sexta-feira, fevereiro 16, 2018

Sem fardas



É um grupo que se reune há mais de quatro décadas, composto por militares, do quadro permanente e milicianos. Hoje esteve quase “au complet”, com duas ou três faltas, registadas na ordem do dia, mas cabalmente justificadas.

De comum, para além da amizade que os une, todos têm o facto de estarem indiciados, desde há muito, pelas autoridades que se presume competentes, por terem participado ativamente num ato de sedição e de subversão da ordem constitucional, ocorrido no dia 25 de abril de 1974.

Nos dias de hoje, junta-os a luta contra qualquer tentativa de amnistia desse crime, o qual, curiosamente, nenhum nega e de que têm mesmo o desplante de afirmar que se orgulham, o que é uma óbvia agravante.

A Marinha prevalece no grupo, e por lá estava hoje o nosso grande Almirante. Da Força Aérea, tivemos um garboso General. O Exército estava representado a nível mais modesto, como se pode ver no canto direito da fotografia, onde se vislumbra um Tenente (até ver, ainda na reserva) de Administração Militar (especialidade de Ação Psicológica).

Foi um almoço, no Clube Militar Naval, conspirativo qb, em torno de umas alheiras de Freixo de Espada-à-Cinta, com vinho (14,5%) do Douro Superior. Os grelos eram magníficos! 

Mais uma grande jornada!

Quebrou-se o consenso europeu?

A decisão de pedir a adesão às Comunidades Europeias foi um ato que conjugou a vontade dos dois mais relevantes partidos políticos portugueses pós-1974. Correspondeu à partilha implícita, por ambas as forças, do entendimento de que a sustentabilidade do novo regime democrático, saído da Constituição de 1976, dependia muito do modo como ele pudesse vir a ancorar-se a um novo projeto gerador de desenvolvimento e bem-estar, sob um modelo social de mercado. Esse era um terreno comum ao PS e ao então PPD, para além das diferenças que os separavam no plano interno e das idiossincrasias conflituais dos respetivos líderes. 

O CDS, cuja matriz procuradamente democrata-cristã da sua liderança inicial (que não das suas bases) se sentia representada numa Europa que fora construída mão-na-mão com a social-democracia, desenhou um discurso europeu que tentou sempre ter algo de próprio. O PCP, com inegável coerência, foi espalhando um “vem aí o diabo!” de Bruxelas e fechou-se para sempre num soberanismo empedernido. 

Os governos de Cavaco Silva viveram num verdadeiro “oásis”, no que à Europa respeitava. Era o reino maravilhoso das maiorias absolutas, com os ‘pacotes Delors” e a sua “coesão económico-social” a terem um impacto inédito sobre o nosso PIB, aquecendo muitos bolsos e modificando a paisagem. Nesse tempo, à esquerda, o PS anuía a quase tudo - por coerência, convicção e falta de alternativa. Até chegar o euroceticismo de Manuel Monteiro, o CDS manteve pacífica a imagem essencial de unidade que o país levava para a Europa. 

A partir de 1995, embora os tempos fossem já outros – na Europa e no país, onde a maioria tinha desaparecido - posso afirmar, com conhecimento próximo de causa, que a política europeia pôde ser conduzida sem grandes sobressaltos. O facto do “novo” CDS assumir um soberanismo que chegava a mimetizar o PCP, obrigava o PSD a colar-se ao essencial das posições do governo socialista, sob pena das suas credenciais europeístas poderem vir a ser postas em causa no quadro do PPE.

Muita água correu entretanto sob as pontes europeias. As opiniões públicas mudaram radicalmente no modo como passaram a olhar para o que antes era a “bondade natural” do projeto, então apenas contestada por minorias caricaturais. 

Apesar de tudo, sente-se que Portugal mudou bastante menos do que outros países, no que toca ao modo como encara o processo integrador. Mais do que um euroceticismo, prevalece hoje por cá uma espécie de eurocinismo. O debate está raptado por ironias bem-pensantes sobre Bruxelas e as suas instituições, por um primarismo argumentativo que, no fundo, é feito da mesma massa daquela que corrói o entusiasmo europeu, um pouco por todo o lado.

Estou a exagerar? Não creio. Tenho mesmo a sensação de que, se fosse necessário lutar por um “sim” num hipotético referendo europeu, cuja resultante final seria ainda assim confortável, parte da nossa opinião pública seria, nos dias que correm, suscetível de alinhar num mar de difusas reticências.

Vou dizer algo que alguns não gostarão de ler: parte importante desse discurso de dúvidas pode facilmente vir a emergir da área do PSD. A meu ver, essa é a força política que tem hoje um potencial mais forte para poder vir a dividir-se internamente sobre a questão europeia. Não desconheço persistir no PSD um conjunto de personalidades com forte sentimento europeu. Mas, do populismo (aceite) de figuras como o seu famigerado candidato em Loures até a alguma irresponsabilidade revelada na questão de cooperação em matéria de Defesa, passando pelo futuro quadro financeiro pluri-anual até ao tema dos “recursos próprios” (os impostos europeus), deteta-se no PSD uma preocupante perda de “automatismo” na sua atitude face à Europa. E o passado ensinou-nos que, sem os sociais-democratas declaradamente “a bordo”, a imagem de Portugal nas instituições da União fragiliza-se e a influência do país pode sofrer com isso. Há alguém que sabe isso bem: chama-se Marcelo Rebelo de Sousa.

Esta não é, porém, uma questão cujas respostas imediatas sejam muito relevantes, por muita consideração que nos possa merecer uma figura como Rui Rio. Tudo vai depender, essencialmente, dessa incógnita maior que é saber o que será o PSD após as eleições legislativas de 2019.

Gulbenkian


De um dia para o outro, ao saber-se que a Fundação Calouste Gulbenkian se preparava para alienar as suas participações petrolíferas, caiu no país o Carmo e a Trindade. Foi como se cada português se sentisse uma espécie de “senhor 5%”. Sem conhecer a limitada dimensão daquilo que vai ser vendido, sem saber que a Fundação apostou, de há muito, numa inteligente diversificação dos seus ativos, Portugal acordou, sobressaltado, para o que parecia ser um grande ponto de interrogação sobre o futuro da instituição da Avenida de Berna.

Há um lado simpático neste alarme. Ele traduz a importância que a Fundação tem para o país, o quanto esta instituição é sentida como “do bem” por todos e por cada um de nós. Há uns anos, senti uma forte revolta quando uma desajeitada sindicância sobre o mundo das fundações colocou injustamente a Gulbenkian sob a mesma “rasa” de outras entidades de não comparável valia. A injustiça do gesto, feito de demagogia mas igualmente de arrogante incompetência, foi sentida por muitos como uma bofetada numa instituição a quem o país deve muito mais do que as aparências indicam.

A Fundação Calouste Gulbenkian – a Gulbenkian para os de fora, a Fundação para quem lá trabalha – foi uma bênção que caiu um dia sobre Portugal, a retribuição filantrópica de um milionário que se cruzou com um grande português que se chamou José de Azeredo Perdigão. Foram a genialidade jurídica e a teimosia negocial de Perdigão que permitiu que a instituição tivesse um destino essencialmente português – mantendo polos em Paris e em Londres, com uma permanente atenção às comunidades arménias, da origem do fundador. Mas há que reconhecer igualmente o gesto hábil do regime ditatorial de Salazar, ao criar as condições para o acolhimento de Gulbenkian, bem como, mais tarde, a sabedoria diplomática do embaixador português em Paris, Marcello Mathias, que obteve a autorização para a transferência para Lisboa da coleção de arte.

A Gulbenkian, ao longo dos anos, foi capaz de desenhar um modelo muito sofisticado de relação com o Estado português. Senti isso como embaixador, quando tive de lidar com a Fundação - em Londres, em Brasília e em Paris. A instituição permanece sempre aberta a uma colaboração frutífera com o país oficial, mas nunca deixa que essa relação seja contaminada por uma qualquer ideia de dependência que coloque em causa a sua autonomia. Os governos (e, muitas vezes, os embaixadores) que não entenderam isto tiveram, com regularidade, momentos de tensão com a Gulbenkian. E aprenderam sempre à sua custa.

