplo de solidariedade democrática. Nem Mário Soares merece este ato censório, nem a memória de Álvaro Cunhal fica com ele melhor servida.

O PCP foi um partido que, como nenhum outro, lutou pelo fim do regime que os militares derrubaram em 1974. Muitos homens e mulheres comunistas sacrificaram anos das suas vidas ao seu ideal, sofreram prisões, torturas e perseguições. Por isso, os comunistas não têm necessidade de esconder a realidade para retocar a sua história.  

domingo, janeiro 05, 2014

O senhor Eusébio


Todos devemos reconhecimento a quem nos fez sentir felizes. Eusébio foi responsável por alguns momentos de alegria que tive. Agora, hora da sua morte, agradeço-lhe por isso.

Eusébio costumava contar que, quando chegou a Portugal, feito pé-de-obra colonial, tinha tanto respeito pelos seus colegas já consagrados que tratava o "capitão" Mário Coluna por "senhor Coluna". Pela consideração que a sua figura me merece, apetece-me hoje tratá-lo por senhor Eusébio.

ps - esta excelente foto de Nuno Ferrari, no momento em que Portugal começou a reduzir os três golos que a Coreia do Norte nos tinha imposto, durante o Mundial de 1966, passou a representar, para mim, a imagem da determinação e da garra que é necessário ter quando as coisas correm mal e é urgente "dar a volta" à vida. 

O meu amigo Eros

Salvo para alguns leitores brasileiros, o nome de Eros Grau pouco dirá. Um dia, na embaixada francesa em Brasília, fiquei sentado num jantar perto dessa figura imensa, de barba inesquecível, que eu já tinha visto na televisão. Mas nunca tinha encontrado pessoalmente o juíz do Supremo Tribunal Federal, um dos onze que compõem a instituição. Recordo-me de ter-lhe dito que, na madrugada anterior, estivera deliciado a ouvi-lo, num animado debate jurídico em que ele interviera. Citei mesmo uma frase curiosa, que ele pronunciara nessa circunstância. Eros Grau olhou para mim, surpreendido com a inesperada atenção que eu dava à vida do judiciário brasileiro: "Nem minha sogra viu! Você, embaixador, perde tempo com isso?". E deu uma imensa gargalhada. Foi o início de uma primeira longa conversa.

Eros Grau é um distinto jurista e intelectual brasileiro, professor universitário, autor de dezenas de obras, especialmente na área do Direito económico. Tem em Tiradentes uma fantástica biblioteca de mais de 30 mil volumes. Gosta da vida e gosta dela com a Tânia, com a família, com os amigos, alguns criados ao tempo da luta contra a ditadura brasileira, período em que esteve preso. Entusiasma-se por causas, é um furioso defensor da ética na política, o que lhe tem valido, nos últimos anos, remoques de antigos amigos. É uma das pessoas mais divertidas que conheço, culto "à bessa" (como dizem os brasileiros), com limite curto de paciência para os "chatos de galocha" que o mundo às vezes nos coloca à frente.

Desde essa noite de Brasília, passou entre nós uma corrente de simpatia, que viria a ser cimentada por visões comuns da vida. Com os anos, Eros passou de um conhecido a ser um grande amigo meu. Hoje é um amigo íntimo, como tenho muito poucos, daqueles quecse contam pelos dedos de uma mão. Longas noites passámos na charla, acompanhada de álcoois, histórias e gargalhadas, primeiro no Brasil, depois muito em Paris, onde Eros Grau, hoje aposentado do judiciário, mas bem ativo, tem uma residência e também trabalha. Viajámos juntos pela Europa. Comungamos paixões por muitas coisas, somos cúmplices de outras, trocamos alguns segredos.

Eros escreveu um livro de que já aqui falei um dia e que faz furor junto dos muitos brasileiros que amam Paris: "Paris - Quartier Saint-Germain-des-Prés". Uma noite de domingo, na brasserie Lipp, uma brasileira aproximou-se da nossa mesa, volume em punho, para lhe pedir um autógrafo. Enquanto o Eros laborava na dedicatória, a senhora voltou-se para mim e perguntou: "Você deve ser o Francisco, não?". É que o Eros começa um dos seus capítulos do livro dizendo que, aos domingos, ele e a Tânia juntavam invariavelmente conosco na Lipp...

Hoje à noite, domingo, nessa mesma Lipp, o Jean-Louis "arrumará" uma mesa para a Tânia e para o Eros, naturalmente do lado direito da sala. Aposto que o Eros começará por pedir o arenque Bismark (que não sai da lista desde dos anos 20), seguir-se-á a "leve" choucroute, para tudo acabar num "mille feuilles au kirsch", a partilhar com a Tânia. Ah! tudo regado com um Chablis. Atravessado o boulevard, o café será servido no "Flore" (na mesa à esquerda da porta que, para si, leitor, terá um inultrapassável "reservée" metálico), com o Francis a ordenar a saída do "médicament", nome com que o Eros crismou para sempre uma "poire william" que o meu fígado já não ousa há décadas.

Porque falo nisto hoje? Porque acabo de me dar conta que, no dia 20, segunda-feira, chegamos nós a Paris, vamos jantar à Lipp e nela não estarão a Tânia e o Eros, já então de abalada para o Brasil. Caro Eros, contrariamente ao que dizia o teu querido sósia de Trier, nem sempre a História se repete. Ou melhor, sem ti, como ele também afirmava, é tudo uma farsa.

Em tempo: o Eros e a Tânia acabaram pir alterar a sua partida para o Brasil para jantar conosco, um dia na Lipp (o Eros diz "o Lipp", eu digo "a Lipp", por respeito ao género da "brasserie") e outra na Closerie de Lilas. Noites bem divertidas, que invariavelmente acabaram no Flore, com o Francis a mostrar-nos retratos da sua neta "moitié portugaise".

sábado, janeiro 04, 2014

A realidade nos matraquilhos

("Um verdadeiro sportinguista não deveria contar esse episódio no blogue", disse-me o meu leonino interlocutor, com ar pré-censório, quando ontem lhe relatei que ia escrever o que se segue. É isso: eu não devo ser um "verdadeiro" sportinguista, sou, muito simplesmente, um sportinguista sincero, que não teme os factos. Por isso, aqui vai a historieta.)

Foi num dia da primeira metade dos anos 80, perto de S. Bento da Porta Aberta. Aquele meu amigo, então com casa no Gerês, onde passávamos belos dias de férias, era - e é - um leixonense dos quatro costados. Nessa qualidade, detesta tudo o que lhe "cheire" a Futebol Clube do Porto. Assisti a episódios homéricos, decorrentes desta inultrapassável fobia.

Por esses dias, o seu objetivo era adquirir uma mesa de matraquilhos, se possível em segunda mão, para apoio lúdico à moradia no Gerês. Nessa tarde de verão, tínhamos parado para beber uma cerveja, num café de estrada. À entrada, notámos um letreiro: "Vende-se mesa de matraquilhos". Vinha mesmo a calhar!

Enquanto eu me deliciava com um "fino" atremoçado, o meu amigo partiu para a cave, com o dono do café, para ver a mesa à venda. Não eram decorridos mais do que uns breves instantes quando ouvi uma troca de argumentos e vi o meu amigo emergir da escada, arfando e exclamando: "Era o que faltava! O gajo é 'andrade'!". E, passando por mim, a caminho do carro, anunciou: "Já não bebo nada! Aqui nunca mais venho". E saiu, disparado. Fiquei curioso: seria apenas pelo facto de ter constatado que homem era portista que o meu amigo se recusara a fazer o negócio? Mesmo para um leixonense radical, era demais!

Quando, acabado o "fino", regressei ao automóvel, decifrei o mistério. Não, não fora a circunstância do proprietário do café ser adepto do FCP que provocara a cena. A reação devera-se ao facto de uma das "equipas" dos matraquilhos ter o azul do equipamento portista. Para o meu amigo, a saída do verde-vermelho tradicional era lamentável. E então ter "o Porto" em casa, isso seria impensável!

Para mim, esse acabaria por ser um momento significativo. Nunca vira, em Portugal, uma mesa de matraquilhos cujos bonecos não tivessem as cores do Sporting e do Benfica. Mas o mundo tinha mudado. O Porto entrava, por legítimo direito, nesse "campeonato" do imaginário. Não era uma constatação que deixasse feliz um sportinguista. Mas era o que era.

sexta-feira, janeiro 03, 2014

Interesses estratégicos

Notícia que acabo de ler no "Diário Económico":

"Passados mais de dois anos de ter sido incumbido de criar um regime extraordinário para acautelar privatizações que coloquem em causa a segurança e os interesses estratégicos nacionais, o governo apresentou finalmente a proposta de lei no parlamento. O documento, a que o DE teve acesso, deu entrada na Assembleia da República a 9 de dezembro e especifica que o governo passa a poder vetar negócios que "afetem a disponibilidade das principais infraestruturas ou ativos estatégicos afetos â defesa e segurança nacional ou à prestação de serviços essenciais nas áreas da energia, transportes e comunicações".

