O jornal da diocese, “A Voz de Trás-os-Montes”, estimável folha informativa em que este escriba deu à estampa os seus primeiros artigos (que estão “fora do mercado”, para evitar chantagens), tinha destacado, com grande fotografia de primeira página, a deslocação a Roma do bispo de Vila Real, dom António Valente da Fonseca. Estava-se em meados dos anos 60, período do Vaticano II.
Como administrador apostólico ficou, encarregado da diocese, monsenhor Libânio, uma figura alta que ainda hoje justifica o nome dado a um cadeirão comprido que tenho lá por casa, herdado do meu avô, a que sempre chamamos a "cadeira do padre Libânio", não obstante o próprio, com certeza absoluta, nunca a ter experimentado.
Valente da Fonseca tinha tanto de anafado quanto Libânio tinha de esguio, óculos à Gramsci, andar desengonçado e um ar de intelectual. No que me toca, via-os sempre à distância e nunca falei com qualquer deles.
Nas ociosas noites do verão vila-realense, havia muito pouco que fazer. Por isso, num grupo de amigos, alguém se lembrou de inventar uma chamada telefónica "feita" pelo bispo, desde há semanas em Roma, destinada ao monsenhor Libânio, que então vivia no seminário de Vila Real.
O local do "crime" foi a casa do celebrado fotógrafo da cidade, Mário Silva, "Marius", pela mão do seu filho, António Manuel. O autor material da chamada telefónica foi um primo deste, Dionísio Rodrigues da Silva, o "Nizo", um bom amigo já desaparecido, o elemento mais velho desse pequeno grupo que se juntou para a organização da "partida". Ainda tenho a visão da cena, connosco à volta de uma mesa.
Desconhecedores do que era uma chamada internacional, ao tempo obrigatoriamente feita através de telefonista, inventámos um conjunto de ruídos que supostamente credibilizariam a verosimilhança da comunicação. Ligámos para o número do seminário, pouco depois da hora de jantar. Atendeu-nos uma voz a quem, num italiano de má opereta, demos a indicação de que "don António, di Roma, voglio parlare con il signor don Libânio". As palavras “António”, “Roma” e “Libânio” deveriam ser suficientes para garantir a atenção eficaz do fâmulo. A chamada era entrecruzada por arbitrários silvos e apitos, sons secos e uma profusão de sinais que, no nosso entender, deveriam fazer parte de uma ligação telefónica internacional. A nossa preocupação era perfeitamente escusada: no seminário, o porteiro ou guarda da noite devia saber de italiano e de comunicações internacionais bem menos do que nós...
Após alguns minutos, ouviram-se passos apressados no lagedo de mármore da sala de entrada do seminário, onde se situava então o único aparelho telefónico da casa. Um ofegante dom Libânio surgiu então na linha.
Do outro lado, "de Roma", o senhor "dom António" interpelou-o, com o ritmo pausado, aquele conhecido tom eclesiástico “de Braga”, abrindo as vogais, esse “template” vocal da hierarquia religiosa lusitana, de que Cerejeira foi o intérprete mais consagrado.
- Olá, Libânio, como vai você? E a diocese?
Extasiado com a oportunidade proporcionada pela maravilha das comunicações, dom Libânio respondeu, com natural nervosismo de atender uma chamada internacional:
- Muito obrigado, senhor bispo. Vai tudo muito bem, graças a Deus. E como passa vossa excelência reverendíssima?
- Estou bem, Libânio, estou bem. Mas diga-me uma coisa, ó Libânio: e como é que vão as nossas Felicianas*?
Dom Libânio presumiu ter ouvido mal, tanto mais que as comunicações, à época, eram más e o lenço que utilizávamos para tentar disfarçar o som, com uma folha de papel no meio para baralhar o tom de voz do Nizo, criava uma distância que afetava a audibilidade das mensagens.
- Como? Não estou a ouvir bem... Como disse, excelência reverendíssima?
- As Felicianas, Libânio, aquelas pequenas da Vila Velha que às vezes chamamos, para nos alegrarem as noites por aí...
O pobre do administrador apostólico deve ter ficado à beira de uma apoplexia. As Felicianas era um plural, embora pouco majestático, para designar umas raparigas, todas da mesma família, que, na cidade, facilitavam alguns prazeres físicos tarifados, e que eram bem conhecidas de toda a gente. Embora não houvesse nota de deslocações de “room service” ao seminário...
- Não consigo ouvir, senhor bispo! Não ouço quase nada! Vou ter de desligar...
E assim fez. Ainda bem! É que nós estávamos já no limite da gargalhada coletiva. Mas tínhamos ganho uma excelente noite.
(* o nome coletivo das raparigas talvez não fosse bem este, mas quem ousar retificá-lo num comentário vê-lo-á eliminado. Não quero intrigas na minha terra natal...)