A Gulbenkian pode dizer, confortavelmente, como Mark Twain, que as notícias sobre a sua morte são muito exageradas. Agora sob a discreta mas eficaz mão de Isabel Mota, com uma renovada e competente administração que sabe olhar os desafios que aí estão, a Gulbenkian está para lavar e durar. E ainda bem, para Portugal.

quinta-feira, fevereiro 15, 2018

A escada


Demora bastantes anos a subir esta escada. Há que fazê-lo com jeito, sem pressas, medindo bem a importância de cada degrau que se pisa. Alguns, na sofreguidão da ambição, tentam fazê-lo dois-a-dois, procurando queimar etapas. A esses, às vezes, e não são poucas, acontece-lhes tropeçarem. Outros, mais preguiçosos, sobem-na com demasiada lentidão, muito passo-a-passo, adormecendo sob o sol da tapada, e, quando se dão conta, verificam que já se faz tarde para chegarem ao topo. Há também os que, na subida, passam o tempo a olhar para o lado, invejosos com a passada dos outros, como se o azar que intimamente desejam aos seus competidores fosse afinal a sua maior fortuna. Alguns desses ainda conseguem a aventura de chegar ao topo da escada mas, quando olham para trás, ouvem umas estranhas gargalhadas vindas do fundo. Mas nunca chegam a perceber quantos se riem deles. Outros, mesmo muitos, acabam por escorregar um dia no atabalhoado do seu percurso, porque o mármore dos degraus é traiçoeiro para quem os não respeita.

Esta é a escada que liga o “palácio velho” às Necessidades. Passei por lá hoje à tarde (“vai em trabalho?”, perguntou-me a bela GNR. “Não, eu já não tenho idade para trabalhar...”, respondi-lhe, correspondendo ao sorriso). Não há uma forma única de subir esta escada, mas aprendi com a vida que só há uma maneira “fair” de a encarar. No entanto, pode-se “subi-la” a partir de cima, mas, acreditem, não é exatamente a mesma coisa... 

quarta-feira, fevereiro 14, 2018

Rui Rio


Raramente um líder chega à chefia de um grande partido, em Portugal, nas condições difíceis como aquelas que Rui Rio agora vai enfrentar. 

Desde logo, a conjuntura política do país não o favorece. O governo surfa uma onda positiva e, se não se envolver em outras trapalhadas por culpa própria, o presidente da República não parece disposto a ser acusado de levantar muitas mais ondas. O espaço para um líder da oposição, ainda por cima ausente da visibilidade da bancada parlamentar, é, assim, muito estreito, tendo ainda de contar com um CDS que tudo fará para potenciar nacionalmente o seu fogacho autárquico lisboeta.

No plano interno do partido, as coisas não lhe poderiam ser mais adversas. Os órfãos raivosos de Passos Coelho dão sinais de se prepararem para lhe puxar o tapete, à primeira curva, desde logo “exigindo” a vitória nas próximas eleições europeias e legislativas - como se fosse fácil a qualquer líder do PSD vir a ter um sucesso, se o atual contexto económico se vier a prolongar. Praticamente, a única (mas não despicienda) arma de Rio é o o seu poder na constituição das listas de deputados (europeias e legislativas).

Rui Rio vai ter, além disso, um teste essencial de coerência. 

Numa postura de Estado que muito ajudou a formatar a sua imagem pública de rigor e seriedade, Rio nunca foi conduzido aos caminhos da política “politiqueira”, como a que, por exemplo, procurou explorar demagogicamente a tragédia dos incêndios. Por outro lado, foi sempre um defensor de pactos de regime, sobre grandes temáticas de interesse público, não favorecendo o confronto artificial com o outro lado do espetro político. Veremos se, para apaziguar alguma direita “caceteira” que lhe vai atazanar os dias, Rui Rio é tentado a agravar o discurso confrontacional.

Há um ponto importante que António Costa terá de ter em conta: Rio é uma relativa novidade e, numa vida política em que as caras cansam, o fator novidade é algo com que é sempre preciso contar.

Este vai ser um tempo interessante para a política portuguesa. 

terça-feira, fevereiro 13, 2018

José Avillez


Conheci-o pessoalmente no Brasil, numa prova de azeites, em São Paulo, creio que em 2005. Antes, testara já a sua arte, num jantar, num restaurante em Cascais, o “100 Maneiras”, nos escassos meses em que por lá passou. Pareceu-me então ter “muito jeito”, mas, à época, não fiquei excessivamente impressionado. Um dia, um ou dois anos mais tarde, jantei com uns amigos no “Tavares”, onde ele era já então o chefe. Boa impressão confirmada, mas ainda não deslumbrante. O “defeito” era afinal meu: aí viria a nascer a sua primeira “estrela”, fruto de muito trabalho e apuramento profissional.

Depois, comecei a assistir ao seu notável “desmultiplicar” comercial. Num registo descontraído, mas bom, passei a almoçar várias vezes no “Cantinho”. E gosto bastante, sou cliente. No seu “grande salto em frente”, o “Belcanto”, onde já fui diversas vezes (não vou mais porque é caro!), fiquei, final e completamente, convencido. Ali, José Avillez, porque é dele que eu falo, provou e prova a cada dia ser um excelente chefe, um grande artista da mesa. Ah! E também gosto muito da elegância do seu “Café Lisboa”. E, do mesmo modo, aprecio o cosmopolitismo dos dois espaços complementares do seu “Bairro”, uma bela ousadia profissional. E também acho excelentes as pizzas da sua “Pizzaria”. Está também muito bem o “Cantinho” da Mouzinho da Silveira, no Porto. Mas não, ainda não fui ao “Mini-Bar”, nem ao “Beco”, nem à “Cantina Peruana”, nem à “Tasca Chic”, nem à recente “Pitaria”. É que acompanhar o ritmo da “ cissiparidade” de José Avillez é, como dizem os alentejanos, uma “canseira”, embora muito boa...

José Avillez é hoje uma glória segura da cozinha portuguesa. Foi o primeiro chefe português a obter duas estrelas no “Guide Michelin” e agora, há dias, recebeu o prestigiadíssimo “Grand Prix de L’Art de la Cuisine”, atribuído pela Academia Internacional da Gastronomia (AIG). 

Em particular, fico muito satisfeito por este último reconhecimento, que coroa aquele que a própria Academia Portuguesa de Gastronomia, membro da AIG, de cuja direção faço parte, lhe fez em devido tempo, ao nomeá-lo para os seus mais altos prémios e ao ajudar a promovê-lo internacionalmente. Apenas e porque ele o merece, amplamente.

O turismo português beneficia hoje imenso com o facto do nosso país começar a estar colocado já nas rotas da grande gastronomia à escala global. Os nossos chefes “estrelados”, mas igualmente os restaurantes nacionais no seu todo, ganham um impulso muito importante pelo facto de Portugal ser hoje conhecido com tendo mesas de excelência. E, de caminho, ganham os hotéis, há mais emprego, a indústria turística cresce e entram receitas para o país.

(Mas há quem perca com isto? Claro que sim! Perdem os céticos, os cínicos, os invejosos, os que desdenham o mundo da gastronomia, os mal-dizentes profissionais, os mesquinhos cultores da mediocridade atávica. Para esses, há sempre uma solução: deixá-los a falar sozinhos.)

Parabéns, José Avillez. E obrigado!

Martin Schulz



Sai hoje de cena Martin Schulz, o desafortunado líder do SPD alemão que, depois de ter perdido as eleições legislativas no seu país, com um resultado historicamente mau, se prontificou a tentar uma “grande coligação” com Angela Merkel e a sua CDU/CSU. 