É muito curioso que esta iniciativa legislativa surja depois das principais privatizações nestes setores estarem já concluídas. 

Criação de emprego

Alguns comentadores com mau feitio não se cansaram de criticar os números sobre os novos empregos gerados graças às políticas deste governo, que há dias foram jubilosamente anunciados pelo primeiro ministro. 

Cá por mim, até acho que os números apresentados foram modestos! 

É da mais elementar justiça colocar a crédito das políticas públicas deste executivo as centenas de milhares de empregos de que os portugueses têm vindo a beneficiar - em Angola, Moçambique, Reino Unido, França, Brasil, etc.

Já é vontade de dizer mal...

"Ilustração Portuguesa"

São 37 volumes. Encadernados em belo couro. É a "jóia da coroa" da minha biblioteca. É a coleção completa da "Ilustração Portuguesa", esse retrato ímpar da vida portuguesa, de 1903 a 1924. São 947 números recheados de fotografias. Está lá tudo - a decadência (escondida) dos últimos Braganças, o regicídio, os números empolgantes sobre o 5 de outubro, toda a saga da Primeira República, com a Grande Guerra pelo meio. Os últimos números denotam já um certo cansaço. Era o regime a esvair-se, a caminho da ditadura.

A "Ilustração" figurava em destaque em casa da minha avó, em Viana do Castelo. Fora colecionada, durante mais de 20 anos, por uma figura que só conhecíamos pelo retrato fardado na parede e pelas medalhas pendentes num caixilho envidraçado: o Tio Túlio. O meu pai falava sempre desse cunhado, desaparecido ainda antes de eu nascer, como uma figura de pendor intelectual, dado a conhecimentos bizarros, do esperanto ao espiritismo, das técnicas policiais a estudos sobre tipos tipográficos. Já um dia por aqui falei desses armários recheados de belas encadernações, situados no apelativo escritório, uma sala onde, a partir de meados dos anos 50, durante os meses de verão, era armada a minha cama. Cresci com esse cenário das três paredes de livros que me rodeavam nas férias. Só muitos anos mais tarde essas vitrines me foram acessíveis, embora com decrescentes limitações. Foi a partir de então que pude começar a folhear a "Ilustração", mas também a coleção do ABC, uma revista iniciada nos anos 20 e que iria desaparecer nos primeiros tempos do Estado Novo, com um toque gráfico modernista, mas já sem a qualidade de conteúdo da "Ilustração Portuguesa".

Por um daqueles percursos das coisas que ocorrem na vida das famílias, aquela coleção da "Ilustração" surgiu um dia à venda, em meados dos anos 60, num alfarrabista do Porto. O meu pai soube do facto e pediu a um amigo, que se deslocava regularmente àquela cidade, para se informar sobre o preço que era pedido. O custo pedido ainda era significativo e os tempos não eram fáceis. Para minha surpresa, o meu pai, que não era muito dado a consultar-me para coisas da vida, perguntou-me se eu estaria interessado em ter a "Ilustração" para mim. Disse logo que sim, a "Ilustração" era um sonho que nem sequer ousara ter. O amigo viajante encarregou-se da compra e, um dia, lá chegou um pesado volume. A "Ilustração Portuguesa" passou, desde então, a ser "minha".

quinta-feira, janeiro 02, 2014

Viena

Durante anos, dava-me algum trabalho conseguir assistir em direto, na televisão, ao concerto de Ano novo que, em cada dia 1 de janeiro, a orquestra filarmónica de Viena executa no Musikverein, a mítica sala da capital austríaca. Às vezes não estava em casa, noutras tinha por lá gente, outras ainda andava em viagem. Os sistemas de gravação automática dos canais de cabo permitem-nos agora ver o espetáculo quando nos apetece, o que nos deixa sem desculpa para não assistir a um dos grandes momentos do ano musical à escala global. Foi o que fiz ontem à noite.

Quando vivi em Viena, nunca por lá passei os períodos de fim-de-ano, pelo que também nunca me vi obrigado a lutar para obter entradas para este concerto. Fui ao Musikverein diversas vezes, a mais curiosa das quais terá sido num dos meses iniciais de 2003, para o "Ball Der Industrie und Technik", um dos grandes bailes anuais da capital austríaca. Apesar de ser um "pé-de-chumbo", lá engalanei a labita de grã-cruzes para o evento, como é de regra. O Musikverein é uma das salas de espetáculo mais fascinantes que conheço, pelo que, confesso, tive pena de nunca ter estado, ao vivo, num seu concerto de Ano novo. Participar no tradicional acompanhamento, pelos espetadores, da marcha Radetzky, de Johann Strass, a tradicional última peça do concerto, foi algo que (ainda?) me ficou por fazer.

Viena foi um posto diplomático que me deixou "mixed feelings". Em 2002, fui para lá viver contra a minha vontade, interrompendo inopinadamente o trabalho que estava a fazer noutras funções. Coube-me então a responsabilidade de dirigir uma imensa representação nacional (só entre diplomatas, militares e técnicos vários, éramos, creio, 18 pessoas, além do pessoal administrativo), num período complexo, durante a presidência portuguesa da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa). Saído dessa tarefa intensa, passei, de um dia para o outro, e contrariamente ao que estava acordado, a um período que costumo qualificar como a minha "osceosidade". Porque estar sem praticamente nada para fazer se coaduna muito pouco com o meu feitio, optei por me dedicar a palestrar sobre um tema bem especioso, as chamadas CSBM ("Confidence and security building measures"). Em representação e a expensas da OSCE, andei então por sítios tão diversos como Trieste, Astana, Tóquio, Amman, Varsóvia, Tbilisi, Seoul ou Charm-el-Sheik, entre outros. Se Portugal me dava uma indesejada sabática, aproveitei para viajar e trabalhar. E, nas folgas, ouvir música.

Lembrei-me ontem disto e de muito mais ao ver e ouvir o magnífico concerto vienense de Ano novo, sob a direção de Daniel Barenboim.   

quarta-feira, janeiro 01, 2014

O novo ano

Deixei, há muito, de acreditar na ritual ideia de ter o início do ano civil como ponto de partida para um novo tempo na vida pessoal. Se, ao longo do ano anterior, não fomos capazes de mudar atitudes e práticas, dificilmente será a simples entrada de janeiro a dar-nos a força e, em particular, a  persistência que até aí não tínhamos tido - seja o arrumar daquela estante ou arrecadação, sejam os contactos pessoais em atraso, seja recomeçar a escrever um texto há muito adiado ou qualquer outro ato que seguramente nos ajudaria a melhorar e organizar a vida. Mas percebo muito bem que alguns persistam em tentar utilizar essa marca temporal como o momento para o abrir da ilusória cortina que nos separa de um futuro de maior racionalidade.

Pesando bem as circunstâncias, contudo, iniciar uma dieta hoje não seria uma má ideia...

terça-feira, dezembro 31, 2013

Governo

José Leite Martins é o novo secretário de Estado da Administração Pública. Conheço-o bem, em especial ao tempo em que dirigia os serviços jurídicos do MNE. É uma pessoa que me merece simpatia. Recordo o dia em que me deu conta da sua vontade de não continuar no lugar que ocupava, não obstante o governo a que eu então pertencia não ter intenção de vir a substituí-lo. Foi ele quem insistiu em sair, por opção de carreira. Tempos depois, seria testemunha privilegiada de que outros tempos trazem outras formas de fazer política.

António Costa Moura, o novo secretário de Estado no Ministério da Justiça, foi o meu mais direto colaborador em Paris, em 2009, tendo depois ido ocupar a chefia do consulado-geral em São Francisco. Ficámos amigos. Também ele antes tivera oportunidade, bem de perto, de testemunhar o sectarismo político a comandar a administração pública. Noutro ciclo político, claro. Falámos muito sobre isso.

Todas as felicidades que a ambos desejo são, naturalmente, pessoais. Como eles compreenderão.

A Misericórdia dos Mercados

Neste último dia do ano, deixo-os, por ora, com o magnífico poema - "A Misericórdia dos Mercados" -  que fui buscar ao sempre imprescindível Tim Tim no Tibete:

Nós vivemos da misericórdia dos mercados
Nào fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as leis
são meras consequências lógicas dessa regulação
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador e a
própria criação.
Nós é que não fazemos falta.

segunda-feira, dezembro 30, 2013

Blogue

Diálogo, hoje à tarde:

- Não percebo como é que tens temas para escrever todos os dias o teu blogue...

- Nem sempre tenho, é verdade.

- Então como fazes?

- Arranjo...

Paulo Ferreira

Paulo Ferreira é um excelente jornalista económico. Conheci-o ao tempo em que ele trabalhava no "Diário Económico". Era diretor-adjunto, com Sérgio Figueiredo como diretor. Recordo-me de termos tido uma curta mas divertida polémica, já não sei a propósito de quê. Ficámos amigos. Nos anos seguintes, vi-o comentar economia na televisão, sempre de uma forma discreta, acessível, bem fundamentada, sem o "rei na barriga" de algumas vedetas do setor.

Paulo Ferreira sai agora de diretor de informação da RTP. Vai assim ser mais fácil marcarmos o almoço que, há semanas, havíamos combinado.

Em tempo: Paulo Ferreira vai passar a ter uma coluna semanal no "Diário Económico". Ficaremos "colegas"...

domingo, dezembro 29, 2013

El Porto

Nos restaurantes e nas lojas, os empregados já arriscam o "portuñol" sem se rirem. Eles e elas, com a decibélica sonoridade pública ibérica, comentam montras e chamam pelo "cariño" no passeio das Cardosas ou à porta dos bares da Galeria de Paris. Os espanhóis "invadem" - e fazem muito bem, só podemos felicitar-nos por isso! - o Porto nos dias de hoje, chamados pelos preços de um país em saldos de si mesmo, por uma cidade sobriamente acolhedora, com a pedra das casas e o esconso das vielas a lembrar-lhes, confortavelmente, a sua terra, em especial a Galiza, que é também uma parte de nós mesmos.

Mas a Espanha já por cá estava antes dos espanhóis chegarem. No novo e excelente Vinium, fui recebido por um espanhol e muito do menu deve bastante a "nuestros hermanos". No Hotel da Música, a loiça era Porcelanosa. Saída a porta, dou de caras com uma Zara. Entrado no Península ("por supuesto"), a primeira loja era Purificación Garcia, ao fundo o Adolfo Dominguez e a Bimba & Lola, com a Carolina Herrera, do outro lado, a reforçar a marca da "hispanidad". Atravessando a rua para o renovado mercado do Bom Sucesso, por lá temos a "tienda" do "jamón" Joselito, com o Cinco Jotas disponível e, um destes dias, aportará por ali o imbatível Maldonado.

Para mim, que gosto e admiro a Espanha, isto são só boas notícias. Espero, contudo, que as nossas empresas sejam também capazes de se colocar na primeira linha do mercado espanhol, logo que se confirmem os sinais de recuperação económica. E que os governos portugueses estejam mais atentos à necessidade de lutar contra o tropismo protecionista que os nossos únicos vizinhos terrestres não deixam regularmente de assumir, seja em obstáculos não pautais ao comércio, seja em dificuldades administrativas que por vezes inviabilizam a presença portuguesa em setores económicos espanhóis. É que, antes da crise, o mercado português representava para a Espanha mais do que a totalidade do seu comércio com todas as suas antigas colónias nas Américas. Sabiam? Os empresários portugueses sabem bem do que falo.

Guiné-Bissau

O embarque forçado de dezenas de cidadãos sírios num avião da TAP, sob pressão das autoridades guineenses, constituiu um ato da maior gravidade e representou um gesto de clara hostilidade para com Portugal. A questão, contudo, tendo uma indiscutível dimensão bilateral, não pode deixar de ser tratada, em prioridade, no quadro internacional, perante o qual deve ficar bem claro que a administração de facto que domina Bissau age à margem das normas mínimas que um qualquer Estado deve respeitar na ordem externa. A acrescer às acusações de cumplicidade no narcotráfico, o governo saído do golpe militar anti-constitucional projeta agora esta nova imagem delinquente e isto não pode passar impune perante a comunidade internacional. Nenhum argumento de realpolitik deve sobrepor-se à necessidade de Portugal dever estar, neste caso, na primeira linha de mobilização de vontades para promover a condenação de um Estado pária que é como a Guiné-Bissau de hoje se apresenta ao mundo.

Portugal pode e deve também retirar todas as consequências, no plano bilateral, das inaceitáveis, por desrespeitosas, declarações de responsáveis guineenses face à legítima expressão de indignação formulada pelas suas autoridades (e era importante que se soubesse que decisões o nosso governo tomou já nesta matéria), mas só se fragilizará se se continuar a deixar envolver numa "guerra" de argumentos através da qual a parte guineense procurará criar fórmulas sucessivas de diversão, iniciadas com o caricato "relatório" sobre o incidente e prolongadas agora com "questão" as dívidas da TAP. 

A condenação essencial que é importante garantir para este ato de pirataria - e é como ato de pirataria que o assunto deveria ter sido tratado por Lisboa desde o primeiro momento - é, naturalmente, no campo multilateral. Com firmeza e sem tibiezas, nomeadamente sem se deixar impressionar pelos apelos apaziguadores da comunidade dos interesses, que não podem nunca sobrepor-se aos princípios que sempre compete a Portugal defender na ordem externa, o nosso país deveria ter ido muito mais longe do que até agora se sabe ter ido no processo de denúncia e isolamento das autoridades guineenses, quer no plano multilateral europeu (mas não só), quer no âmbito da mobilização da solidariedade por parte da CPLP, que curiosamente não se viu nem ouviu. Mas, de facto, não tendo hoje Portugal, na prática, um representante diplomático junto da organização - inacreditável situação a que a nossa comunicação social não presta a menor atenção - como poderia o nosso país utilizar o quadro lusófono como uma das frentes para tratar devidamente este assunto?

Com pena, temo que nos deixemos enredar num processo que, com o passar dos dias, e com a prestimosa ajuda das agências portuguesas de comunicação - que, nos últimos dias, ajudam Bissau a "plantar" entrevistas, declarações e até "notícias" na nossa imprensa - , acabará por "beneficiar o infrator" ou, pelo menos, deixar passar impune esta falta. Espero bem estar enganado...

sábado, dezembro 28, 2013

Décadas

Faz hoje precisamente 40 anos. Encontrámo-nos com os padrinhos num café na praça de Londres. Descemos a Guerra Junqueiro, subimos a um cartório e assinámos o que havia para assinar. O padrinho estava tão bem aperaltado que o conservador lhe perguntou se era ele o noivo! Acabada a cena, fixada para a posteridade por uma máquina a que o dono se tinha esquecido de tirar o filtro amarelado que à época se usava muito para atenuar o sol (o que fez com que o nosso genuíno sorriso, registado na ocasião, tivesse ficado, para sempre, amarelo), lá seguimos todos (o "todos" eram os noivos e os dois padrinhos) para uma jantarada que, não sei bem porquê, foi em Sesimbra. Foi assim que esta história começou. Ou melhor, ela verdadeiramente começou antes, pelo que hoje vamos comemorá-la, também com pouca mas muito boa gente, isto é, com dois amigos (e respetivos pares) que, vai para cinco décadas, testemunharam o início de tudo.

sexta-feira, dezembro 27, 2013

A outra cidade

Vi-o ontem, a dar comida aos pombos. Deve ter cerca de 80 anos. Na Vila Real da minha adolescência, um tempo em que a homofobia tresandava na sociedade portuguesa, era objeto regular de sorrisos irónicos, quando não de "bocas" soezes, ao cruzar, com passos curtinhos e andar bamboleante, os nossos grupos de adolescentes, "armados" em machistas. Viamo-lo passear sozinho ou com outro amigo de perfil público similar. Às vezes, perdia-se com soldados "do 13", pelos caminhos do Circuito. Fazia então parte de um grupo de figuras que viviam num outro mundo, nessa sociedade de província que, nos anos 50 e 60, deve ter sido um espaço asfixiante e trágico para quem era forçado a desafiar a "normalidade" instalada. Esta é também uma imagem, bem menos gloriosa mas seguramente inevitável para a época, da cidade da minha juventude.

quinta-feira, dezembro 26, 2013

"Cavaleiro Andante"

                                     
O "Cavaleiro Andante" moldou para sempre o meu imaginário. Algumas memórias fortes que marcaram a minha infância e juventude foram fixadas a partir dessa incomparável revista de banda desenhada (na altura, dizia-se "de quadradinhos"), que acolhia preferentemente os autores tributários da "escola belga" de BD, e que abriu caminho aos primeiros desenhos portugueses. Mas a revista tinha muito mais: falava-nos de história, de desporto, de literatura, trazia jogos e promovia a interação com os seus jovens leitores. O "Cavaleiro Andante" nasceu em 1952, tinha eu quatro anos, e durou dez anos. Observando alguns números mais antigos e o facto de várias histórias neles inseridas permanecerem na minha memória, concluo que, muito provavelmente, eu tenha então lido restrospetivamente toda a coleção. Durante anos, pela casa dos meus pais, havia números dispersos dessa revista semanal que tão importante fora para a minha formação. Fui assim matutando na possibilidade de vir a reconstituir a coleção completa da revista.