Concluiu esse acordo, conseguiu para o SPD um conjunto muito importante de pastas ministeriais e tudo parecia bem encaminhado para a renovação desse entendimento de “bloco central”. Porém, o anúncio do seu surgimento como ministro dos Negócios Estrangeiros no futuro governo suscitou a revolta do atual titular (e, não por acaso, anterior líder do partido), Sigmar Gabriel, que mobilizou outros setores socialistas contra Schulz. Este decidiu sair, evitando assim uma crise no SPD, que poderia colocar em causa o próprio compromisso que resultou da negociação com Merkel, que ainda tem de ser referendada no seio do partido.

Recordo que, há uns anos, no Parlamento Europeu, onde Schulz era deputado e em que depois seria presidente, teve lugar um debate tenso entre o político alemão e o antigo primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi. Este, num imperdoável mas não surpreendente destempero, afirmou que ele tinha ar de poder ter sido chefe de um campo de concentração nazi. Schulz soube retorquir com grande dignidade ao insulto rasca de Berlusconi, figura que agora, ironicamente, ao que tudo indica, pode vir a reemergir nesse mundo estranho que é a política italiana.

O que quero aqui dizer hoje é que Martin Schulz foi sempre um bom amigo de Portugal, um homem que, em momentos complicados para o nosso país no terreno europeu, assumiu atitudes de forte solidariedade para connosco. António Costa, nos últimos anos, teve disso claras provas.

É um sinal triste que, nesta Europa, saiam de cena figuras com a dignidade de um Martin Schulz e que volte a ter espaço uma personagem do jaez de um Berlusconi.

Há melhor?


Talvez Lisboa...

Grande Gulbenkian!


Estava nas estrelas!

Estranhei (vá lá!, confesso, não estranhei) o silêncio nos dias subsequentes aos fogos. Os coletes amarelos, na sombra presidencial, diziam que sim com a cabeça a tudo, nessas horas em que a tragédia convocava inapelavelmente às mais radicais ações, no clamor por uma onda inédita de prevenção, para evitar o “remake” do caos, já em 2018. Quando o governo legislou, de braços arregaçados na tecla, perante um país atónito e preparado (teoricamente) para tudo, foram já audíveis, em baixos decibéis, algumas vozes, soando leves reticências, premonitórias do que aí vinha. Mas estava-se na hora do rescaldo, as agulhetas ainda pingavam a useira indignação, num discurso com barbas com nome. Há dias, quando li o aviso de que os fundos seriam cortados a quem não interviesse de forma eficaz no controlo e limpeza das matas, a quem não respeitasse a “deadline” temporal, tive um pressentimento: é demais, a bola vai já ser passada ao governo, deve estar por horas! Meu dito, meu feito! Afinal, quem terá a razão? Este é o país mais previsível do mundo!

segunda-feira, fevereiro 12, 2018

“Nós” e o Honório


Há pouco, ao passar em frente à casa Fernando Pessoa, em Campo de Ourique, lembrei-me dele, do Honório. Foi ao olhar uma fotografia do poeta, magro, traje escuro, bigode ralo, de óculos redondos e chapéu. Pareceu-me ali ver o Honório, essa figura do cenário da minha infância e juventude, lá por Vila Real.

Naquele tempo, não havia na cidade quem não conhecesse o Honório. De profissão, era contínuo na escola do Magistério primário. Ainda me lembro dele vestido de escuteiro, como me recordo de o ver lançar papagaios aos domingos, aproveitando o vento da "marginal", sobre o parque florestal.

Sejamos honestos: o Honório era aquilo que, com alguma crueldade, poderíamos qualificar de um "pobre diabo". Ninguém o levava muito a sério e era, muitas vezes, gozado pela rapaziada que, pelas ruas, lhe chamava o X9, por virtude de alguma similitude com uma personagem da espionagem ficcionada de então. O Honório reagia com expectáveis insultos, e a vida continuava.

O Honório apareceu um dia casado, com nova morada em Folhadela. Numa excursão a Lisboa, ficou famosa uma coça que terá dado na mulher. A pobre senhora, entretanto, deixou viúvo o Honório e este envolveu-se numa questão de partilhas com os cunhados, que se arrastou pelos tribunais, por muito tempo sem decisão. O Honório reformou-se e passou a viver, creio, na Timpeira. Passeava-se com passo rápido, sempre com um saco plástico na mão onde, dizia-se, carregaria os seus mais valiosos pertences.

Desde a infância, sempre tratei o Honório por tu. E ele a mim, claro. Com o meu afastamento da cidade, a partir dos anos 60, notei, da parte de algumas figuras da minha infância, colegas de escola primária ou não, socialmente mais afastadas de mim, uma crescente relutância em continuarem a assumir esse tratamento. Pela minha parte, insisti (e ainda insisto) que tudo se passe sempre nesse imutável registo. Era o que faltava que alguma coisa mudasse, nesse mundo que quero sempre igual!

Um dia, numas férias, indo sozinho ao volante, em Vila Real, vislumbrei o Honório aproximar-se da passadeira. Parei, abri o vidro e atirei-lhe um: “Olá, Honório. ’Tás bom?”

O Honório olhou para mim, e ainda mais para o Mercedes que eu conduzia e que o deve ter impressionado, e, com um largo sorriso, respondeu-me, assumindo uma prudência semântica, feita resguardo social, que nunca mais esqueci: “Estou ótimo! E vós, como ides?”

O meu irmão brasileiro


Nasci sem irmãos. Mas tenho-os na vida. Alguns primos e muito poucos amigos, como é o caso de Eros Roberto Grau.

O Eros, que, com a sua Tânia, se deslocou a Lisboa para o meu aniversário, é um eminente jurista e professor universitário brasileiro. Somos cúmplices de muita coisa, a menor das quais não serão os heterónimos com que regularmente humoramos a vida e o quotidiano. Ele, “José Malhão Fernandes”, eu, “Augusto Maria de Saa”.

Agora, na imprensa brasileira, o Eros - cuja parecença física com Marx é um seu lado distintivo que não rejeita - publicou um belo artigo sobre a nossa amizade. Deixo-o aqui (clique na imagem para aumentar) à apreciação dos leitores.

... e os matraquilhos?

Há injustiças olímpicas (ou olímpicas injustiças) que têm de ser corrigidas, mais cedo ou mais tarde.

Quando me lembro das tardes frígidas de “matrecos”, connosco de samarra e dedos com frieiras, na sala da União Artística, em Vila Real, pergunto-me se esta não seria uma modalidade adequada aos Jogos Olímpicos... de inverno!

domingo, fevereiro 11, 2018

40 anos!



Com esta imagem roubada a António Pais no Facebook, aqui fica uma fotografia do III Congresso do Movimento de Esquerda Socialista, no dia 11 de fevereiro de 1978, na Voz do Operário.

Foi há 40 anos, caramba! 

No centro da fotografia, de patilhas, está o António Manuel Alves Martins, o excelente “MFB” (“o militante de fato branco”), uma pessoa de quem os amigos têm muitas saudades.

Um certo Portugal


sábado, fevereiro 10, 2018

Verticalidade


É assim que a sociedade progride. Com gente como Adolfo Mesquita Nunes, que tem a coragem de enfrentar o preconceito.

Quem for consciente da sociedade em que vive tem a obrigação de lutar pela criação de um ambiente de liberdade e tolerância, onde ninguém seja discriminado ou estigmatizado pela sua orientação sexual. 

Gestos como o de AMN, como antes o foi o de Graça Fonseca, contribuem para lutar contra esse preconceito. 

Não querer perceber isto, pretendendo transformá-lo num “não problema”, é apenas um resquício subliminar da homofobia, aliás parte integrante do nosso atraso social.

Um dia, a sociedade portuguesa reconciliar-se-á consigo mesmo quanto a esta questão. Nesse dia, atitudes destas deixarão de ser necessárias. Por ora, são essenciais.