Um dia, em 1986, decidi colocar um pequeno anúncio em "A Capital", onde dizia estar interessado em adquirir a coleção completa do "Cavaleiro Andante". Surgiu uma única resposta. Numa noite, fui a uma cave na avenida Dom Carlos, em Lisboa, onde vivia o vendedor. Era um homem bastante mais velho do que eu. Tinha à venda uma excecional coleção, a que faltavam apenas meia dúzia de números, o que me satisfazia por completo. A conversa nunca a esquecerei. O homem mantinha as revistas embrulhadas em jornais e deixou claro que desfazer-se delas lhe custava bastante. Os olhos brilhavam-lhe enquanto me contava que, ao longo dos anos, tinha conservado cuidadosamente essa publicação que, também para ele, fora da maior importância. A partir de certa altura, a sua ideia fora completar a coleção para a oferecer ao filho. Porém, para sua grande desilusão, o filho não manifestara o menor interesse e, agora, ele tinha escasso espaço para a manter. Por isso, ao ver o meu anúncio, decidira-se a vendê-la. Não tive coragem para regatear o preço que me pedia: "quinze contos".

É assim que hoje sou um feliz proprietário da coleção do "Cavaleiro Andante". Encadernei-a, conservo-a com cuidado e abro-a com alguma frequência, com um prazer que só aqueles que foram leitores fiéis da revista têm condições de perceber.

quarta-feira, dezembro 25, 2013

O fuso de Caracas


Há uns dias, na madrugada da internet, "cruzei-me" com um amigo, que vive numa cidade da Europa. Nada de especial, não fora o caso de eu estar "ainda" acordado e ele estar "já" a pé. Trocámos algumas graçolas e fui-me deitar.

Falava depois disto a um outro amigo, deste meu vício, que tem décadas, de entrar pelas madrugadas sempre que estou em férias em Vila Real, aproveitando para ler (jornais, livros ou papeladas), ver filmes ou, simplesmente, escrevinhar qualquer coisa. Descobri então que ele também é dessa mesma "raça". Na conversa, ambos coincidimos na constatação da dificuldade de, nestas circunstâncias, indicar a terceiros uma hora da parte da manhã a partir da qual possamos ser contactados, dentro do nosso assumido estatuto de "late risers", quando em férias. Porém, ele já encontrou uma fórmula para isso: a quem lhe faz a pergunta, diz que está "pelo fuso de Caracas", o que significa que se deita e levanta quatro horas e meia mais tarde do que seria expectável. 

Ele há cada "Maduro"!

terça-feira, dezembro 24, 2013

Os meus livros

Há uns anos, dei por mim a olhar para umas estantes onde tinha grande parte dos meus livros e a interrogar-me sobre o que fazer-lhes. Nunca fui um bibliófilo no sentido clássico. Não tenho raridades bibliográficas, embora possa ser proprietário de alguns livros que, não sendo caros, é difícil encontrar, mesmo nos alfarrabistas. Não tenho uma "biblioteca" no sentido tradicional, organizada por secções. Fui comprando livros ao sabor dos tempos, às vezes ao ritmo de algumas modas intelectuais, outras por via de escolhas políticas, muitas mais porque a atualização profissional ou os gostos do momento me levaram a adquiri-los. Comprei livros que não li de todo, alguns completamente desnecessários, outros que só folheei, outros ainda porque achava que um dia ia ter tempo para os ler e não tive, para além dos que eram tão baratos tão baratos, numa feira do livro ou num saldo, que achei pena não ficar com eles. Com escassas exceções, sei onde e por que razão comprei cada livro. Gosto muito de oferecer livros, mas nunca dei um único livro dos meus. A minha biblioteca é hoje, assim, uma mescla imensa, onde se pode encontrar um pouco de tudo, desde ficção avulsa a muitas biografias e memórias, bastante história contemporânea, uma imensidão de dicionários, enciclopédias e obras de referência, muita coisa sobre a Europa e relações internacionais, montanhas de "current issues" e o que restou de tempos "esquerdalhos" - Marx & companhia. Mas há também publicações periódicas encadernadas, folhetos vários, literatura clandestina, etc. O único setor com alguma coerência e bastante completo são centenas de volumes relativos às lutas contra o Estado Novo e à política portuguesa contemporânea (onde me deve faltar muito pouco do essencial).

Quando saí para o meu primeiro posto diplomático, no final dos anos 70, levei comigo quase todos os meus livros de então, umas largas centenas. (Curiosamente, eram, de forma esmagadora, em língua portuguesa e francesa; o inglês viria mais tarde). A partir daí, fui circulando pelo mundo acompanhado de apenas alguns desses livros, mandando os restantes para Portugal, espalhados entre a casa em Lisboa e a dos meus pais, em Vila Real. E comprando outros, claro. Passei, a partir de então e para sempre, a ter livros espalhados por vários locais. Às vezes, chegou a acontecer-me comprar o mesmo livro duas vezes. Depois dos últimos doze anos passados ininterruptamente no estrangeiro, a situação tornou-se fisicamente insustentável. Assim, no início deste ano, cheguei a Portugal com mais alguns milhares de livros "às costas". Nas estantes que tinha por cá já não cabia mais nenhum! Havia deixado em Paris quase quatro centenas, mas alguns milhares que me acompanhavam (e que cresceram dia a dia, em Paris) tiveram de ir diretamente para Vila Real. Para estantes? Não, em muitas dezenas de caixotes que jazem na maior divisão de uma casa vazia. Se somar os que tenho por Lisboa, juntos com algumas centenas que o meu pai me deixou, estaremos a falar de cerca de dez mil livros.

Que fazer? Decidi começar a doar esse espólio bibliográfico à moderna Biblioteca Municipal de Vila Real. Não foi uma decisão fácil de tomar. Tive a sorte de encontrar na pessoa do diretor da biblioteca, Vitor Nogueira, uma figura pouco comum na cultura de Vila Real, o interlocutor que me sossegou. Com ele combinei o "modus faciendi" desta operação progressiva. A biblioteca apõe em cada livro o carimbo que a imagem mostra, é feita uma recensão de cada volume, que segue depois para a secção respetiva. Por via informática, posso ir seguindo (tal como qualquer outro utente) o curso deste trabalho de integração dos livros na Biblioteca, inseridos num "fundo" próprio. E vou ficando com a certeza de que há quem trata os meus livros com o cuidado que (eu acho que) eles merecem. Tenho vindo a enviar para a Biblioteca tudo aquilo que entendo já não me fazer falta, o que naturalmente significa que as coisas que considero mais interessantes vão manter-se, por ora, em minha posse. Estão já por lá cerca de oito centenas de livros. Outros se seguirão no início de janeiro. Esta é uma "operação" necessariamente lenta, porque acarreta o desligar psicológico de objetos com que fomos habituados a viver. E isso, como se sabe, está longe de ser uma coisa fácil. Só ficaria preocupado, e as pessoas próximas de mim o deveriam ficar também, se um dia eu decidisse, de repente, dar todos os meus livros. Isso significaria que havia desistido de uma parte da vida. Porque os livros foram e são uma das partes mais importantes dessa vida.

Bom, e agora só espero que ninguém me ofereça livros logo à noite... 

segunda-feira, dezembro 23, 2013

MacShane ou McShade?

Fiquei preocupado ao ler, há minutos, que havia sido condenado a pena de prisão Denis MacShane, antigo secretário de Estado britânico dos Negócios estrangeiros (a nossa imprensa cai na esparrela de traduzir "minister" por "ministro" e "secretary of State" por "secretário de Estado", como pareceria lógico, sendo que significam exatamente o contrário), acusado de falsificação de despesas de viagens. A preocupação deveu-se ao facto da notícia (talvez por um subliminar deslize cultural do autor) começar por chamar-lhe "MacShade" (com D). Só depois passa a designá-lo por "MacShane" (com N). O que me sossegou mais. 

Mas que importância tem isso, perguntará o leitor? Essa agora! Tem toda a importância! É que "Dennis McShade" é, acreditem ou não, um nome bem português e as trapalhadas em que ao longo da sua existência esteve envolvido tiveram sempre outra dignidade criminal. Trata-se do nome do autor de livros policiais tão importantes como "Mão direita do diabo" ou "Mulher e arma com guitarra espanhola".

Mas então, perguntarão os céticos e menos iniciados nestas artes, é português e chama-se "Dennis McShade"? Bom, na realidade, assinava às vezes assim (como Roussado Pinto subscrevia como "Ross Pynn"), mas o seu verdadeiro nome era Dinis Machado - um excelente, embora pouco prolífico, escritor em língua portuguesa, que, entre outros textos, deixou essa obra maior que é "O que diz Molero".

Nada de confusões! Ofereçam um verdadeiro Dennis Mcshade neste Natal!

Fortunato da Câmara

Não posso deixar de estar feliz: o livro "Os Mistérios do Abade de Priscos", de Fortunato da Câmara, que tive o gosto de prefaciar e apresentar nos seus lançamentos em Lisboa e no Porto, acaba de ser galardoado com o "Gourmand World Cookbooks Award 2013", na respetiva categoria.

Quem (ainda) quiser dar uma bela prenda de Natal ainda vai a tempo de oferecer este magnífico livro, de leitura muito agradável e muito bem documentado. Quem o ler passará a apreciar muito melhor aquilo que, de futuro, lhe for apresentado à mesa.

domingo, dezembro 22, 2013

O rapto

Creio que foi em 1983. Era um casal muito jovem. Ainda estou a vê-los a entrar, pela primeira vez, no meu gabinete, na embaixada em Luanda, onde tinha a meu cargo as questões relativas aos professores cooperantes.

(Como um dia já aqui expliquei, Portugal assegurou, por muito tempo, o envio de cooperantes para as antigas colónias, em especial professores, pagando-lhes uma parte do salário e preservando-lhes o lugar de base. Coube-me, no início da carreira, pré-selecionar os primeiros professores para S. Tomé e Príncipe e a segunda "leva" para a Guiné-Bissau. Em Angola, voltaria a ter os professores cooperantes sob a minha responsabilidade. À distância, acho curioso constatar que, sendo esse tempo um dos mais complicados nas relações bilaterais entre Lisboa e Luanda, a cooperação no ensino se mantivesse intocada).
 
A Dora e o seu companheiro haviam chegado há pouco de Lisboa. Estavam cansados, algo aturdidos com Luanda, uma cidade difícil, incómoda para deslocações, com imensas limitações em matéria de abastecimentos. A proposta das entidades angolanas era que fossem para Sumbe, antiga Novo Redondo, cidade marítima situada umas centenas de quilómetros a sul de Luanda. Recordo-me que se passaram alguns dias antes que isso acontecesse. Havia uma certa preocupação com essa deslocação. Ao que julgo, seriam os únicos professores cooperantes nessa zona que a guerrilha da Unita de há muito rondava.

Os meses passaram. Um dia, fomos informados que a Dora e o companheiro, bem como cooperantes de outras nacionalidades, haviam sido raptados pela UNITA. Durante semanas, foram conduzidos a pé através de Angola, numa viagem de muitos e muitos quilómetros, da costa até à Jamba, no extremo sudeste do país. Lembro-me da nossa constante preocupação com a possibilidade da coluna poder ser atacada, nesse percurso, pelas forças governamentais angolanas, nomeadamente por via aérea, colocando em risco a vida dos cooperantes. Em especial, tenho presente - e um "antigo vizinho" leitor deste blogue recordará bem isto - um jantar em minha casa, com a presença de um oficial das FAPLA, em que esta questão foi discutida em termos que chegaram a ser muito tensos.

Tudo acabaria em bem. A Dora Fonte e o seu companheiro viriam a ser entregues pela UNITA a instituições internacionais. Depois do seu regresso a Portugal, trocámos mensagens e, como é da lei da vida, acabámos por nunca mais nos ver. Há dias, a Dora contactou-me (vantagens do Facebook). Lançou um livro sobre essa sua fantástica aventura de juventude em Angola. Tenho uma grande curiosidade em lê-lo.

Gisela João

Há já alguns anos, creio que em 2005, ao tempo em que dirigia a TSF, António José Teixeira moderou um debate onde se fez um balanço do ano que terminava. Os convidados eram David Fonseca, Inês Pedrosa, Ana Lourenço e eu próprio. Foi um exercício divertido, dadas as perspetivas diferenciadas que se projetaram na discussão. No final, perguntado quem era, para mim, a figura portuguesa do ano, lembro-me que escolhi Ricardo Araújo Pereira.

Assisti, há pouco, a um exercício idêntico, moderado pelo mesmo jornalista, agora na SIC Notícias. Para o que aqui interessa, quero notar a genuinidade das intervenções de Gisela João, a fadista de Barcelos que é a mais recente lufada de ar fresco na canção nacional. Com uma linguagem simples, transpirando sinceridade, comentou a vida difícil de pessoas que tinha encontrado ao longo do último ano, emocionando-se com os casos de crianças que dão entrada nos hospitais apenas para matar a fome e com famílias que não protestam com a vida de carência que sofrem, porque a acham tragicamente natural. No final, ao ser interrogada sobre quem era, para ela, a figura portuguesa do ano, não hesitou e respondeu: a maioria dos portugueses. Grande Gisela João.

Para quem a não conhecer, aqui fica uma faixa do seu único CD, que vai ser a minha prenda de Natal para algumas pessoas.

sábado, dezembro 21, 2013

Boas Festas!

Para todos quantos por aqui passam, regular ou episodicamente, desde os mais críticos aos mais concordantes, dos meros leitores aos mais participantes, ficam os meus sinceros votos de muito Boas Festas. 2014 está aí à porta e de uma coisa podemos ter a certeza: vai ser um ano diferente. 

sexta-feira, dezembro 20, 2013

IRC

Tenho a firme sensação de que a maioria dos observadores, entretidos com a "abada" dada pelo Tribunal Constitucional ao projeto de confisco retroativo que o executivo se preparava para fazer aos reformados da Função Pública, não se deram conta do que, verdadeiramente, representa o acordo transpartidário garantido no tocante ao IRC.

Basta responder a duas questões para se perceber isto.

Se a proposta original do governo tivesse sido imposta, o que iria acontecer ao novo modelo de tributação do IRC no dia em que o PS chegasse ao poder? Ia ser mudado, como é evidente.

Qual é uma das queixas mais vulgares, por parte dos potenciais investidores, face ao sistema fiscal português? A sua imprevisibilidade.

Graças a este acordo, a estabilidade fiscal, em termos empresariais, está garantida por muitos e bons anos.

Há também uma terceira questão cuja resposta, a mim, me parece óbvia: a quem é que as PME's portuguesas ficam a dever um considerável benefício fiscal?

Os novos "camaradas"

Ouvir Pacheco Pereira, como há pouco ouvi, considerar que o Partido Socialista não deveria ter-se associado ao modelo final da reforma do IRC, mesmo após a aceitação de algumas das suas principais propostas, apenas porque isso favorece a estratégia política da maioria, só não é uma surpresa porque os últimos meses fizeram emergir na política portuguesa um estranho fenómeno. Esse fenómeno é a sedução que a oposição tem pelo discurso, às vezes bem radical, de figuras que, sendo originárias desta maioria, alimentam hoje um discurso fortemente crítico do atual poder. Ironicamente, parece que os mesmos argumentos, quando assumidos por figuras próximas dos partidos conservadores, têm "mais encanto" e acabam mesmo por ter uma maior credibilidade. Não duvido que tenha sido a genuinidade da razão política que levou essas pessoas a mudar de ideias, confrontando assim as posições atuais dos partidos de que estiveram próximas. Mas, em alguns casos particulares, como que deteto na atitude desses novos "camaradas" da esquerda uma espécie de revanchismo que, não diminuindo a sua "utilidade" para a estratégia da oposição, não deixa de ser um tanto estranha. A mim, pelo menos, o fenómeno causa-me alguma incomodidade, devo confessar. Mas, se calhar, sou eu que estou a ser demasiado preciosista... 

quinta-feira, dezembro 19, 2013

... e ninguém me deve dinheiro!

Se alguém me devesse dinheiro, se eu pretendesse que o fossem cobrar por aí, a quem é que entregaria o processo? A Maria do Rosário Mattos & Associados, claro. Qual "cobrador de fraque", qual quê?! 