Gulbenkian



A Gulbenkian renova-se da melhor forma. A entrada da embaixadora Graça Andresen Guimarães e do professor António Feijó para o seu Conselho de Administração, ontem anunciada, é uma excelente notícia. 

Trata-se de duas pessoas altamente qualificadas, com magníficos percursos profissionais, que, estou seguro, darão uma contribuição muito importante à instituição, neste tempo de grande exigência para o seu futuro.

Porque coincide serem dois amigos pessoais, deixo a ambos um forte abraço, com votos das maiores felicidades.

sexta-feira, fevereiro 09, 2018

Sobre a independência



A decisão do Conselho Geral Independente da RTP, que integro, de reformar a composição da administração da empresa inundou-me de telefonemas, sms e emails: “A decisão desagrada a muitos amigos teus, sabias?”

Dias depois, um texto que escrevi no meu blogue, escandalizado com o primarismo do presidente do Sporting, soltou brados leoninos: “Nem pareces sportinguista! Isso vai ser aproveitado pelos outros!”. 

Ontem, depois de ter dado expressão pública do meu desagrado, pelo facto do governo ter nomeado um embaixador político, ouvi, de um lado ideológico que me é próximo: “Com o teu gesto, dás armas à oposição e à especulação mediática”.

Vamos a ver se nos entendemos! Sou, como muitos leitores, um cidadão que pensa pela sua cabeça, cujas ideias não se orientam pelas conjunturas e pelo que “dá jeito”. Não faço parte daquelas pessoas com que Groucho Marx ironizava: “Estes são os meus princípios. Se não gostarem, tenho outros”. Eu não tenho outros. Penso o que penso, gostem ou não.

Falarei pouco da RTP, tema em que, por lei, estou sujeito a secretismo. Fui nomeado pelo governo, que sabia que, a partir desse momento, a minha independência no exercício do cargo seria plena. Tem-no sido e continuará a ser, nos anos de mandato que se seguirão. Farei apenas que entender melhor para o serviço público de rádio e de televisão.

Mas falo livremente do Sporting. Sinto-me triste pelo facto do clube de que sou adepto, muito antes do seu atual presidente ser sequer nascido, estar prestes a ser vítima de uma espécie de golpe de estado - neste caso, estádio seria talvez mais adequado... Uma mudança totalitária que, segundo alguns, pode mesmo vir a colocar em risco o estatuto de “utilidade pública”, com todas as consequências, legais e práticas, daí decorrentes. O facto desta polémica poder estar a ajudar a divergir as atenções sobre os pecadilhos de outros não me convence. O que se passa no Sporting é uma vergonha.

Ontem, escrevi noutro jornal contra a decisão do governo de nomear, para um lugar no quadro da profissão que foi a minha por quatro décadas, uma personalidade a ela totalmente alheia, como se a diplomacia não devesse ser, como as forças armadas ou o mundo judicial, uma carreira estruturada, especializada e exclusiva. Imagino, isto é, sei que o governo não deve ter gostado que eu dissesse o que disse. Custou-me fazê-lo, não apenas porque apoio este governo e a sua política externa, mas porque o nome escolhido é alguém que muito prezo, que apoiei publicamente, e em quem votei privadamente, aquando do último sufrágio presidencial. Mas é o que eu penso.

Sou prisioneiro da minha independência, mas isso é o preço da minha liberdade.

quinta-feira, fevereiro 08, 2018

Diplomatas & políticos

A escolha de António Sampaio da Nóvoa para representante diplomático português junto da Unesco é um erro deste governo.

Historicamente, a representação externa dos Estados começou por ser provida por personalidades da confiança do soberano, oriundas da aristocracia. Com os novos tempos e a multiplicação das embaixadas, o serviço diplomático profissionalizou-se. Foram progressivamente criados, em todo o mundo, quadros especializados de serviço público, para assegurar a continuidade da representação do Estado, independentemente dos ciclos políticos. Os embaixadores passaram, em regra, a ser escolhidos dentre os diplomatas profissionais mais qualificados. 

Alguns países, porém, continuaram a manter a prática de designar, para a chefia de certos postos, figuras exteriores às respetivas carreiras diplomáticas. Em geral, as ditaduras e regimes mais ou menos autoritários abusam desta prática, que também foi corrente em regimes presidencialistas (mas, por exemplo, já deixou de o ser no Brasil ou em França, nos dias de hoje). Um país como os EUA persiste e coloca, com regularidade, na chefia de muitas das suas embaixadas, figuras ligadas ao financiamento das campanhas que estiveram na base da eleição do presidente. Bem assessoradas, claro está, por competentes profissionais da diplomacia...

Em Portugal, a Primeira República e o Estado Novo escolheram várias personalidades políticas e sociais para a chefia das principais missões diplomáticas, as quais, aliás, eram então muito poucas. Esta prática não viria a desaparecer por completo com o 25 de abril. Com vários pretextos, diversos governos colocaram figuras que lhes eram afetas em algumas embaixadas. Desde a Revolução, nos últimos 44 anos, com justificações de oportunidade inicialmente ligadas à consolidação dos novos tempos políticos (que já lá vão!), a diplomacia portuguesa veio a albergar uma trintena de "embaixadores políticos", mais notoriamente em postos multilaterais. Os parisienses OCDE e UNESCO foram os mais escolhidos.

Na nossa história democrática recente, alguns desses "embaixadores” serviram num posto e, depois, saíram – quase sempre, após uma rotação governativa, como está na natureza precária da sua nomeação, feita por confiança política. Outros acabaram por rodar entre vários postos, usufruindo de uma legislação que lhes permitiu passar a integrar o quadro dos embaixadores profissionais de carreira. Desde 2011, vivia-se um tempo diferente: não existia nenhum "embaixador político" na diplomacia portuguesa. 

O concurso de acesso à carreira diplomática é o mais exigente de toda a Administração Pública portuguesa. Os funcionários que integram essa carreira fazem um percurso variado, em Portugal e em postos no estrangeiro. As tarefas diplomáticas aprendem-se com tempo e maturação, os comportamentos apuram-se, as pessoas são testadas em diversos cenários geográficos e perante situações muito diversas. Ao final de cerca de duas dezenas de anos, a alguns, mas não a todos, é dada a possibilidade de chefiarem, primeiro missões mais pequenas e, se nelas derem as devidas provas, postos mais importantes. A diplomacia profissional portuguesa é regular objeto de reconhecimento público, quase generalizado, pelo muito que faz pelo país e pelo seu prestígio. Mas, afinal, será que ela não serve para representar Portugal em todos os postos diplomáticos? 

Será assim compreensível que, dentro da carreira diplomática, subsista um permanente sentimento contra a indigitação de figuras que, não tendo feito a tarimba da vida diplomática, não tendo nela subido, ao longo dos anos, os seus diversos escalões, surjam um dia, de "pára-quedas", num determinado posto, qualificados como "embaixadores", por uma simples decisão política. 

Dir-me-ão: mas não houve embaixadores políticos que, no passado, fizeram bom trabalho, que acabaram por ser um valor acrescentado para o serviço diplomático? Claro que sim, embora em poucos casos. Tal como eu talvez fosse capaz, com algum jeito, de não ser um mau Comandante da Região Militar Norte... Mas, como diz o povo, “cada macaco no seu galho”.

Só posso encontrar um único conforto nesta infeliz decisão do governo de António Costa, retomando um dos vícios do aparelhamento político da Administração Pública: é o facto de ter escolhido António Sampaio da Nóvoa, figura intelectual distinta e que sempre demonstrou grande competência e sentido de Estado nos cargos que exerceu, e a quem desejo as maiores felicidades no Ministério que generosamente o vai acolher no seu seio. Dentro do erro, valha-nos isso!

terça-feira, fevereiro 06, 2018

Também o Sporting


A conferência de imprensa do presidente do (meu) Sporting, somada às suas declarações na Assembleia Geral da véspera, constituem um belo retrato, realista e “à la minute”, de um certo país ajavardado que por aí anda. 