Fico mesmo com pena de ter de constatar que não devo um cêntimo a ninguém, nem sequer a um banco, desses a quem todos nós pagamos (via BCE) os salários chorudos dos gestores. É que, se acaso tivesse alguma dívida, talvez tivesse o gosto de ser gentilmente procurado por essa invejável equipa profissional do salto alto, por essa elegância curvilínia com precatórias na fina pasta, arruando com estilo os processos pelas avenidas lisboetas, a caminho do domicílio de felizes devedores, prontos a pagar com gáudio, não apenas o cheque devido mas também todos os juros de mora, deste mundo e do outro. Essa é a equipa que agora surge filmada com olho de mestre, num preto-e-branco que quase sugere um perfume que se oferece pelo Natal, promovido pelas auroras de Paris. Com uma cobrança destas no horizonte, é quase um dever ficar a dever, para que nos cobrem como deve ser.

Que pena eu não pertencer ao grupo de quantos têm um pretexto para se relacionar com o escritório Maria do Rosário Mattos & Associados (veja aqui o delicioso filme). Mas não: para o bem ou para o mal, eu sou de contas certas! Que hei-de fazer?!

Pin político

Hoje e amanhã haverá Conselho Europeu. Os chefes de Estado e governo da União Europeia encontrar-se-ão em Bruxelas. Se notarem bem, verão que, para sua identificação e circulação através dos controlos de segurança, essas 27 figuras, bem como o presidente da Comissão europeia e o presidente do Conselho europeu, usarão na lapela um "pin", igual para todos. Os "pin" são sempre diferentes, de reunião para reunião. Os restantes membros das delegações usam, pendurados por um fio, cartões não nominativos de identificação, de duas cores diferentes, correspondentes às zonas a que têm acesso.

Todo os chefes de Estado e governo da UE usam "pin"? Não. A chanceler alemã e o presidente francês (era assim com Sarkozy, assim é com Hollande) parece considerarem que não necessitam de serem "identificados". No caso francês, aparentemente para "disfarçarem", os presidentes exibem as insígnias da grã-cruz da Légion d'Honneur. No caso alemão, nem isso. Enfim, há sempre alguns mais iguais do que outros.

No que toca ao uso de pins entre nós, e já com este governo, foi instituída uma espécie de patrioteirismo de lapela, com uma bandeirinha nacional a servir de elemento identificador dos ministros e secretários de Estado. Um amigo meu, muito maldoso, costuma dizer que as bandeirinhas têm duas vantagens. Nos casos de evidente "anonimato político" que afeta alguns governantes de segunda linha, elas servem para revelar o facto dessas figuras integrarem o "governo de Portugal" (uma bizarra formulação com consequência gráfica que tem infestado a correspondência oficial, desde 2011, substituindo subliminarmente o "S.R." de "Serviço da República"). Noutros casos, diz ele, a utilização do mini-símbolo nacional na lapela - que é um hábito americano, pouco comum deste lado do Atlântico - destina-se a recordar a alguns membros do governo o país que verdadeiramente representam. Para logo acrescentar: "como se vê, nalguns casos não dá resultado..."

Mas será que todos os membros do governo português usam a bandeirinha patrioteira! Não. Há um ministro a quem nunca ninguém viu o adereço alapelado. Quem será? E por que será?

União bancária

As coisas complexas são... complexas. Ontem, no intervalo de uma reunião de trabalho numa empresa, um colega estrangeiro trouxe-nos a novidade: já há acordo no "Ecofin" sobre a questão da União bancária, uma das questões mais importantes para a estabilidade económico-financeira europeia. Todos nos congratulámos com o facto, mas eu fiquei com uma dúvida residual. Conhecendo como se constroem os "êxitos" em Bruxelas, e o modo como eles são "vendidos" à imprensa, bem como as divergências que persistiam horas antes, fiquei algo cético e entendi dever esperar para ver.

Num tempo em que todos "somos" economistas, há temas cuja especialização devemos ter a prudência e a serenidade de só abordar quando conhecemos os seus contornos essenciais. Desde há muito que procuro falar e ter opiniões apenas sobre aquilo de que julgo saber alguma coisa - o que, infelizmente, às vezes está um tanto distante daquilo que realmente sei. E isto não é falsa modéstia. "Bitaites" de mesa de café, sobre temáticas técnicas, deixaram, há muito, de ser a minha especialidade. Por isso, por exemplo, falo sempre da "união bancária" com imensa prudência e parcimónia.

Hoje de manhã, no âmbito de uma benévola "conspiração" preocupada de que faço parte, no seio da qual refletimos regularmente sobre questões relativas ao futuro económico do país, alguém que "sabe da poda" sobre a muito especializada questão da "união bancária" explicou-nos que, afinal, tinha sido falso alarme: o "acordo" obtido em Bruxelas fora de mínimos, o essencial ficou por consensualizar e tinha acabado por fazer vencimento a posição da Alemanha. Para não variar.

Os malucos da bola

Estamos a meio da semana. É meio-dia e trinta e cinco. Abro, por um mero acaso, a televisão: SIC Notícias, RTP Informação, TVI 24, canal A Bola e Porto Canal transmitem conferências de imprensa, em direto, dos treinadores do Sporting e do Porto. Com ar grave e compenetrado, rodeados daqueles "stickers" de publicidade retangular que lhes preenche o NIB, os dois "misters" devem estar a elaborar, com grande profundidade, sobre essa coisa magna que é a próxima jornada. Escrevo "devem" porque, em minha casa, há a regra imutável de aplicar imediatamente o "mute" sempre que na imagem apareçam a falar treinadores, jogadores ou dirigentes de futebol (Sporting incluído, bem entendido), tal como já há muito é praticado, com escassas exceções de ocasião, para as tomadas de posição de representantes de grupos parlamentares ou políticos em debate.

Já vivi em vários países: não conheço nenhum outro em que haja uma dependência tão forte das televisões face ao futebol. E, já agora, da política dos políticos.

Conversas

Há dias, "O Sol", numa nota anónima que traz a assinatura virtual de Pedro d'Anunciação, inseria uma hiper-exagerada mas divertida nota segundo a qual raro era o dia em que eu não andasse a palestrar em ocasiões públicas, por esse mundo fora. Embora as coisas estejam muito longe de ser como o jornal as pinta, a verdade é que, neste quase um ano que decorreu desde o meu regresso a Portugal, participei num número significativo de debates, às vezes sozinho, outras vezes em painéis, quase sempre em Portugal, mas também várias vezes no estrangeiro, além ter feito a apresentação de alguns livros. Em mais do que uma ocasião, tive de fazer uma grande e cansativa "ginástica" para poder aceitar esses convites, mas, com toda a sinceridade, nunca me arrependi dessa minha disponibilidade para partilhar e discutir ideias.

Até ao Natal, vou ter ainda duas ocasiões dessas. Hoje à noite, em Lisboa, falarei das relações Norte-Sul para pessoas com formação em matéria de segurança e defesa. Amanhã, em Vila Real, num painel com Luís Nazaré e Rui Moreira (esse mesmo, o presidente da Câmara do Porto), abordarei o tema da internacionalização das nossas economia. Depois, "sopas e descanso". Até ao ano.

quarta-feira, dezembro 18, 2013

Ronnie Biggs

Morreu hoje Ronald Biggs. Muito pouca gente já se lembrará do impacto que teve o assalto, comandado por Biggs, ao comboio-correio britânico, em 1963. A ousadia e engenhosidade do roubo como que "absolveu" o crime perante muitos setores da opinião pública, britânica e não só. O seu percurso posterior, com fuga da prisão, saída para a Bélgica e Austrália, seguida de um exílio no Brasil, com uma imagem de vida folgada e marcada por uma espécie de ostensiva felicidade tropical, acabou por dar-lhe uma aura quase lendária. Ronnie Biggs passou a ser, aos olhos de muitos, uma espécie de "bom ladrão", quase acarinhado, salvo pela polícia britânica, que sempre o manteve sob observação. Quando, acabados que foram os recursos financeiros, Biggs "gave up" e regressou ao Reino Unido, esteve preso por vários anos e caiu quase no esquecimento. Como registo, ficou o filme "The Great Train Robbery", uma obra cinematográfica menor.

Há cerca de duas décadas, num impulso de curiosidade que frequentemente me leva a locais ligados a factos com algum significado marcante na memória pública, decidi ir visitar o cenário onde Biggs e o seu "team" cometeram a sua proeza, perto de Cheddington, em Buckinghamshire. Recordo-me que era um relativo descampado, com uma estrada secundária que passava sob a linha de caminho de ferro. As imagens do filme e as conhecidas fotos a-preto-e-branco ajudaram-me a reconstituir esse tempo de "bobbies" de capacete preto, num país que tem com o crime e com a respetiva literatura uma relação de atração única. 

Com o fim de Ronnie Biggs, acaba-se o tempo de um ladrão quase romântico. Aqueles que conhecemos não têm esse encanto.

Notícias da esquerda

Há dias, o deputado europeu Rui Tavares, anunciou a criação de um novo partido na esquerda do espetro político nacional, do qual ainda não se viu muito. Dias depois, soube-se que o antigo bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho Pinto, vai liderar uma lista nesse mesmo setor, em nome de um partido que, como outros, apenas emerge nos períodos eleitorais. Ontem, um grupo significativo de personalidades, também de esquerda, veio dizer da sua vontade de também concorrer às eleições europeias, com listas próprias, embora com uma, por ora insondável, mensagem de "unidade". À medida que nos aproximarmos das eleições europeias de maio (é verdade, este ano é mais cedo) surgirão por aí os MRPP's e o resto dos egos progressistas, desde o centro-esquerda aos "verdadeiros" esquerdistas, para quem os tempos de sufrágio são um regular momento de Lázaro. Claro que também veremos o PCP, agora inchado de amanhãs que cantam ruas cheias de CGTP's, acompanhado por essa força de larga expressão que são "Os verdes", subir, impante, à tribuna do descontentamento. O Bloco de Esquerda, ou o que dele então restar - com a pluralidade das suas componentes de ex-PCP's, maoístas, trotskistas e católicos progressistas - também irá tentar dar o ar possível da sua graça. Finalmente, "last but not least", o PS, sem o qual a restante esquerda bem pode entrar toda no mesmo caldeirão mas nunca conseguirá fazer a poção mágica de vitória, lá terá a sua lista, fruto de laboriosos arranjos entre as suas "sensibilidades". Sobra mais alguma coisa? Quantos sorrisos na S. Caetano e no Caldas não haverá...

terça-feira, dezembro 17, 2013

Draghi e nós

Mario Draghi disse aquilo que toda a gente já sabia mas que alguns, que acham que os mercados "nasceram ontem", teimavam em não querer assumir: Portugal vai ter de passar por um programa de ajuda externa, depois da saída da "troika". Não é uma boa notícia, mas está longe de ser uma surpresa e é uma realidade que vamos ter à nossa frente. E é igualmente a prova provada que o processo de ajustamento, da forma que foi planeado ou no modo como foi desenvolvido, não atingiu aquele que era um dos seus objetivos centrais: fazer regressar o país ao mercado de financiamento internacional, a taxas comportáveis, por forma a sustentar o pagamento do nosso serviço de dívida, que tem um impacto substancial sobre o défice, e a progressiva atenuação da própria dívida que exceda os 60% do PIB. Resta-me, porém, um mistério sobre o qual, até hoje, nunca ouvi uma palavra de quem subscreveu, por parte de Portugal, o "tratado orçamental": como é que o país conseguirá cumprir as determinantes constrangentes desse mesmo tratado, não apenas em matéria de dívida mas, essencialmente, em termos de limites para o défice estrutural?

Público & privado

Do resultado da chamada "10ª avaliação" parece concluir-se que a "troika" ainda insiste em reduções nos salários no setor privado. O governo, ao que se sabe, resiste. O que bem se compreende. O executivo percebeu, aquando da saída para a rua da população portuguesa, em setembro de 2012, por virtude da questão da TSU, que "abrir um guerra" com o país que vive da economia privada tinha um preço muito mais elevado do que concentrar os cortes no setor público, desde os salários às reformas, passando pelo sinónimo espertalhote de desemprego que passou a ser a palavra "requalificação". Por exemplo, mudar os escalões do IRS, introduzindo um fator de maior proporcionalidade e justiça, seria um suicídio político. As eleições vêm aí e tudo quanto afete os servidores públicos, presentes ou passados, até vai bem com a filosofia de quem gere o Estado detestando-o, nele concentrando a culpa da situação que o país vive. Se algumas das medidas que o governo incluiu no orçamento para 2014 vierem a revelar-se inconstitucionais, o pouco escondido plano B será, uma vez mais, o setor público, esse "bombo da festa" tão à mão de semear. É tudo tão evidente...  

Norte-Sul

No termo de janeiro de 2014, completarei um ano na direção do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa. Foi uma experiência muito interessante, sem o menor encargo financeiro para ninguém (o meu trabalho foi "pro bono", desde a primeira hora), na chefia de uma estrutura que vai completar quase um quarto de século, desde sua criação. O Centro passa por um tempo de reflexão sobre o seu papel no quadro do Conselho da Europa, depois de alguns debates que se iniciaram antes da minha chegada. Os próximos dois anos serão essenciais para o desenho desse futuro.

O balanço da ação do Centro Norte-Sul é, a meu ver, muito mais do que simplesmente positivo. Ao longo destes anos, com diversos diretores e centenas de pessoas que passaram pelos seus quadros, o Centro revelou-se um excecional mobilizador de vontades, dispondo hoje de uma rede de contactos que é dificilmente substituível, no âmbito da atividade externa do Conselho da Europa. Isso aconselha a que o Centro, de forma cada vez mais integrada, responda como uma estrutura de relevo no âmbito da "política de vizinhança" da sua organização-mãe.

Mas faz o quê? esse Centro, perguntar-se-á o leitor menos atento. Ao longo dos anos, o Centro tem vindo a ser a "janela" do Conselho da Europa para o Sul. Num primeiro tempo, competiu-lhe "explicar" o Sul às opiniões públicas do Norte, sublinhando a importância da solidariedade à escala global, as relações de interdependência no mundo, as responsabilidades coletivas face às situações de desequilíbrio e desigualdade entre os povos. Com a passagem dos anos, o Centro voltou-se mais para esse próprio Sul e procurou ser útil, no seu seio, à construção de uma consciência democrática, à aculturação de um corpo muito vasto de direitos, dando como referente - mas não como "benchmark" impositivo - o trabalho magnífico que, desde 1949, o Conselho da Europa foi desenvolvendo, num universo que hoje envolve 47 países.

Hoje em dia, o centro Norte-Sul, utilizando o diálogo intercultural como instrumento de trabalho, promove ações ligadas à chamada educação global, ao reforço da cidadania democrática, ao apoio à organização e estruturação da sociedade civil, nomeadamente nos países do Magrebe, onde tem vindo a concentrar o essencial das suas ações. Os "alvos" prioritários atuais do trabalho do Centro são os jovens e as mulheres, procurando destacar e apoiar o seu papel nas muito diversas sociedades em que se inserem, tentando que governos, parlamentos e autoridades regionais e locais estabeleçam, por seu intermédio, com as estruturas da sociedade civil, uma relação institucionalizada cada vez mais eficaz.

Ontem, à volta de um almoço de Natal, esteve toda a nossa jovem, entusiasmada e muito feminina equipa. Desejei-lhes um ano de 2014 feliz e produtivo. A partir do final do próximo mês de janeiro, esse percurso vai ser prosseguido sob a orientação de um outro diretor. O meu mandato de um ano terminou e, infelizmente, não tenho disponibilidade pessoal para o renovar. Mas foi, como acima disse, uma bela experiência. Deixo no Centro bons amigos e não tenciono perder de vista a sua atividade no futuro.

segunda-feira, dezembro 16, 2013

Algo de novo?

Depois da infindável saga em que se transformou a formação do novo governo alemão, esperar-se-ia que o resultado final desse laborioso exercício trouxesse algumas novidades. Em especial, muitos "espetadores comprometidos" (para usar a expressão consagrada de Raymond Aron), olhando da estranja, estariam curiosos para saberem se a entrada dos social-democratas na "grande coligação" acarretaria alguns efeitos na política europeia que mais imediatamente nos interessa. 

A aquilatar por aquilo que se sabe, as resultantes do acordo de governo têm incidências essencialmente internas, quer nalgumas políticas mais emblemáticas para o SPD, quer na distribuiçào de lugares. A verdade é que temos de nos resignar a uma realidade que sempre emerge nos executivos das maiores potências: eles projetam essencialmente os seus interesses nacionais, respondem perante os seus cidadãos e, com alguma naturalidade, "estão-se nas tintas" para os interesses de quem olha de fora. É assim agora na Alemanha, foi sempre assim no caso dos Estados Unidos. O que há de novo é que esta terá sido a primeira vez que os resultados de uma eleição alemã foram aguardados com tanta expectativa, o que só prova a crescente relevância da Alemanha na vida europeia, isto é, nas nossas vidas.

Agora, resta esperar. Desde logo, pelas primeiras declarações de Wolfgang Schäuble, o "novo" ministro das Finanças. Imagino que, para os lados de S. Bento, devam estar a matutar se ele ainda se lembra daquela curta conversa com Vitor Gaspar - gravada incautamente por uma televisão portuguesa -, cujo teor recomendo que seja regularmente revisitado. Eu, pelo menos, volto a ela com regularidade, porque entendo que, mais do que qualquer declaração, ela explica, melhor que tudo, grande parte das ações e das omissões do governo português nos últimos dois anos e meio.