Com esse país de opereta só compete a total falta de mundo de quem faz o frete mediático oportunista àquele egocentrismo.

Este não é um problema de um clube chamado Sporting Club de Portugal, como o sectarismo de alguns comentários, que com certeza vão poder ler abaixo, tentará Iludir.

O mundo do futebol está tomado por uma estranha aliança entre algumas pessoas tidas por de bem, cegas por uma religiosa devoção a um emblema - no seio do qual só veem virtudes e, à volta, perseguições - com uns jagunços de cara grave e métodos baixos, servidos por uma sórdida canalha de bancada, onde grassa um extremismo acéfalo, o culto da violência e que, frequentemente, roça a criminalidade. 

As primeiras dessas pessoas são a cara, que se pretende aceitável, do sectarismo. Integram, em nome das suas cores, a liga, a federação e esses órgão de gargalhada judicial que fazem parte da chamada “justiça desportiva”. E, claro, vivem próximos da arbitragem, um mundo que, sem sucesso, quer dar-se ares de estar desligado das influências da gestão das carreiras profissionais dos árbitros. Esses representantes de fação garantem, não a desejável neutralidade de todas essas entidades, mas estão ali apenas na tentativa da representação ideal, para os interesses dos seus clubes, na relação institucional de forças. Daí o surgimento das crises cíclicas nesses órgãos, quando os desequilíbrios se produzem.

Os segundos, os dirigentes, são os operacionais do radicalismo e do ódio sectário. Forjam candidaturas, tomam conta dos clubes, vociferam em assembleias gerais, dão entrevistas incendiárias, alimentam constantes polémicas, apimentam as vésperas dos jogos, são gestores da esperança nas vitórias do mundo ululante em torno dos seus emblemas. Muitos são empresários, muitas vezes frustrados, de ramos sofríveis de negócio e em busca de reconhecimento, outros andam por ali a garantir a sua sobrevivência pessoal, tentando que a notoriedade os salve das grades. Houve e haverá também gente séria no dirigismo futebolístico, movida pela simples e respeitável afetividade clubista. Mas são, ao que tudo indica, cada vez menos.

As televisões (o resto conta pouco), à cata de audiências, ”balcanizam” os comentários para poderem garantir que representam, no écran, todo esse país dividido e tenso. E filmam treinos, entrevistam treinadores e jogadores, num cenário de retângulos da publicidade e águas de marca (olhem bem!) a que fazem o frete, fazem “antevisões” ridículas e desnecessárias das “jornadas”, seguem, motorizados, os autocarros das equipas para os estádios, entrevistam populares cachecolados no fanatismo, reportam e passam mil vezes, abutremente, cenas de violência e ódio, adubadas com as polémicas dos penaltis ou dos fora-de-jogo, comentam-nas, recomentam-nas, muitas vezes com recurso a “cromos” caricaturais de cada camisola, uns predispostos a serem assumidos palhaços, outros a armar mais ao fino - quase sempre, por que será?, com uma propensão para escolha de figuras do direito.

É um país muito triste, este que anda à volta de um dos mais belos desportos do mundo.

segunda-feira, fevereiro 05, 2018

Portugal exilado no Brasil


Tive hoje o privilégio de um almoço a dois com alguém que, durante a ditadura portuguesa, esteve exilado no Brasil. Foi muito interessante poder ouvir o testemunho autorizado de uma pessoa que presenciou alguns dos tempos mais importantes desse exílio brasileiro do anti-salazarismo. 

Desde o golpe de Estado que, em 28 de maio de 1926, pôs fim à Primeira República e implantou a ditadura militar, o Brasil foi porto de acolhimento de muitos exilados, de variadas matizes ideológicas. Desde militantes republicanos a comunistas e anarquistas, os vários “Brasis” (porque os tempos no Brasil também foram mudando) receberam, quase sempre com generosidade, quantos procuravam fugir da repressão da máquina salazarista.

Na conversa de hoje, suscitei do meu interlocutor um testemunho sobre esse momento de rutura “epistemológica” que foi a adoção de uma postura favorável à autodeterminação das colónias portuguesas, por parte de setores oposicionistas portugueses no Brasil.

A Primeira República fora colonialista,  com a entrada na Grande Guerra a ser justificada precisamente para proteger o império. Norton de Matos, que titulou a candidatura presidencial oposicionista em 1949, fora governador-geral de Angola e, até ao fim dos seus dias, foi um colonialista assumido. 

Só nos anos 50, quando o PCP, seguindo o espírito de Bandung e as orientações do Comintern, passou a adotar uma postura anti-colonial é que essa orientação penetrou, a fundo, no debate interno da oposição à ditadura portuguesa. 

Em 1961, com o eclodir da guerra colonial em Angola e a queda da Índia Portuguesa, várias personalidades oposicionistas viriam a assumir uma atitude próxima da do governo português que combatiam, o que induziu fortes tensões. Eu próprio testemunhei, na candidatura oposicionista, em 1969, em Vila Real, a existência de correntes opostas sobre este muito sensível tema, embora com o “ultramarinismo” em crescente perda de força.

O meu interlocutor do almoço de hoje deu-me conta detalhada das clivagens a que a questão colonial levou no seio da oposição portuguesa no Brasil. Ele próprio havia tido com Henrique Galvão, o revolucionário que dissidira e fora preso por Salazar, na luta pela liberdade que este negava ao país, uma discussão forte sobre o tema. Galvão viria a evoluir na questão, mas muitos outras figuras da oposição anti-salazarista no Brasil persistiram nessa postura de recusa do independentismo, algumas até ao 25 de abril.


(Ilustro este texto com uma célebre fotografia de Humberto Delgado e de Henrique Galvão, a bordo do “Santa Maria”)

Os meus dias da rádio


Das funções que passei a desempenhar no Conselho Geral Independente (CGI) da RTP faz também parte o acompanhamento da importante dimensão da rádio no seio da empresa.

Contrariamente à convicção de muitos, nos dias de hoje RTP já não significa Radiotelevisão Portuguesa. A sigla, desde há vários anos, quer dizer Rádio e Televisão de Portugal. É a mesma coisa? Não é. Ela passou a simbolizar a presença da marca RDP (embora com diferentes designações de antena) no seio da RTP. E isso faz toda a diferença. 

Assegurar um excelente serviço público de rádio, nas suas dimensões internas (Antenas 1, 2, 3 e regionais) e externas (Internacional e África), vai ser uma das grandes preocupações do CGI recomposto que acaba de entrar em funções. No que me toca, será mesmo objeto de uma atenção muito particular. Porque a rádio diz-me muito: teve um papel importantíssimo na minha formação e, igualmente, porque vivi muitos anos no exterior, durante os quais nunca deixei de ter a RDP no meu "radar".

Faço parte da geração dos "dias da rádio". No meu caso, das noites. Na minha juventude, nos anos 60, em Vila Real, o Rádio Clube Português (muito menos então a Emissora Nacional, antecessora da RDP), a par de algumas rádios estrangeiras (Radio Caroline, Radio London, Radio Andorra) e da Renascença (em especial com a 23ª hora), era uma companhia noturna regular, com os programas da madrugada, em especial o "Meia Noite" e, mais tarde, o efémero "Europa", de Vitor Espadinha, a trazerem a música que me fez crescer. (Na província não havia FM, apenas Onda Média e Curta, pelo não chegávamos ao lisboeta "Em Órbita"). Ah! e também ouvia, claro, a oposicionista Rádio Voz da Liberdade (de Argel), a Rádio Portugal Livre (de Bucareste), as emissões em português da Rádio Moscovo e o serviço português da BBC. Mas isso era outra "música".

Em 1966, com a ousadia dos meus 18 anos, apresentei-me nos estúdios do Porto do RCP, onde pedi "emprego" sem salário, ao tempo em que fingia estudar Engenharia Eletrotécnica. O Alfredo Alvela, uma voz magnífica da rádio desses tempos, abriu-me então as portas do seu "Clube da Juventude," onde realizei, durante alguns meses, o meu semanal "Tempo de Teatro" (eu era então membro do Teatro Universitário do Porto), com textos do João Guedes e um "gingle" com efeito de eco, feito no vão do elevador do prédio, numa ideia louca, creio que do Jaime Valverde. Ainda no Porto, fiz locução, durante algum tempo, nos Emissores do Norte Reunidos, pelo final das tardes de sexta-feira, num programa a que chamámos "No espaço e no tempo", um nome hoje ridículo, mas que ia muito bem com o ambiente da época.

Quando, em 1968, abandonei Engenharia e fui estudar (dessa vez, a sério) para Lisboa, o "bichinho" da rádio continuava a perseguir-me. Ainda nesse ano, fiz concurso para locução na Rádio Universidade. Lembro-me de duas das provas que me calharam em sorte: ler o texto "Desenhar uma Flor", de Almada Negreiros e, durante dez minutos, sozinho num estúdio, inventar a reportagem de uma chegada dos Beatles ao aeroporto de Lisboa. Fui um dos escassos admitidos, nesse exame, precisamente há meio século.

A estação era propriedade da Mocidade Portuguesa, seguia uma linha oficiosa, mas, devo confessar, em abono da verdade, não terá sido uma razão essencialmente política aquela que me levou a afastar-me do que julgava ser uma vocação para a rádio. Tenho uma vaga ideia de me ter confrontado com um ambiente algo pesado e hierarquizado, em que nunca me senti bem, feito de gente que pouco tinha a ver com a "onda" académica mais agitada em que eu já andava envolvido por essa época. Mas, conhecendo-me, creio que também o facto de me terem exigido que me submetesse a um estágio que ocorria nas socrossantas manhãs de domingo terá pesado bastante e deverá ter sido a gota de água que fez travar o início da carreira radiofónica que chegou a estar nos meus horizontes. A Rádio Universidade era, contudo uma excelente escola de rádio e, recorde-se, foi um viveiro de grandes nomes.

A Rádio Universidade ocupava então um edifício na rua da Estefânia. Passei por lá ontem e está no estado que a fotografia evidencia.

Eugénio Lisboa


O amigo Eugénio Lisboa, uma grande figura da intelectualidade portuguesa, lança hoje mais um volume das suas memórias.

É às 18.30 na Livraria Bucholz, na rua Duque de Palmela. Lá estarei a dar-lhe um abraço.

domingo, fevereiro 04, 2018


Eanes


Em dezembro, apresentei no Porto uma biografia do general Ramalho Eanes, escrita por Isabel Tavares.

Na ocasião do lançamento, dei naturalmente a minha perspetiva pessoal sobre o primeiro presidente eleito nesta era democrática. O que penso, com todos os “mixed feelings” sobre a figura de António Ramalho Eanes, havia já sido fixado neste texto.

O que hoje eu gostava de dizer, com a maior sinceridade, é que a entrevista dada por Ramalho Eanes ao “Expresso” desta semana confirmou plenamente aquilo que muitos admiradores confessos do general vinham desde há tempos a dizer-me: ele fez um percurso intelectual muito interessante, de grande rigor e seriedade, estruturando um pensamento coerente e sólido, de grande verticalidade democrática e forte consciência social. E, claro, revelando o grande sentido de Estado que sempre teve, além do homem de bem que é, conceito em que sempre o tive.

Robert Escarpit


Há quase cinco anos, escrevi no meu blogue um “post aberto” ao jornalista Ferreira Fernandes. 

Numa das suas crónicas na última página do “Diário de Notícias”, ele havia-se insurgido pelo facto dos diplomatas aposentados terem sido aparentemente poupados aos cortes da malta da “troika”. Ora eu, que era aposentado, e que tinha levado uma “talhada” de algumas centenas de euros, entendi dever esclarecer que o jornalista quereria talvez falar dos diplomatas “jubilados”, que é uma coisa diferente de ser-se aposentado, aproveitando, de caminho, para esclarecer as razões pelas quais esses meus colegas não tinham sido objeto de cortes (porque já antes os tinham sofrido, noutro contexto). 

No meu texto, “desculpei” Ferreira Fernandes: “Eu imagino as limitações de espaço da sua coluna na folha de Oliveira, embora, vá lá!, ele seja um pouco mais do que aquele que o Robert Escarpit tinha no "Le Monde" “.

Ontem, no mesmo DN, aproveitando um dia em que tem mais “largueza” de carateres, ocupando toda a última página, Ferreira Fernandes fala bastante de Robert Escarpit, num excelente artigo, que muito recomendo.

Nele refere, “en passant”, aspetos da vida daquele professor de Bordéus que, durante 30 anos, escreveu a tal minúscula e muitas vezes genial crónica (cerca de 700 carateres) na primeira página do “Le Monde”. 

Ferreira Fernandes e eu temos a mesma idade (na realidade, ele é uns meses mais novo...). Começámos a ler o “Le Monde” praticamente ao mesmo tempo, mas não sabia que éramos parceiros na admiração pelos textos de Robert Escarpit. 

Como referi no meu “post aberto”, o jornalista tem, na sua coluna “Um ponto é tudo”, no DN, um pouco mais de espaço do que aquele de que Escarpit dispunha. Mas comunga com ele da qualidade sintética da grande escrita, aquela que faz a diferença entre os grandes jornalistas daqueles que, como dizia Batista-Bastos, são injustamente acusados de o serem.

sábado, fevereiro 03, 2018

Procuro e não te encontro

A senhora Procuradora-geral da República tem idade para conhecer Toni de Matos. Ao ouvi-la falar do segredo de justiça, à margem de um evento qualquer, lembrei-de do “Procuro e não te encontro”, uma canção que há muito teve o seu tempo mas que, pelos vistos, ainda é trauteada nos corredores do palácio da rua da Escola Politécnica.

Nas suas surpreendentes declarações, que não vi suficientemente destacadas, a dra. Joana Marques Vidal, cuja passagem pela chefia do Ministério Público combina aspetos reconhecidamente corajosos com procedimentos altamente desqualificantes para a instituição que lhe coube dirigir, disse, basicamente, esta coisa surpreendente: é a própria lei, feita pelos parlamentares, ao não punir fortemente as fugas ao segredo de justiça, que confere a esse delito um baixo grau de importância. Implicitamente, com esta asserção, as quebras do segredo de justiça passaram à gravidade da falta da antiga licença de isqueiro.

Com a sua espantosa declaração, a senhora procuradora absolve a vergonhosa porosidade existente entre o Ministério Público e alguma selecionada “comunicação social”, que faz com que diariamente transpirem para fora da instituição escutas, peças processuais e informações atempadas sobre ações judiciárias - como há poucos dias se viu, com um jornalista já plantado à porta da residência de um sujeito de buscas. Nem sequer parece preocupá-la o facto de, com toda a probabilidade, haver lá pelos seus domínios gente avençada para providenciar informações que alimentem o escândalo mediático. E, do mesmo modo, fica a ideia de ser-lhe indiferente o princípio da proteção de direitos que frequentemente surgem lesados, muitas vezes com impactos muito negativos no plano externo, pela divulgação de diligências judiciais, que a ética, a deontologia e o interesse de Estado recomendariam que fossem protegidos no sigilo da investigação.

Pela declaração da dra. Joana Marques Vidal, pessoa que tenho por séria mas igualmente por flagrantemente incapaz de controlar setores da sua instituição, percebemos melhor agora por que razão nunca o país chegou a conhecer o resultado de qualquer dos “rigorosos inquéritos” que, no passado, anunciou ir instaurar às quebras do segredo de justiça. É que a senhora Procuradora-geral procura mas, talvez porque não acha isso importante, em geral nunca encontra.