O duplo

- Não percebo a preocupação que andas por aí a espalhar pelo facto da política externa estar hoje dividida entre o Rui Machete e o Paulo Portas...

Fiquei um pouco surpreendido. Aquele meu amigo é um "institucional" e a última coisa que dele esperava é que achasse bem que a nossa representação internacional aparente ter, nos dias que correm, uma liderança bicéfala, tipo Bloco de Esquerda.

- Então tu achas bem que não se perceba quem é que, de facto, chefia a diplomacia portuguesa? Põe-te no lugar dos embaixadores estrangeiros em Lisboa?

- Essa agora! É facílimo resolverem isso, até pelo telefone...

- Pelo telefone? Diz lá então como é!

- É muito simples. No telefone, colocam uma gravação: "Seja bem vindo ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Se se tratar de questões de natureza política, carregue na tecla 1 e será encaminhado para o palácio das Necessidades. Se se tratar de questões de natureza económica, carregue na tecla 2 e será encaminhado para o palácio das Laranjeiras". Qual é a dificuldade?...

De facto...

domingo, dezembro 15, 2013

Exemplar

Sabia (não sou ingénuo) que o último post que publiquei iria suscitar reações. Escrevi-o com essa convicção (talvez mesmo com esse objetivo, devo confessar). Fiquei tão estimulado com alguns dos comentários suscitados que deixei que eles "pingassem docemente" por quase dois dias. Foi um interessante teste para se perceber melhor algum país que hoje somos. Leiam esses comentários (houve quatro que foram eliminados, porque, apesar de tudo, há limites para a linguagem admitida). É um exercício interessantíssimo. E exemplar! Por mim, diverti-me imenso, podem crer! E as "inscrições" sobre este tema ainda estão abertas até ao final do dia...

sexta-feira, dezembro 13, 2013

Coisas polacas

Nos tempos "da outra senhora", a variedade dos produtos ao dispor dos consumidores polacos não era muito grande. Tal como em outros países do "socialismo real", alguns tipos de fruta, eram considerados um bem quase raro. Contaram-me que, pelos Natais, todos os anos, o governo ordenava uma importação maciça de laranjas, oriundas de Cuba. Criou-se assim o hábito familiar, no dia 23 de dezembro, de presentear as crianças polacas com uma laranja. Esse hábito transformou-se em tradição. Hoje, além de haver mais liberdade e muitas mais coisas, há ainda mais laranjas no ritual dessa data, por toda a Polónia. Uma empresa polaca, detida por capitais portugueses, importará, nos próximos dias, de Portugal e de outras origens, 10 mil toneladas de laranjas, transportadas por 550 camiões, o que equivale a uma fila de 14 quilómetros de veículos. Uma fantástica operação logística para garantir que todas essas laranjas possam ser distribuídas no dia 23 de dezembro.

Nunca vi referido por nenhum órgão de informação que, em 2013, essa mesma empresa terá importado e vendido na Polónia seis milhões (não me enganei, são seis milhões!) de garrafas de vinho português? E que, desta forma, o vinho português representa hoje 28% de todo o vinho importado por aquele país.

O lesado

Estava à paisana. Cruzei-me com ele, há dois dias, na entrada de minha casa, cerca da hora de jantar. Identificou-se como agente da PSP. Muito educado, informou-me que tinha um mandado de detenção. Em meu nome. Por um instante, devo dizer, não "apreciei" excessivamente a ocasião. Por muita consciência tranquila que tenhamos, nunca nos sentimos muito à vontade numa situação destas.

Mandei-o entrar. Sentámo-nos e procurei analisar com calma o problema. O agente da PSP cumpria uma decisão. Um juíz havia decidido mandar deter-me, pelo facto de eu não ter comparecido a uma notificação sobre um processo. De facto, eu tinha faltado a essa intimação. Porquê? Porque, entretanto, havia recebido de um outro tribunal a informação de que o processo fora arquivado e, por uma presunção pateta, havia dado por adquirido que a presença à notificação já não era necessária, que teria havido um cruzamento da informação. Qual quê!? Cada uma dessas vias caminhava por si mesma, sem se ligar com a outra. E ali estava eu, prestes a passar uma noite numa esquadra, para ser presente na manhã seguinte a um juíz, que me notificaria sobre um processo que já estava arquivado. Perante a evidência do "misunderstanding", o agente policial tomou a sensata decisão de "desistir" da minha detenção.

Mas, afinal, que diabo fizera eu, para estar metido numa alhada dessas? Uhm! Não há fumo sem fogo, estarão a pensar alguns leitores. A coisa é, afinal, muito simples e, precisamente por essa simplicidade, bastante ridícula. Há meses, num terreno abandonado de que sou proprietário, no Norte, declarou-se um incêndio, provocado por um descuido de um vizinho. A GNR tomou conta da ocorrência, o Ministério Público instaurou um inquérito. Eu passei à qualidade de "lesado". Não mexi uma palha. Neste entretanto, ocorre o arquivamento do processo. E, agora, ali estava eu, o lesado, a contas com a Justiça. Ele há cada uma! (Julgo que o assunto se terá entretanto resolvido. Mas nunca fiando...)

quinta-feira, dezembro 12, 2013

Pacífico ou Atlântico?

Sempre achei muito importante saber pensar em "contra-ciclo". É o que fazem o investigador universitário português Bernardo Pires de Lima e o seu colega sueco Erik Brattberg, num blog do "The Huffington Post", ao ousarem escrever "Why the Atlantic, not the Pacific, may dominate the 21st century".

Deixo um extrato significativo:

To see why the Atlantic area will grow in relevance in coming years is not hard. While the old powers in Europe and North America might be in relative decline, they still share half of the global GDP and the world's strongest military alliance, NATO. At the same time, the Atlantic is also the home to two BRICS countries, Brazil and South Africa, and emerging actors such as Mexico, Nigeria and Angola. Their economic growth rates, global profile in oil and gas production, and military investments have already attracted the rapidly growing interest of China and India.

Leia-se o texto aqui.

Regras diplomáticas

Um colega que comigo coincidiu em Brasília, ao tempo em que eu por lá chefiava a nossa representação diplomática, enviou-me, para recordação, duas "instruções" que então eu distribuí por todos os funcionários.

A primeira tinha a ver com as comunicações recebidas na Embaixada:


"Qualquer comunicação escrita (carta, fax ou mail) dirigida a qualquer serviço da Embaixada, quer para o endereço geral, quer para um qualquer funcionário nessa sua qualidade, deverá, sem excepção, ser respondida. Em situação limite, em que o funcionário entenda que a comunicação não tem condições de ser respondida, deve ser sempre acusada a recepção."


A segunda prende-se com o "estilo" que eu entendia que os textos que seguem para Lisboa (e que são sempre assinados pelo embaixador) deviam assumir: 
  1. Não escrevam em estilo jornalístico. Escrevam como se tivessem que assinar “Nestrangeiros” (telegramas recebidos de Lisboa), isto é, linguagem totalmente neutral, pouco adjectivada, frases curtas e sem personalização, citando pouco e interpretando muito. Nós não concorremos com as agências noticiosas na busca dos factos: interpretamos.
  2. Não utilizem (nunca!) expressões brasileiras ou termos locais: “reforma tributária”, “reforma ministerial”, “inadimplência”, etc. Há termos portugueses para isto.
  3. Um telegrama tem de ser auto-explicativo, partindo-se do princípio de que quem o lê está a contactar com essa realidade pela primeira vez. Deste modo, não há “CPI” ou “MP” mas sim “Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)”, podendo, então, repetir-se a expressão “CPI” no mesmo telegrama. As “MP” são “Medidas Provisórias (MP)”, devendo sempre ser seguidas da explicação de que se trata de “iniciativas legislativas que o Governo submete ao Congresso com prioridade de apreciação”. Temos que ser didácticos e partir (sempre) do princípio que é uma pessoa nova que nos lê todos os dias.
  4. Procurem evitar referir nomes de pessoas, a não ser que sejam muito conhecidas ou importantes.
  5. Façam telegramas curtos. Ninguém lê em Lisboa mais do que página e meia. Quando possível, façam textos de menos de uma página.
  6. Façam parágrafos. Ajudam a ler.
  7. Não façam ironias ou graças nos textos: esse é o privilégio do embaixador… algum havia de ter !

B & B

Há bastantes anos que ouvia falar daquele restaurante, situado numa certa capital de distrito, onde não vou muito e onde tinha escassas refe...