A caminho da década


Este blogue entra hoje no seu décimo ano. Desde o dia 2 de fevereiro de 2009, sem falha de nenhum dia, foram por aqui publicados 6065 posts, sobre tudo “e mais alguma coisa”. Este vai ser um ano de balanço, onde o futuro do blogue vai ser equacionado. E mais não digo, por ora.

sexta-feira, fevereiro 02, 2018

Em três pontos


1. Um dia, na segunda metade dos anos 70, a Embaixada de Portugal em Londres recebeu a visita de um militar de abril, membro do Conselho da Revolução.

Como se impunha, o embaixador ofereceu-lhe uma refeição. O repasto correu de forma simpática, na magnífica sala de jantar daquela que é, sem sombra de dúvidas, uma das mais belas residências que Portugal tem pelo mundo.

Num determinado momento da conversa, o nosso militar deixa cair uma confissão: "Vou contar-lhe um segredo, senhor embaixador: um dos meus maiores sonhos foi sempre poder vir a ser, um dia, embaixador de Portugal em Londres". 

Perante o silêncio protocolar do embaixador, o militar não ficou sem resposta. Um jovem diplomata presente não resistiu e retorquiu: "Tem graça, senhor major. No meu caso, sempre tive como ambição de vida ser comandante da Região Militar Norte"...

O major, inteligente e perspicaz, entendeu o recado. E mudou de conversa.

*****

2. Não sou bruxo. Mas, em 10 de novembro de 2017, escrevi na minha coluna no “Jornal de Notícias” um artigo de que respigo este extrato:

“Mário Soares confessava ter chegado ao palácio das Necessidades, após o 25 de abril, com fortes interrogações sobre a carreira diplomática que, antes da Revolução, tinha defendido externamente as políticas do regime derrubado, nomeadamente a política colonial. Mas rapidamente se terá apercebido de que, com muito escassas exceções, o corpo de funcionários que o MNE punha à disposição do novo regime era constituído por dedicados servidores públicos, com grande sentido patriótico e lealdade funcional ao Estado. 

A democracia e a estabilidade da sua representação externa muito ganharam com a continuidade que Soares então preconizou e veio a prevalecer. Isso não impediu que, em ciclos políticos diferentes, o novo regime não tenha sido tentado a nomear quase uma trintena de “embaixadores políticos”. Desde 2011, não há nenhum chefe de missão exterior à carreira diplomática portuguesa, mas sinto que a tentação poderá não ter desaparecido por completo nas nossas hostes político-partidárias, da esquerda à direita. Espero que a maturidade da democracia portuguesa seja suficiente para, no futuro, ser capaz de resistir às tentações e que o chefe do Estado disso seja um guardião atento.”

*****

3. Acabo de ler que o professor António Sampaio da Nóvoa, antigo reitor da Universidade de Lisboa e candidato à Presidência da República - candidatura a que dei o meu apoio público e o meu voto privado - foi indicado pelo governo para vir a assumir a chefia da representação diplomática portuguesa junto da Unesco.

Sem retirar, naturalmente, uma linha que seja ao que escrevi nos pontos anteriores, quero aqui desejar ao meu amigo António Sampaio da Nóvoa as maiores felicidades no futuro exercício do cargo. Tenho a certeza de que o fará com o brilho e o elevado sentido de Estado que sempre demonstrou em todas as funções públicas que até hoje desempenhou. Para o bem de Portugal.

O regicídio na História


Passaram ontem 110 anos sobre a data em que, na esquina da praça do Comércio para a rua do Arsenal, em Lisboa, o rei dom Carlos e o seu sucessor natural foram assassinados a tiro por dois republicanos, eles próprios linchados nos minutos seguintes ao atentado. 

O debate historiográfico nunca conseguiu definir se este acontecimento ajudou, ou não, a acelerar a implantação da República, que viria a acontecer menos de três anos depois. Teria dom Carlos conseguido evitar o que veio a suceder ou o destino do regime estava já marcado? Ninguém o pode dizer com segurança. A única coisa que parece evidente é que as tensões políticas e sociais que desembocaram no regicídio tinham vindo progressivamente a agravar-se e que nada indicava que o regime pudesse vir a gerar condições para passar a uma fase de maior aceitação popular, compatível com a manutenção da coroa na chefia do Estado, em condições político-institucionais sustentáveis. Bem pelo contrário.

O republicanismo, em especial nos setores maçónicos que haviam estado na base de desgaste da Monarquia, manteve, por bastantes anos, uma aura em torno dos autores do regicídio, Alfredo Costa e Manuel Buíça, tidos como mártires da causa. Com o tempo, porém, foi deixando cair discretamente essas referências, talvez por ter entendido que o culto de um ato de violência extrema era um património de memória em crescente perda de aceitabilidade pública.

É compreensível que os monárquicos portugueses continuem a olhar esta data com o sentimento de que ela representou o princípio do fim do regime em que se reviam. Porém, vendo as coisas com um mínimo de realismo, estou certo de que nem eles próprios ainda acreditam, nos dias de hoje, na viabilidade da reimplantação do regime monárquico, embora abandonar essa esperança significasse para eles desistir da própria causa. 

Pode, contudo, especular-se que, se outros tivessem sido os equilibrios no seio das forças armadas portuguesas durante a ditadura, talvez a Monarquia pudesse ter sido equacionada como hipótese. Mas Salazar, não obstante ter óbvias simpatias monárquicas, sempre considerou que esse cenário induziria clivagens entre os militares, os quais, no final de contas, eram a sua guarda pretoriana. De uma coisa não tenho a menor dúvida: se a Monarquia tivesse tivesse sido recuperada pela ditadura, teria caído com ela. 

Como republicano, por mais de uma vez me tenho interrogado sobre como devo olhar o regicídio. E dou comigo a pensar que querer julgar o passado representa uma visão sobranceira por parte do presente, com os padrões de hoje a tentarem prevalecer sobre quem viveu outros tempos e outras circunstâncias. E, assim, deixo ficar o regicídio na História a que pertence.

quinta-feira, fevereiro 01, 2018

O senhor 5%


Calouste Gulbenkian, de quem herdámos - sim, nós fomos os seus verdadeiros e reconhecidos herdeiros! - uma Fundação que é hoje um dos orgulhos do país, era conhecido no mundo dos negócios como o "senhor 5%", por ter conseguido garantir, pelas artes negociais que eram as suas, uma quota de 5% em várias companhias petrolíferas que operavam no Médio Oriente. 

As receitas do petróleo foram, durante décadas, o sustentáculo financeiro da Gulbenkian, em apoio da magnífica obra desenvolvida, que foi basicamente dedicada a Portugal, em domínios muito variados - da arte à música e ao ballet, da ciência à educação, da promoção da reflexão à edição e divulgação do livro e a mil-e-uma outras dimensões da Cultura. Quantos milhares de portugueses não beneficiaram da Fundação, das suas bolsas de estudo, da sua ação no exterior (Paris e Londres), que nunca esqueceu as comunidades arménias, origem do seu fundador?

O petróleo já teve melhores dias e a Gulbenkian teve de reorganizar os seus ativos por forma a garantir recursos fora desse domínio energético. Foi agora anunciada a alienação das participações petrolíferas da Fundação. Só posso desejar à equipa que hoje gere a Gulbenkian, dirigida pela minha querida amiga Isabel Mota, o maior sucesso nesta que será uma etapa diferente no percurso da casa.

Deixo-os com uma fotografia da estátua de Calouste Gulbenkian, que domina o jardim fronteiro à sua belíssima sede. Diz-se que Salazar, cuja relação com o criador da Fundação e seu primeiro presidente, Azeredo Perdigão, não era isenta de algumas tensões, ao ver pela primeira vez essa estátua terá comentado: "O Calouste Gulbenkian parece-me bem. Já o Dr. Perdigão não está lá muito parecido...", referindo-se ironicamente à águia estilizada em pedra que sobrepuja a imagem do fundador.

Educação de adultos


Há uns tempos, contei por aqui a merecida atrapalhação de uma avó a quem ouvi os netos criticarem por não ter estar a respeitar uma fila, num balcão de café. 

Ontem, no Chiado, ouvi, com prazer, um miúdo retorquir para a mãe, que insistia com ele, numa passagem de peões: “Não atravesso! Está encarnado!” 

Tenhamos esperança no futuro!

quarta-feira, janeiro 31, 2018

Cruz de Cristo




Ao final da tarde de hoje, vou estar presente numa cerimónia oficial em que, por razões que não vêm ao caso, terei de usar, na lapela, a insígnia da Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo, distinção com que orgulhosamente fui distinguido, há bem mais de uma década. Trata-se da mais elevada condecoração, na ordem e no grau, que, como servidor público, eu poderia ter recebido - a menos que, patetamente, me considerasse merecedor da Torre e Espada...

Um dia, em França, onde sair à rua sem a condecoração mais elevada que se possua é quase um ato de descortesia cívica, decidi colocar na “boutonnière” a insígnia dessa minha condecoração portuguesa. Fi-lo a título excecional, porque, em regra, usava o Grande-Oficialato da Ordem do Mérito francês, que me foi atribuída em 1986 - e que, à vista de um “maître” de restaurante, sempre me garante logo uma excelente mesa... Mas, nesse dia, por uma qualquer razão, decidi “pôr o cristo”, como no jargão diplomático se diz.

Entrei numa cerimónia pública francesa com roseta vermelha sobre uma fita amarela na lapela da Grã-Cruz de Cristo e reparei que as pessoas olhavam para mim com um ar estranho, entre o surpreendido e o perplexo. Foi então que um amigo, o embaixador polaco em França, um homem que havia sido chefe do Protocolo no seu país e, por essa razão, muito conhecedor dessa coisas, me observou, discretamente: “Francisco, você não deve usar essa sua Grã-Cruz da Ordem de Cristo em França, como sabe...”

Como dizem os brasileiros, nesse instante, “caiu a ficha”! Ele tinha toda a razão! Há mesmo uma legislação francesa, do século XIX, que proibe a exibição pública, no território francês, das insígnias da Ordem de Cristo portuguesa e da Ordem de Cristo da Santa Sé. Eu sabia disso, mas tinha-me esquecido!

Porque é que isso acontece? Por um motivo simples: essas condecorações são exatamente iguais, no tocante à roseta usada na “boutonnière”, à “Légion d’Honneur”, a mais alta condecoração francesa. E porque, em França, quem usar indevidamente condecorações está sujeito a uma potencial prisão, as distinções similares estrangeiras estão banidas. É claro que, cono embaixador, eu nunca poderia ser preso em França, mas, no limite teórico, poderia ser considerado “personna non grata”. se persistisse em usar publicamente a Ordem de Cristo portuguesa.

Retrospetivamente, posso imaginar o que pensou quem me viu com aquela condecoração: como era completamente implausível que eu tivesse a Grã-Cruz da Légion d’Honneur (até hoje, só vi os presidentes da República francesa usarem-na, porque é de atribuição raríssima!), devem ter julgado que estavam a ver mal ou que eu estava a usar um elemento decorativo de muito mau gosto. Fiquei contente, assim, com o aviso do meu amigo polaco.

Contava-se nas Necessidades que, um dia, a um importante diplomata português foi perguntado pelo embaixador francês, numa receção em Lisboa, se a condecoração que ele exibia era a Ordem de Cristo, embora num grau mais baixo do que a Grã-Cruz. O nosso diplomata, "modesto", terá respondido: "Non! Ce n'est que la Légion d'Honneur"!" (é apenas a "Légion d'Honneur")

A cambada do “alegadamente”

Dias felizes são os que vive a palavra “alegadamente”. Alguns plumitivos, injustamente acusados de serem jornalistas (como dizia o Baptista-Bastos), acordaram, nos últimos anos, para o facto de que, utilizada que seja esta palavra, podem acusar quem quer que seja das maiores barbaridades, sem correm o risco de poderem ser considerados caluniadores.

Assim, quando virem escrita ou dita, nas rádios e televisões, a palavra “alegadamente”, caros leitores, já ficam a saber: os factos referidos na notícia não estão provados e quem a propaga e difunde é um cobarde que, não querendo assumir a responsabilidade do que afirma, se esconde canalhamente atrás do vocábulo. Sinal dos tempos. Estejam atentos!

terça-feira, janeiro 30, 2018

Antologia


Alguns simpáticos leitores têm vindo a propor (sem o menor sucesso) que eu passe a livro textos que por aqui são publicados.

Há dias, uns amigos mais chegados (gosto muito da palavra) fizeram-me uma excelente “partida”: editaram e ofereceram-me um exemplar único de uma antologia de textos que por aqui foram já publicados, mas apenas aqueles onde figuram referências a Vila Real e Viana do Castelo. Ficou um belo volume encadernado, com imagens a cor e 430 páginas! 

Gostei imenso, mas nem assim me convenceram a avançar para uma edição mais alargada.

As palavras e os atos


segunda-feira, janeiro 29, 2018

Dias de rei


As monarquias constitucionais europeias colocam um desafio importante aos soberanos de hoje. Tendo perdido, em todas elas, o essencial dos poderes que caraterizaram um outro tempo do exercício do seu papel no Estado, os reis, raínhas e afins funcionam, essencialmente, como fatores simbólicos de representação do país.

Com uma parte significativa da opinião pública - mais nuns países do que noutros - a colocar em causa o princípio dinástico na chefia do Estado, os monarcas atuais vivem sujeitos a uma atenta observação pública. Na minha perspetiva - embora cada caso seja um caso -, alguns monarcas estão sob uma implícita aferição pública da sua “utilidade”, a qual, porque decorrente da crescente dessacralização das suas funções, se torna dia a dia mais exigente.

Passado que foi, há muito, o tempo da sua intocabilidade pela comunicação social, os soberanos e as suas famílias têm de aguentar esse forte escrutínio, porque as sociedades democráticas não olham com bons olhos os privilégios e as mordomias, obrigando-os assim, cada vez mais, a seguirem uma vida que se assemelhe à do comum dos cidadãos. Os gastos com as famílias reais ou similares são hoje objeto de um debate muito estrito, sendo o respetivo comportamento social seguido com um interesse que vai da medíocre coscuvilhice tablóide à compreensível exigência ética.

Além disso, uma coisa é clara: todos os monarcas, no que toca à vida política, seguem por caminho muito estreito, porque a sua cada vez mais discutida legitimidade dinástica em nenhum instante se pode contrapor às instituições com representatividade democrática. Daí que a palavra dos reis e afins seja de “ouro”. Os reis não podem dizer uma palavra a mais e, em especial, essa palavra estará logo a mais se for vista como inadequada.

Aos reis que não necessitam, minimamente, de se mostrar na arena política o que é pedido é que sorriam e representem com dignidade o Estado. Aos outros, àqueles que a conjuntura obriga a intervir na coisa política, exige-se um imenso bom senso. E o bom senso não nasce necessariamente com as pessoas - e os reis são pessoas.

O rei Juan Carlos, num momento delicado da vida espanhola, revelou um bom senso que, lamentavelmente, foi perdendo numa fase mais adiantada da vida. A popularidade da monarquia espanhola perdeu com isso, somada ao comportamento negativo de outros membros da família real.

A Juan Carlos, que abdicou, seguiu-se Filipe, um novo rei que parecia bem preparado e capaz de assegurar a continuidade. Falhou, contudo, logo no primeiro teste sério a que foi sujeito. O que tem dito sobre a Catalunha, bem como o “timing” dessas intervenções, revela falta de respeito por muitos espanhóis, deixando-se acantonar num dos lados da barricada, não percebendo que não é esse o seu papel. Mais recentemente, ao ter suscitado o caso catalão numa intervenção no Forum de Davos, Felipe VI revelou uma imensa ausência de bom senso e de sentido de Estado.

Se as coisas vierem a correr mal na Catalunha, Filipe VI pode ter contribuído para isso. Se correrem bem, dificilmente terá alguma coisa a ver com isso.

Pronto! É hoje...